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É um grande texto panegírico da glória de Maria, por dela ter nascido o Salvador, com expressões que chegam a parecer ter sido produzidas em estado de êxtase. Usando dados do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Cartas, da tradição oral, de outros teólogos e da própria liturgia bizantina, o nosso Doutor passa em revista a importância para a salvação e para a Igreja do nascimento de Maria, louvando «en passant» os seus pais, Joaquim e Ana. Um ponto muito importante: chama e afirma – é dos primeiros a fazê-lo - Imaculada a Maria.
Sem deixar de fazer também todo o desfiar das tipologias de Maria presentes no Antigo Testamento, S. João Damasceno consegue louvar Nossa Senhora como poucos o fizeram, fornecendo a base patrística para muitas das afirmações acerca de Maria e do seu lugar no mistério da Redenção do homem que mais tarde vieram a efectuar-se. A sua influência na Idade Média foi enorme, e pode mesmo dizer-se que a intuição de base do Dogma da Assunção Corporal de Nossa Senhora ao céu está já presente na obra do Damasceno.
Do humilde monge e presbítero João Damasceno, discurso para o nascimento de Nossa Senhora Santíssima, a Mãe de Deus e sempre Virgem Maria.
1. Vinde, todas as nações, vinde, homens de todas as raças, línguas e idades, de todas as condições: com alegria
celebremos a natividade da alegria do mundo inteiro! Se os gregos destacavam com todo o tipo de honras – com os dons
que cada um podia oferecer – o aniversário das divindades, impostos aos espíritos por mitos mentirosos que obscureciam
a verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem o flagelo de toda a existência, que deveríamos nós fazer para
honrar o aniversário da Mãe de Deus, por quem toda a raça mortal foi transformada, por quem o castigo de Eva, nossa
primeira mãe, foi mudada em alegria? Com efeito, uma ouviu a sentença divina: «Darás à luz no meio de penas»; a outra
ouviu, por seu turno: «Alegra-te, oh Cheia de Graça». À primeira disse-se: «Inclinar-te-ás para o teu marido», mas à segunda: «O
Senhor está contigo». Que homenagem ofereceremos então nós à Mãe do Verbo, senão outra palavra? Que a criação inteira
se alegre e festeje, e cante a natividade de uma santa mulher, porque ela gerou para o mundo um tesouro imperecível de
bondade, e porque por ela o Criador mudou toda a natureza num estado melhor, pela mediação da humanidade. Porque
se o homem, que ocupa o meio entre o espírito e a matéria, é o laço de toda a criação, visível e invisível, o Verbo criador
de Deus, ao se unir à natureza humana, uniu-se através dela a toda a criação. Festejemos assim o desaparecimento da
humana esterilidade, pois cessou para nós a enfermidade que nos impedia a posse dos bens.
2. Mas porque nasceu a Virgem Maria de uma mulher estéril? Àquele que é o único verdadeiramente novo debaixo do
sol, como coroamento das Suas maravilhas, deviam ser preparados os caminhos por maravilhas, para que lentamente as
realidades mais baixas se elevassem de modo a serem as mais altas. E eis uma outra razão, mais alta e mais divina: a
natureza cedeu o lugar à graça, pois ao vê-la tremeu, e não quis mais ter o primeiro lugar. Como a Virgem Mãe de Deus
devia nascer de Ana, a natureza não ousou prevenir o fruto da graça, mas permaneceu ela própria sem fruto, até que a
graça trouxesse o seu. Era necessário que fosse primogénita aquela que deveria gerar «o Primogénito de toda a criação, no
Qual tudo subsiste». Oh Joaquim e Ana, casal venturoso! Toda a criação está em dívida para convosco, porque através de
vós ela pôde oferecer ao Criador o dom – entre todos o mais excelso – de uma Mãe venerável, a única digna d’Aquele
que a criou. Ditosos os rins de Joaquim, de onde saiu uma semente totalmente imaculada, e admirável o seio de Ana,
graças ao qual se desenvolveu lentamente, onde se formou e de onde nasceu uma tão santa criança! Oh entranhas que
levastes um céu vivo, mais vasto que a imensidade dos céus! Oh moinho onde foi amassado o Pão vivificante, segundo
as próprias palavras de Cristo: «Se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só». Oh seio que aleitaste aquela que
alimentou o Aquele que alimenta o mundo! Maravilha das maravilhas, paradoxo dos paradoxos! Sim, a inexprimível
Encarnação de Deus, cheia de condescendência, devia ser precedida por estas maravilhas. Mas como prosseguirei? O
meu espírito está fora de si, dividido que estou entre o temor e o amor; o meu coração bate e a minha língua move-se:
não posso suportar a alegria, as maravilhas deitam-me por terra, o ardor apaixonado aprisionou-me num arrebatamento
divino. Que o amor vença, que o temor desapareça e que cante a cítara do Espírito: «Alegrem-se os céus, exulte a terra»!
