A g n u s D e i

LABOREM EXERCENS
João Paulo II
14.09.1981

II
O TRABALHO E O HOMEM

4. No Livro do Génesis

A Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. E ela radica-se nesta convicção também ao considerar todo o património das múltiplas ciências centralizadas no homem: a antropologia, a paleontologia, a história, a sociologia, a psicologia, etc.: todas elas parecem testemunhar de modo irrefutável essa realidade. A Igreja, porém, vai haurir esta sua convicção sobretudo na fonte da Palavra de Deus revelada e, por conseguinte, aquilo que para ela é uma convicção da inteligência adquire ao mesmo tempo o carácter de uma convicção de fé. A razão está em que a Igreja - vale a pena acentuá-lo desde já - acredita no homem. Ela pensa no homem e encara-o não apenas à luz da experiência histórica, não apenas com os subsídios dos multíplices métodos do conhecimento científico, mas sim e em primeiro lugar à luz da Palavra revelada de Deus vivo. Ao referir-se ao homem ela procura exprimir aqueles desígnios eternos e aqueles destinos transcendentes que Deus vivo, Criador e Redentor, ligou ao homem.

A Igreja vai encontrar logo nas primeiras páginas do Livro do Génesis a fonte dessa sua convicção, de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência humana sobre a terra. A análise desses textos torna-nos cônscios deste facto: de neles - por vezes mediante um modo arcaico de manifestar o pensamento - terem sido expressas as verdades fundamentais pelo que diz respeito ao homem, já no contexto do mistério da Criação. Estas verdades são as que decidem do homem, desde o princípio, e que, ao mesmo tempo, traçam as grandes linhas da sua existência sobre a terra, quer no estado de justiça original, quer mesmo depois da ruptura, determinada pelo pecado, da aliança original do Criador com a criação no homem. Ouando este, criado « à imagem de Deus... varão e mulher », (9) ouve as palavras « Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a », (10) mesmo que estas palavras não se refiram directa e explicitamente ao trabalho, indirectamente já lho indicam, e isso fora de quaisquer dúvidas, como uma actividade a desempenhar no mundo. Mais ainda, elas patenteiam a mesma essência mais profunda do trabalho. O homem é imagem de Deus, além do mais, pelo mandato recebido do seu Criador de submeter, de dominar a terra. No desempenho de tal mandato, o homem, todo e qualquer ser humano, reflecte a própria acção do Criador do universo.

O trabalho entendido como uma actividade « transitiva », quer dizer, uma actividade de modo tal que, iniciando-se no sujeito humano, se endereça para um objecto exterior, pressupõe um específico domínio do homem sobre a « terra »; e, por sua vez, confirma e desenvolve um tal domínio. É claro que sob a designação « terra », de que fala o texto bíblico, deve entender-se primeiro que tudo aquela parcela do universo visível em que o homem habita; por extensão, porém, pode entender-se todo o mundo visível, na medida em que este se encontra dentro do raio de influência do homem e da sua procura de prover às próprias necessidades. A expressão « submeter a terra » tem um alcance imenso. Ela indica todos os recursos que a mesma terra (e indirectamente o mundo visível) tem escondidos em si e que, mediante a actividade consciente do homem, podem ser descobertas e oportunamente utilizadas por ele. Assim, tais palavras, postas logo ao princípio da Bíblia, jamais cessam de ter actualidade. Elas abarcam igualmente todas as épocas passadas da civilização e da economia, bem como toda a realidade contemporânea, e mesmo as futuras fases do progresso, as quais, em certa medida, talvez se estejam já a delinear, mas em grande parte permanecem ainda para o homem algo quase desconhecido e recôndito.

Se por vezes se fala de períodos de « aceleração » na vida económica e na civilização da humanidade ou de alguma nação em particular, coligando tais « acelerações » ao progresso da ciência e da técnica e, especialmente, às descobertas decisivas para a vida sócio-económica, pode ao mesmo tempo dizer-se que nenhuma dessas « acelerações » faz com que fique superado o conteúdo essencial daquilo que foi dito naquele antiquíssimo texto bíblico. O homem, ao tornar-se - mediante o seu trabalho - cada vez mais senhor da terra, e ao consolidar - ainda mediante o trabalho - o seu domínio sobre o mundo visível, em qualquer hipótese e em todas as fases deste processo, permanece na linha daquela disposição original do Criador, a qual se mantém necessária e indissoluvelmente ligada ao facto de o homem ter sido criado, como varão e mulher, « à imagem de Deus ». E, ao mesmo tempo, tal processo é universal: abrange todos os homens, todas as gerações, todas as fases do progresso económico e cultural e, simultâneamente, é um processo que se actua em todos e cada um dos homens, em todos os sujeitos humanos conscientes. Todos e cada um são contemporâneamente por ele abarcados. Todos e cada um, em medida adequada e num número incalculável de modos, tomam parte em tal processo gigantesco, mediante o qual o homem « submete a terra » com o seu trabalho.

5. O trabalho em sentido objectivo: a técnica

Esta universalidade e, ao mesmo tempo, esta multiplicidade de tal processo de « submeter a terra », projectam luz sobre o trabalho humano, uma vez que o domínio do homem sobre a terra se realiza no trabalho e mediante o trabalho. Assim, vem ao de cima o significado do mesmo trabalho em sentido objectivo, o qual tem depois a sua expressão nas várias épocas da cultura e da civilização. O homem domina a terra quer pelo facto de domesticar os animais e tratar deles, granjeando assim o alimento e o vestuário de que precisa, quer pelo facto de poder extrair da terra e dos mares diversos recursos naturais. Mas o homem, além disso, « submete a terra » muito mais quando começa por cultivá-la e, sucessivamente, reelabora os produtos da mesma, adaptando-os às suas próprias necessidades. A agricultura constitui assim um campo primário da actividade económica e, mediante o trabalho humano, um factor indispensável da produção. A indústria, por sua vez, consistirá sempre no conjugar as riquezas da terra - quer se trate dos recursos vivos da natureza, quer dos produtos da agricultura, quer, ainda, dos recursos minerais ou químicos - com o trabalho do homem, tanto o trabalho físico como o intelectual. Isto é válido, num certo sentido, também no campo da chamada indústria dos serviços e no campo da investigação pura ou aplicada.

Hoje em dia na indústria e na agricultura a actividade do homem, em muitos casos, deixou de ser um trabalho prevalentemente manual, uma vez que os esforços das mãos e dos músculos passaram a ser ajudados pela acção de máquinas e de mecanismos cada vez mais aperfeiçoados.

Não somente na indústria, mas também na agricultura, nós somos testemunhas das transformações que foram possibilitadas pelo gradual e contínuo progresso da ciência e da técnica. E isto, no seu conjunto, tornou-se historicamente causa também de grandes viragens da civilização, a partir das origens da « era industrial », passando pelas sucessivas fases de desenvolvimento graças às novas técnicas, até se chegar às da electrónica ou dos « microprocessores » nos últimos anos.

Se pode parecer que no processo industrial é a máquina que « trabalha », enquanto o homem só cuida nela, tornando possível e mantendo de diversas maneiras o seu funcionamento, também é verdade que, precisamente por isso, o desenvolvimento industrial serve de base para se repropor de um modo novo o problema do trabalho humano. Tanto a primeira industrialização, que fez com que surgisse a chamada questão operária, como as sucessivas mudanças industriais e pós-industriais demonstram claramente que, mesmo na época do « trabalho » cada dia mais mecanizado, o sujeito próprio do trabalho continua a ser o homem.

O desenvolvimento da indústria e dos diversos sectores com ela ligados, até se chegar às mais modernas tecnologias da electrónica, especialmente no campo da miniaturização, da informática, da telemática e outros, indica o papel imenso que, na interacção do sujeito e do objecto do trabalho (no sentido mais amplo desta palavra), assume precisamente aquela aliada do mesmo trabalho gerada pelo pensamento humano, que é a técnica. Neste caso, entendida não como uma capacidade ou aptidão para o trabalho, mas sim como um conjunto de meios de que o homem se serve no próprio trabalho, a técnica é indubitavelmente uma aliada do homem. Ela facilita-lhe o trabalho, aperfeiçoa-o, acelera-o e multiplica-o; favorece o progresso em função de um aumento da quantidade dos produtos do trabalho e aperfeiçoa mesmo a qualidade de muitos deles. Mas é um facto, por outro lado, que nalguns casos a técnica de aliada pode também transformar-se quase em adversária do homem, como sucede: quando a mecanização do trabalho « suplanta » o mesmo homem, tirando-lhe todo o gosto pessoal e o estímulo para a criatividade e para a responsabilidade; igualmente, quando tira o emprego a muitos trabalhadores que antes estavam empregados; ou ainda quando, mediante a exaltação da máquina, reduz o homem a ser escravo da mesma.