3. Hoje as portas da esterilidade abrem-se, e uma porta virginal e divina avança: a partir dela, por ela, o Deus que está
acima de todos os seres deve «vir ao mundo» «corporalmente», segundo a expressão de Paulo, ouvinte dos segredos inefáveis.
Hoje, da raíz de Jessé saiu uma vergôntea, de onde surgirá para o mundo uma flor substancialmente unida à divindade.
Hoje, a partir da natureza terrena, um céu foi formado sobre a terra por Aquele que outrora o tornara sólido separando-o
das águas, elevando o firmamento nas alturas. É um céu verdadeiramente mais divino e mais elevado que o primeiro,
porque Aquele que no primeiro céu criara o sol Se elevou a Si próprio neste novo como um sol de justiça. Sim, há n’Ele
duas Naturezas, apesar da loucura dos Acéfalos, e uma só Pessoa, mesmo que os Nestorianos se encolerizem! A Luz
eterna, proveniente da Luz eterna antes de todos os séculos, o Ser, imaterial e incorpóreo, tomou um corpo desta mulher,
e como um esposo que sai para fora de seu tálamo, assim fez Deus, tornando-se como tal filho da raça terrena. Como um
gigante Ele alegra-Se de percorrer os caminhos da nossa natureza, de Se encaminhar, pelos Seus sofrimentos, para a
morte, de atar o homem forte e lhe arrancar os seus bens, isto é, a nossa natureza, e de reunir na terra celeste a ovelha
errante.
Hoje, o «Filho do Carpinteiro», O Verbo universalmente activo d’Aquele que tudo construiu por Ele, o Braço Poderoso do
Deus Altíssimo, querendo afiar pelo Espírito - que é como o seu dedo – a lâmina embotada da natureza, construiu para
Si uma escada viva, cuja base está firmada na terra, com o cimo a tocar os céus: Deus repousa sobre ela. É dela a figura
que Jacob contemplou, e por ela Deus desceu da Sua imobilidade, ou melhor, inclinou-Se com condescendência,
tornando-Se assim «visível sobre a terra, e conversando com os homens». Estes símbolos representam a Sua vinda ao meio de
nós, o seu abaixamento condescendente, a sua existência terrena, o verdadeiro conhecimento d’Ele próprio, dado a todos
aqueles que estão sobre a terra. A escada espiritual, a Virgem, está fixa na terra, pois na terra ela tem a sua origem, mas a
sua cabeça eleva-se até ao céu. A cabeça de toda a mulher é o homem, mas para ela, que não conheceu homem, Deus
Pai ocupa o lugar de sua cabeça: pelo Espírito Santo, Ele concluiu uma aliança e, como semente divina e espiritual,
enviou o Seu Filho e Verbo, força omnipotente. Em virtude do beneplácito do Pai, não é por uma união natural, mas é
superando as leis da natureza, pelo Espírito Santo e pela Virgem Maria, que o Verbo Se fez carne e habitou entre nós. É
por aqui que se vê que a união de Deus com os homens se cumpre pelo Espírito Santo.
«Quem puder entender, que entenda»; «Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça». Descartemos as representações corporais: a
divindade jamais sofreu mudança, oh homens! Aquele que sem alteração gerou Seu Filho a primeira vez segundo a
natureza, sem alteração O gera agora de novo segundo a economia. Disto é testemunha a palavra de David, antepassado
de Deus: «O Senhor disse-me: "Tu és Meu Filho, Eu hoje te gerei"». Ora este «hoje» não tem cabimento na geração antes de
todos os séculos, pois esta deu-se fora do tempo.