Assim, se as palavras bíblicas « submetei a terra », dirigidas ao homem desde o princípio, forem entendidas no contexto de toda a época moderna, industrial e pós-industrial, elas encerram em si indubitavelmente também uma relação com a técnica, com aquele mundo de mecanismos e de máquinas, que é fruto de um trabalho da inteligência humana e a confirmação histórica do domínio do homem sobre a natureza.

A época recente da história da humanidade, e especialmente a de algumas sociedades, trouxe consigo uma justa afirmação da técnica como um coeficiente fundamental de progresso económico; ao mesmo tempo, porém, juntamente com tal afirmação surgiram e continuamente estão a surgir as interrogações essenciais respeitantes ao trabalho humano em relação com o seu sujeito, que é precisamente o homem. Tais interrogações contêm em si uma carga particular de conteúdos e de tensões de carácter ético e ético-social. E por isso elas constituem um desafio contínuo para muitas e diversas instituições, para os Estados e os Governos, bem como para os sistemas e as organizações internacionais; e constituem um desafio também para a Igreja.

6. O trabalho no sentido subjectivo: o homem-sujeito do trabalho

Para continuar a nossa análise do trabalho em aderência às palavras da Bíblia, em virtude das quais o homem tem o dever de submeter a terra, é preciso concentrarmos agora a nossa atenção no trabalho no sentido subjectivo; e isto muito mais do que fizemos pelo que se refere ao significado objectivo do trabalho, porquanto tocámos só com brevidade aquela vasta problemática, que é perfeita e pormenorizadamente conhecida dos estudiosos nos vários campos e também dos mesmos homens do trabalho, segundo as suas especializações. As palavras do Livro do Génesis, a que nos referimos nesta nossa análise, falam de maneira indirecta do trabalho no sentido objectivo; e de modo análogo falam também do sujeito do trabalho; no entanto, aquilo que elas dizem é assaz eloquente e carregado de um grande significado.

O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como « imagem de Deus », é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjectividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir de si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho. É como pessoa que ele trabalha e realiza diversas acções que fazem parte do processo do trabalho; estas, independentemente do seu conteúdo objectivo, devem servir todas para a realização da sua humanidade e para o cumprimento da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão da sua mesma humanidade. As principais verdades sobre este tema foram recordadas ultimamente pelo II Concílio do Vaticano, na Constituição Gaudium et Spes, especialmente no capítulo primeiro dedicado à vocação do homem.

E assim aquele « domínio » de que fala o texto bíblico, sobre o qual estamos a meditar agora, não se refere só à dimensão objectiva do trabalho, mas introduz-nos ao mesmo tempo na compreensão da sua dimensão subjectiva. O trabalho, entendido como processo, mediante o qual o homem e o género humano submetem a terra, não corresponderá a este conceito fundamental da Bíblia senão enquanto, em todo esse processo, o homem ao mesmo tempo se manifestar e se confirmar como aquele que « domina ». Este domínio, num certo sentido, refere-se à dimensão subjectiva ainda mais do que à objectiva: esta dimensão condiciona a mesma natureza ética do trabalho. Não há dúvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem um seu valor ético, o qual, sem meios termos, permanece directamente ligado ao facto de aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre, isto é, um sujeito que decide de si mesmo.

Esta verdade, que constitui num certo sentido a medula fundamental e perene da doutrina cristã sobre o trabalho humano, teve e continua a ter um significado primordial para a formulação dos importantes problemas sociais ao longo de épocas inteiras.