4. Hoje é edificada a Porta do Oriente, que dará a Cristo «entrada e saída», e «essa porta estará fechada». Nela está Cristo, «a
Porta das Ovelhas», e «o Seu nome é Oriente»: por Ele obtivemos acesso ao Pai das Luzes. Hoje sopraram as brisas
anunciadoras duma alegria universal. Alegre-se o céu nas alturas, que debaixo dele «exulte a terra», que os mares do
mundo bramam, porque no mundo acaba de ser concebida uma concha, a qual pelo clarão celeste da divindade
conceberá em seu seio, gerando a pérola inestimável, Cristo. Dela sairá o «Rei da Glória», revestido da púrpura de sua
carne, para «visitar os cativos», e «proclamar a libertação». Que a natureza transborde de alegria: a cordeirinha vem ao mundo,
graças à qual o Pastor revestirá a ovelha, tirando-lhe as túnicas da antiga mortalidade. Que a virgindade forme os seus
coros de dança, pois nasceu a Virgem que, segundo Isaías, «conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emmanuel, o que
quer dizer "Deus connosco"». Aprendei, oh Nestorianos, e fugi à vossa derrota: «Deus connosco»! Não é nem só um homem,
nem um mensageiro, mas o Senhor em Pessoa que virá e nos salvará.
«Bendito o que vem em nome do Senhor», «o Senhor é Deus, e iluminou-nos»; «Celebremos uma festa» para o nascimento da Mãe de
Deus. Rejubila, Ana, «estéril que não davas à luz; ri de alegria e de júbilo, tu que não tiveste as dores de parto»! Rejubila, Joaquim:
de tua filha «um menino nos nasceu, um filho nos foi dado (...) e ser-lhe-á dado este nome: Anjo do grande Conselho (quer dizer, Salvação
do Universo) Deus Forte». Que Nestório fique vermelho e meta a mão sobre a boca. A criança é Deus; portanto, como não
seria ela a Mãe de Deus, ela que O colocou no mundo? «Se alguém não reconhece por Mãe de Deus a Santa Virgem, está separado
da divindade». A frase não é minha, mas no entanto pertence-me: recebi-a como precioso tesouro e herança teológica do
meu pai Gregório, o Teólogo.
5. Oh Joaquim e Ana, casal bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto do vosso seio fostes
reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: «Pelos seus frutos os reconhecereis». A vossa conduta foi agradável a Deus e digna
daquela que nasceu de vós. Tendo levado uma vida casta e santa, engendrastes a jóia da virgindade, aquela que deveria
permanecer Virgem antes, durante e depois do parto, a única sempre Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha,
de facto, que a virgindade saída da castidade produzisse a Luz única e monógena, corporalmente, pela benevolência
d’Aquele que A gerou sem corpo – o Ser que não gera, mas que é eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única
qualidade própria da Sua Pessoa. Oh que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Oh Filha da esterilidade,
virgindade que engravida, nela se unirão divindade e humanidade, sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que
em todas as coisas o menos perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha salvação, oh Mestre! Amas-me
tanto que não realizaste esta salvação nem pelos anjos, nem por nenhuma outra criatura, mas tal como já a minha
criação, também a minha regeneração foi Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a minha alegria e o meu
júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma torrente de alegria, toco de novo a cítara do espírito e canto o
hino divino da natividade.
6. Oh Joaquim e Ana, casal castíssimo, «par de rolas» no sentido místico! Observando a lei da natureza, a castidade,
merecestes os dons que ultrapassam a natureza: gerastes no mundo uma Mãe de Deus sem esposo. Depois de uma
existência santa e piedosa numa natureza humana, gerastes uma filha superior aos anjos e que agora reina sobre eles. Oh
Filha graciosíssima e dulcíssima, oh lírio nascido entre os espinhos, da descendência nobilíssima e real de David! Por ti a
realeza encheu-se com o sacerdócio; por ti foi cumprida «a mudança da Lei», e revelado o espírito escondido sob a letra,
pois que a dignidade sacerdotal passou da tribo de Levi à de David. Oh Rosa nascida dos espinhos do judaísmo, que
enche o universo de um perfume divino! Oh filha de Adão e Mãe de Deus! Ditosos os rins e o seio de onde surgistes!
Ditosos os braços que te levaram, os lábios que experimentaram os teus castos beijos, os lábios de teus pais, para que em
tudo tu fosses eternamente virgem. Hoje é para o mundo o início da salvação. «Aclamai o Senhor, terra inteira, cantai,
exultai, tocai instrumentos». Elevai a vossa voz, «fazei-a escutar sem temor», porque na Santa Probática nos nasceu uma Mãe de
Deus, de quem quis nascer o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
Tremei de alegria, oh montanhas, naturezas racionais, voltadas para o cume da contemplação espiritual: a montanha do
Senhor, refulgente, vem ao mundo, ultrapassando todas as montanhas e todas as colinas, isto é, os anjos e os homens;
dela, sem intervenção da mão do homem, Cristo quis desprender-Se, Ele que é a Pedra Angular, Pessoa Una, que
aproxima em Si aquilo que está distante: a divindade e a humanidade, os anjos e os homens, os gentios e o Israel carnal
num só Israel espiritual. «Montanha de Deus, montanha de abundância, montanha que Deus escolheu para Seu repouso. Os carros de
Deus vêm aos milhares, com seres refulgentes» da graça divina, querubins e serafins. Oh cume mais santo que o Sinai, não
coberto nem por fumo, nem por trevas, nem por tempestades, nem sequer por fogo perecível, mas pelo esplendor que
ilumina do Santíssimo Espírito. No Sinai, o Verbo de Deus tinha gravado a Lei sobre tábuas de pedra, pelo Espírito,
dedo divino; aqui, pela acção do Espírito Santo e pelo sangue de Maria, o próprio Verbo encarnou, dando-se á nossa
natureza como um remédio de salvação mais eficaz. Antes, era o maná; aqui, está Aquele que deu o maná e a sua doçura.
Que a morada célebre que Moisés construiu no deserto com matérias preciosas de todo o tipo, e ainda antes dela a
morada do nosso pai Abraão, se apaguem diante da morada de Deus, viva e espiritual. Ela foi o repouso, não só da
energia divina, mas da Pessoa do Filho, que é Deus, presente substancialmente. Que a arca recoberta de ouro reconheça
que não tem nada de comparável com Maria, e da mesma forma a urna de ouro com o maná, o candelabro, a mesa e
todos os objectos do culto antigo: eles foram honrados porque todos a prefiguravam, como sombras do verdadeiro
protótipo.
7. Hoje, o Criador de todas as coisas, Deus Verbo, fez um livro novo, saído do coração do Pai para ser escrito, como se
fosse por uma cana, pelo Espírito, que é a língua de Deus. Esse livro foi dado a um homem que conhecia as letras, mas
que não o lia. José, com efeito, não conheceu Maria, nem a significação do mistério em si. Oh filha toda santa de
Joaquim e de Ana, que escapaste aos olhares dos Principados e das Potestades e aos «assédios inflamados do maligno», e que
viveste no tálamo do Espírito, para seres guardada intacta e te tornares esposa de Deus e Mãe de Deus por natureza! Oh
filha toda santa, que apareceste nos braços de tua mãe, tu és o terror das potências de rebelião! Oh filha toda santa,
alimentada do leite maternal, e rodeada das legiões angélicas! Oh filha amada de Deus, honra de teus pais, gerações de
gerações te proclamam bem aventurada, como tu própria o afirmaste com verdade! Oh filha digna de Deus, beleza da
natureza humana, reabilitação de Eva, nossa primeira mãe! Por teu nascimento, aquela que tombara foi redimida. Oh
filha toda santa, esplendor do sexo feminino! Se a primeira Eva, com efeito, foi culpada de transgressão, e se por sua
causa «a morte fez a sua entrada no mundo» (porque ela se colocou ao serviço da serpente contra o nosso primeiro pai),
Maria, que se fez a serva da vontade divina, enganou a serpente enganadora e introduziu no mundo a imortalidade.