A Idade Antiga introduziu entre os homens uma própria diferenciação típica em categorias, segundo o tipo de trabalho que realizavam. O trabalho que requeria do trabalhador o emprego das forças físicas, o trabalho dos músculos e das mãos, era considerado indigno dos homens livres, e por isso eram destinados à sua execução os escravos. O Cristianismo, ampliando alguns aspectos já próprios do Antigo Testamento, neste ponto operou uma transformação fundamental de conceitos, partindo do conteúdo global da mensagem evangélica, e sobretudo do facto de Aquele que, sendo Deus, se tornou semelhante a nós em tudo, (11) ter passado a maior parte dos anos da vida sobre a terra junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao trabalho manual. Esta circunstância constitui por si mesma o mais eloquente « evangelho do trabalho »; aí se torna patente que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano não é em primeiro lugar o género de trabalho que se realiza, mas o facto de aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da dignidade do trabalho devem ser procuradas sobretudo não na sua dimensão objectiva, mas sim na sua dimensão subjectiva.

Em tal concepção quase desaparece o próprio fundamento da antiga diferenciação dos homens em grupos, segundo o género de trabalho que eles faziam. Isto não quer dizer que o trabalho humano não possa e não deva ser de algum modo valorizado e qualificado de um ponto de vista objectivo. Isto quer dizer somente que o primeiro fundamento do valor do trabalho é o mesmo homem, o seu sujeito. E relaciona-se com isto imediatamente uma conclusão muito importante de natureza ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada o trabalho é « para o homem » e não o homem « para o trabalho». E por esta conclusão se chega a reconhecer justamente a preeminência do significado subjectivo do trabalho sobre o seu significado objectivo. Partindo deste modo de entender as coisas e supondo que diversos trabalhos realizados pelos homens podem ter um maior ou menor valor objectivo, procuramos todavia pôr em evidência que cada um deles se mede sobretudo pelo padrão da dignidade do mesmo sujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do homem que o executa. Por outro lado, independentemente do trabalho que faz cada um dos homens e supondo que ele constitui uma finalidade - por vezes muito absorvente - do seu agir, tal finalidade não possui por si mesma um significado definitivo. De facto, em última análise, a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem - ainda que seja o trabalho mais humilde de um « serviço » e o mais monótono na escala do modo comum de apreciação e até o mais marginalizador - permanece sempre o mesmo homem.

7. Uma ameaça à hierarquia dos valores

Estas afirmações basilares sobre o trabalho, precisamente, resultaram sempre das riquezas da verdade cristã, em particular da mesma mensagem do « evangelho do trabalho », criando o fundamento do novo modo de pensar, de julgar e de agir dos homens. Na época moderna, desde os inícios da era industrial, a verdade cristã sobre o trabalho teve de se contrapor às várias correntes do pensamentomaterialista e economicista.

Para alguns fautores de tais ideias, o trabalho era entendido e tratado como uma espécie de « mercadoria », que o trabalhador - especialmente o operário da indústria - vendia ao dador de trabalho, que era ao mesmo tempo possessor do capital, isto é, do conjunto dos instrumentos de trabalho e dos meios que tornam possível a produção. Este modo de conceber o trabalho encontrava-se especialmente difundido na primeira metade do século XIX. Em seguida, as formulações explícitas deste género quase desapareceram, cedendo o lugar a um modo mais humano de pensar e de avaliar o trabalho. A interacção do homem do trabalho e do conjunto dos instrumentos e dos meios de produção deu azo a desenvolverem-se diversas formas de capitalismo - paralelamente a diversas formas de colectivismo - nas quais se inseriram outros elementos, na sequência de novas circunstâncias concretas, da acção das associações de trabalhadores e dos poderes públicos, e da aparição de grandes empresas transnacionais. Apesar disso, o perigo de tratar o trabalho como uma « mercadoria sui generis » ou como uma « força » anónima necessária para a produção (fala-se mesmo de « força-trabalho ») continua a existir ainda nos dias de hoje, especialmente quando a maneira de encarar a problemática económica é caracterizada pela adesão às premissas do « economismo » materialista.