Oh filha sempre Virgem, que pode conceber sem intervenção humana, porque Aquele que concebeste tem um Pai
Eterno! Oh filha da raça terrena, que levas em teus braços divinamente maternais o Criador! Os séculos rivalizavam
entre si para saber qual deles se honraria de te ver nascer, mas o desígnio fixado antecipadamente de Deus, «que fez os
séculos» colocou fim a essa rivalidade, e os últimos tornaram-se os primeiros, eles a quem foi atribuída a felicidade da tua
Natividade. Na verdade, tu és mais preciosa que toda a criação, pois só de ti o Criador recebeu em partilha as primícias
da nossa matéria humana. A Sua Carne foi feita da tua carne, o Seu Sangue do teu sangue; Deus alimentou-Se do teu
leite, e os teus lábios tocaram os lábios de Deus. Oh maravilhas incompreensíveis e inefáveis! Na presciência da tua
dignidade, amou-te o Deus do universo; porque te amou, predestinou-te, e nos «últimos tempos», chamou-te à existência, e
constituiu-te Mãe para gerar um Deus e alimentar o Seu próprio Filho e Verbo.
8. Diz-se que os contrários servem de remédio contra os contrários, mas os contrários não nascem uns dos outros.
Mesmo se cada ser é na sua natureza um tecido de contrários, ele próprio provém da predominância da causa que o fez
nascer. De facto, da mesma forma que o pecado, ao operar para mim a morte por meio do bem, mostra em extremo a sua
natureza pecaminosa, da mesma forma o Autor dos bens, pelo meio dos contrários desses bens, opera para nós o bem
que Lhe é natural, porque «onde abundou o pecado, superabundou a graça». Se tivéssemos conservado a nossa primeira
comunidade com Deus, não teríamos merecido a Segunda, maior e mais extraordinária. De facto, pelo pecado, fomos
julgados indignos da primeira união, porque não conservámos o dom recebido. Mas pela compaixão de Deus fomos
perdoados e tomados sob a Sua guarda, para que a comunhão fosse assegurada, porque nos quer conservar unidos a Ele,
sem nenhuma beliscadura, Aquele que nos recebeu sob a Sua protecção.
Sim, toda a terra pejava de fornicações, e o povo do Senhor, possuído «pelo espírito de fornicação», errava longe do Senhor
seu Deus, longe d’Aquele que o tinha adquirido «com mão forte e braço poderoso», que com sinais e prodígios o tinha feito
sair da «casa da escravidão» do Faraó, o tinha conduzido através do Mar Vermelho e guiado «por uma nuvem de dia, e noite
inteira por um luzeiro de fogo». O seu coração voltava-se para o Egipto, e o povo do Senhor tornou-se «aquele que não é o povo
do Senhor»; aquele que obtinha misericórdia, tornou-se aquele que não a merecia, e aquele que era amado, tornou-se
aquele que não era amado.
Eis então a razão pela qual uma Virgem vem agora ao mundo, como adversária da ancestral fornicação; ela foi dada
como esposa ao próprio Deus, e gerou a misericórdia de Deus. Assim foi estabelecido como povo de Deus aquele que
até aí não era o Seu povo; excluído da Sua misericórdia, obteve misericórdia; não amado, é agora amado. Dela nasce o
Filho Bem-Amado de Deus, no Qual Ele colocou as Suas complacências.
9. «Uma vinha de belos sarmentos» foi gerada no seio de Ana, e ela produziu um fruto cheio de doçura, fonte de um néctar
abundante de vida eterna para os habitantes da terra. Joaquim e Ana fizeram-se semeadores de justiça, e recolheram um
fruto de vida. Eles foram iluminados pela luz do conhecimento, procuraram o Senhor, e daí lhes veio um fruto de justiça.
Que a terra tenha confiança! «Filhos de Sião, alegrai-vos no Senhor vosso Deus, porque o deserto ficou verdejante»: aquela que era
estéril deu o seu fruto; Joaquim e Ana, como montanhas místicas, fizeram brotar vinho doce. Permanece na alegria, oh
Ana venturosa, por teres dado à luz uma mulher, porque essa mulher será a Mãe de Deus, porta da luz, fonte de vida, e
reduzirá nada a acusação que pesava sobre a mulher.