Para este modo de pensar e de julgar há uma ocasião sistemática e, num certo sentido, até mesmo um estímulo, que são constituídos pelo acelerado processo de desenvolvimento da civilização unilateralmente materialista, na qual se dá importância primeiro que tudo à dimensão objectiva do trabalho, enquanto a dimensão subjectiva - tudo aquilo que está em relação indirecta ou directa com o próprio sujeito do trabalho - fica num plano secundário. Em todos os casos deste género, em todas as situações sociais deste tipo, gera-se uma confusão, ou até mesmo uma inversão, daquela ordem estabelecida desde o princípio pelas palavras do Livro do Génesis: o homem passa então a ser tratado como instrumento de produção; (12) enquanto que ele - ele só por si, independentemente do trabalho que realiza - deveria ser tratado como seu sujeito eficiente, como seu verdadeiro artífice e criador. É precisamente esta inversão da ordem, prescindindo do programa ou da denominação sob cujos auspícios ela se gera, que mereceria - no sentido indicado mais amplamente em seguida - o nome de « capitalismo ». Como é sabido, o capitalismo tem o seu significado histórico bem definido, enquanto sistema, e sistema económico-social, em contraposição ao « socialismo » ou « comunismo ». No entento, à luz da análise da realidade fundamental de todo o processo económico e, primeiro que tudo, das estruturas de produção - qual é, justamente, o trabalho - importa reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho - ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção.

Sendo assim, compreende-se que a análise do trabalho humano feita à luz daquelas palavras que dizem respeito ao « domínio » do homem sobre a terra, se insira mesmo ao centro da problemática ético-social. Uma tal concepção deveria também ter um lugar central em toda a esfera da política social e económica, quer à escala dos diversos países, quer a uma escala mais ampla, das relações internacionais e intercontinentais, com referência em particular às tensões que se esboçam no mundo, não só centradas no eixo Oriente-Ocidente, mas também no outro eixo Norte-Sul. O Papa João XXIII, num primeiro momento, com a sua Encíclica Mater et Magistra, e o Papa Paulo VI, depois, com a Encíclica Populorum Progressio, dedicaram uma decidida atenção a tais dimensões dos problemas éticos e sociais contemporâneos.

8. Solidariedade dos homens do trabalho

Ao tratar-se do trabalho humano, encarado pela dimensão fundamental do seu sujeito, isto é, do homem-pessoa que executa esse trabalho, partindo deste ponto de vista deve fazer-se uma apreciação pelo menos sumária dos processos que se verificaram, ao longo dos noventa anos transcorridos após a Encíclica Rerum Novarum, em relação com a dimensão subjectiva do trabalho. Com efeito, embora o sujeito do trabalho seja sempre o mesmo, isto é, o homem, deram-se todavia notáveis modificações quanto ao aspecto objectivo do mesmo trabalho. E embora se possa dizer que o trabalho, em razão do seu sujeito, é um (um e, de cada vez que é feito, irrepetível) todavia, considerando os seus sentidos objectivos, tem de se reconhecer que existem muitos trabalhos: um grande número de trabalhos diversos. O desenvolvimento da civilização humana proporciona neste campo um enriquecimento contínuo. Ao mesmo tempo, porém, não se pode deixar de notar que, no processar-se de um tal desenvolvimento, não somente aparecem novas formas de trabalho humano, mas há também outras que desaparecem. Admitindo muito embora, em princípio, que isto é um fenómeno normal, importa, no entanto, ver bem se nele se não intrometem, e em que medida, certas irregularidades que podem ser perigosas, por motivos ético-sociais.

Foi precisamente por causa de uma dessas anomalias com grande alcance que nasceu, no século passado, a chamada questão operária, definida por vezes como « questão proletária ». Tal questão - bem como os problemas com ela ligados - deram origem a uma justa reacção social e fizeram com que surgisse e, poder-se-ia mesmo dizer, com que irrompesse um grande movimento de solidariedade entre os homens do trabalho e, em primeiro lugar, entre os trabalhadores da indústria. O apelo à solidariedade e à acção comum lançado aos homens do trabalho - sobretudo aos do trabalho sectorial, monótono e despersonalizante nas grandes instalações industriais, quando a máquina tende a dominar sobre o homem - tinha um seu valor importante e uma eloquência própria, sob o ponto de vista da ética social. Era a reacção contra a degradação do homem como sujeito do trabalho e contra a exploração inaudita que a acompanhava, no campo dos lucros, das condições de trabalho e de previdência para a pessoa do trabalhador. Uma tal reacção uniu o mundo operário numa convergência comunitária, caracterizada por uma grande solidariedade.