Os homens nobres do povo desejarão vê-la, e diante dessa mulher os reis das nações prostrar-se-ão, oferecendo-lhe
presentes. Entregá-la-ás a Deus, rei universal, adornada da beleza das suas virtudes como de «brocados de ouro», ornada da
graça do Espírito, de cuja glória ela se reveste. A glória da mulher é o homem, e é-lhe dada a partir de fora; mas a glória
da Mãe de Deus é interior, e é fruto do seu seio.
Oh mulher amabilíssima, três vezes bem-aventurada! «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre»! Oh
mulher, filha do Rei David e Mãe de Deus, Rei do Universo! Oh divina e vivente obra-prima, na qual Deus Criador Se
alegrou, de quem o espírito é governado por Deus e atento somente a Ele, e de quem todo o desejo se eleva apenas
Àquele que é o único amável e desejável, que não te encolerizas senão contra o pecado e contra aquele que o fez nascer!
Terás uma vida superior à natureza, porque não é para ti que a terás, já que também não é para ti que tu nasceste. Terás
antes a tua vida para Deus, e é por causa d’Ele que vieste à vida, por causa de Quem servirás à salvação universal, para
que o antigo desígnio de Deus, a Encarnação do Verbo e a nossa divinização, se cumpra através de ti. A tua vontade é
alimentares-te das palavras divinas e fortificares-te com a sua seiva, como «oliveira fecunda na casa de Deus», como «árvore
plantada à beira das águas» do Espírito, como árvore da vida, que deu o seu fruto no tempo que lhe foi destinado: o fruto
que é o Deus Encarnado, Vida eterna de todos os seres. Guardas todos os pensamento gostoso e útil para a alma, mas
todo aquele que é supérfluo e que seria um perigo para a alma tu o rejeitas ainda antes de o provar. Os teus olhos «estão
sempre voltados para o Senhor», olhando a luz eterna e inacessível. Teus ouvidos escutam a palavra de Deus e deleitam-se
com a cítara do Espírito; foi por eles que o Verbo entrou para Se fazer Carne. Tuas narinas respiram deliciadas o aroma
dos perfumes do Esposo, que é Ele próprio um perfume, espontaneamente derramado para perfumar a Sua humanidade:
«O teu nome é um perfume que se espalha», diz a Escritura. Os teus lábios louvam o Senhor, e estão ligados aos Seus lábios. A
tua língua e o teu palato discernem as palavras de Deus e saciam-se com a suavidade divina. Oh coração puro e sem
mácula, que vê e deseja o Deus imaculado!
É neste seio que o Ser ilimitado veio habitar; do seu leite se alimentou Deus, o Menino Jesus. Oh porta de Deus, sempre
virginal! Eis as mãos que suportam Deus, e esses joelhos que são um trono mais elevado que os querubins: por eles «as
mãos fracas e os joelhos trémulos» foram fortalecidos. Os seus pés são guiados pela lei de Deus como por uma lâmpada que
brilha, e correm após Ele sem se voltarem, até que tenham feito chegar aquela que ama junto do Bem-Amado. Em todo
o seu ser ela é o tálamo do Espírito, a Cidade de Deus Vivo, que «alegra os canais do rio», isto é, as correntes dos carismas
do Espírito: «Toda bela, toda próxima de Deus». Dominando os querubins, mais alta que os serafins, próxima de Deus: é a
ela que esta palavra se aplica!
10. Oh maravilha que ultrapassa todas as maravilhas: uma mulher é colocada mais alto que os serafins, porque Deus
surgiu abaixado «um pouco inferior aos anjos»! Que o sapientíssimo Salomão se cale, e não torne a dizer: «Nada de novo
debaixo do sol». Oh Virgem cheia da graça divina, templo santo de Deus, que o Salomão espiritual, o Príncipe da Paz,
construiu e habita, o ouro e as pedrarias não te dão mais beleza, mas mais que o ouro, é o Espírito que te dá o teu
esplendor. Por pedrarias, tens a pérola preciosíssima, Cristo, a Brasa da divindade. Suplica-Lhe que toque os nossos
lábios, para que, purificados, Lhe cantemos, com o Pai e o Espírito, a natureza única da Divindade em três Pessoas:
«Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos».
Santo é o Pai, que quis que em ti e por ti se cumprisse o mistério que predeterminara antes de todos os séculos. Santo é o
Forte, o Filho de Deus, e Deus Monógeno, que hoje te faz nascer, primogénita de uma mãe estéril, para que, sendo Ele
próprio Filho Único do Pai e «Primogénito de toda a criatura», possa nescer de ti, como Filho único de uma Virgem-Mãe,
«Primogénito de uma multidão de irmãos», semelhante a nós e por ti participante da nossa carne e do nosso sangue. Apesar
disso, não te fez nascer de um só pai ou de uma só mãe, para que ao único Monógeno fosse reservado em perfeição o
privilégio de Filho Único: Ele é, com efeito, Filho Único, somente Ele de um Pai só, somente Ele de uma Mãe só.
Santo é o Imortal, o Espírito de toda a santidade, que pelo orvalho da Sua Divindade te guardou intocada pelo fogo
divino: é isto que significou antecipadamente a sarça ardente.
Eu te saúdo, oh Porta das Ovelhas, morada santíssima da Mãe de Deus. Eu te saúdo, oh Porta da Ovelhas, domicílio
ancestral da tua rainha, antigamente redil das ovelhas de Joaquim, mas hoje tornada Igreja do rebanho espiritual de Cristo
e imitação do céu. Outrora recebias uma vez por ano um anjo de Deus, que agitava as águas e devolvia a saúde a um só
homem, livrando-o do mal que o paralisava; agora recebes multidões de potências celestes que celebram connosco a Mãe
de Deus, Abismo de Maravilhas, fonte da cura universal. Tu recebeste, não um anjo servidor, mas o «Anjo do Grande
Conselho», descido sem ruído algum sobre o velo de lã como uma chuva de bondade, Aquele que renovou toda a
natureza, doente e a ponto de se perder, com uma saúde inalterável e uma vida sem velhice: por Ele, o paralítico que em
ti jazia saltou como um veado. Eu te saúdo, oh preciosa Porta das Ovelhas, e que se multiplique a tua graça!
Eu te saúdo, Maria, filha dulcíssima de Ana. De novo para ti o amor me impele. Como descrever o teu caminhar cheio de
seriedade, os teus vestidos, a graça de teu rosto, a maturidade do discernimento num corpo juvenil? A tua forma de estar
foi modesta, distante de todo o luxo e de toda a indolência; o teu caminhar era grave, sem precipitação, sem preguiça; o
teu carácter era sério, temperado de júbilo, de uma perfeita reserva a propósito dos homens – disto é testemunho a
inquietação que te surgiu aquando da proposta inesperada do anjo. A teus pais dócil e obediente, tinhas humildes
sentimentos nas mais altas contemplações, palavra amável, provinda de uma alma pacífica. Em resumo: que outra digna
morada senão tu para Deus? Com razão todas as gerações te proclamam bem-aventurada, oh glória insigne da
humanidade! Tu és a honra do sacerdócio, a esperança dos cristãos, a planta fecunda da virgindade, porque é através de
ti que o renome da virgindade se estendeu aos confins do mundo. «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o Fruto do teu
ventre». Aqueles que confessam a tua maternidade divina são benditos, e malditos aqueles que a negam.
12. Joaquim e Ana, casal abençoado, recebei de mim estas palavras de aniversário. Oh filha de Joaquim e de Ana, oh
Soberana, acolhe a palavra deste teu servo pecador, mas inflamada pelo amor, e para quem tu és a única esperança de
alegria, a protectora da vida e, junto de teu Filho, a reconciliadora e firme garantia da salvação. Possa tu aliviar-me do
fardo dos meus pecados, dissipar a névoa que obscurece o meu espírito e o peso que me agarra à matéria. Possas tu deter
as tentações, governar felizmente a minha vida e conduzir-me pela mão até à felicidade do Alto. Concede ao mundo a
paz, e a todos os habitantes ortodoxos desta cidade uma alegria perfeita e a salvação eterna, pelas orações de teus pais e
de todo o Corpo da Igreja. Assim seja, assim seja! «Salve, oh cheia de graça, o Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres, e
bendito o fruto de teu ventre», Jesus Cristo, o Filho de Deus. A Ele a Glória, com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos
séculos. Amém.