Na esteira da Encíclica Rerum Novarum e dos numerosos documentos do Magistério da Igreja que se lhe seguiram, francamente tem de se reconhecer que se justificava, sob o ponto de vista da moral social, a reacção contra o sistema de injustiça e de danos que bradava ao Céu vingança (13) e que pesava sobre o homem do trabalho nesse período de rápida industrialização. Este estado de coisas era favorecido pelo sistema sócio-político liberal que, segundo as suas premissas de « economismo », reforçava e assegurava a iniciativa económica somente dos possuidores do capital, mas não se preocupava suficientemente com os direitos do homem do trabalho, afirmando que o trabalho humano é apenas um instrumento de produção, e que o capital é o fundamento, coeficiente e a finalidade da produção.

Desde então, a solidariedade dos homens do trabalho e, simultaneamente, uma tomada de consciência mais clara e mais compromissória pelo que respeita aos direitos dos trabalhadores da parte dos outros, produziu em muitos casos mundanças profundas. Foram excogitados diversos sistemas novos. Desenvolveram-se diversas formas de neo-capitalismo ou de colectivismo. E, não raro, os homens do trabalho passam a ter a possibilidade de participar e participam efectivamente na gestão e no controlo da produtividade das empresas. Por meio de associações apropriadas, eles passam a ter influência no que respeita às condições de trabalho e de remuneração, bem como quanto à legislação social. Mas, ao mesmo tempo, diversos sistemas fundados em ideologias ou no poder, como também novas relações que foram surgindo nos vários níveis da convivência humana, deixaram persistir injustiças flagrantes ou criaram outras novas. A nível mundial, o desenvolvimento da civilização e das comunicações tornou possível uma diagnose mais completa das condições de vida e de trabalho do homem no mundo inteiro, mas tornou também patentes outras formas de injustiça, bem mais amplas ainda do que aquelas que no século passado haviam estimulado a união dos homens do trabalho para uma particular solidariedade no mundo operário. E isto assim, nos países em que já se realizou um certo processo de revolução industrial; e assim igualmente nos países onde o local de trabalho a predominar continua a ser o da cultura da terra ou doutras ocupações congéneres.

Movimentos de solidariedade no campo do trabalho - de uma solidariedade que não há-de nunca ser fechamento para o diálogo e para a colaboração com os demais - podem ser necessários, mesmo pelo que se refere às condições de grupos sociais que anteriormente não se achavam compreendidos entre estes movimentos, mas que vão sofrendo no meio dos sistemas sociais e das condições de vida que mudam uma efectiva « proletarização », ou mesmo que se encontram realmente já numa condição de proletariado que, embora não seja chamada ainda com este nome, de facto é tal que o merece. Podem encontrar-se nesta situação algumas categorias ou grupos da « intelligentzia » do trabalho, sobretudo quando, simultaneamente com um acesso cada vez mais ampliado à instrução e com o número sempre crescente das pessoas que alcançaram diplomas pela sua preparação cultural, se verifica uma diminuição de procura do trabalho destas pessoas. Um tal desemprego dos intelectuais sucede ou aumenta: quando a instrução acessível não está orientada para os tipos de emprego ou de serviços que são requeridos pelas verdadeiras necessidades da sociedade; ou quando o trabalho para o qual se exige a instrução, pelo menos profissional, é menos procurado e menos bem pago do que um trabalho braçal. É evidente que a instrução, em si mesma, constitui sempre um valor e um enriquecimento importante da pessoa humana; contudo, independentemente deste facto, continuam a ser possíveis certos processos de « proletarização ».

Assim, é necessário prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condições da sua existência. Para se realizar a justiça social nas diversas partes do mundo, nos vários países e nas relações entre eles, é preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho. Uma tal solidariedade deverá fazer sentir a sua presença onde a exijam a degradação social do homem-sujeito do trabalho, a exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e mesmo de fome. A Igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a « Igreja dos pobres ». E os « pobres » aparecem sob variados aspectos; aparecem em diversos lugares e em diferentes momentos; aparecem, em muitos casos, como um resultado da violação da dignidade do trabalho humano: e isso, quer porque as possibilidades do trabalho humano são limitadas - e há a chaga do desemprego - quer porque são depreciados o valor do mesmo trabalho e os direitos que dele derivam, especialmente o direito ao justo salário e à segurança da pessoa do trabalhador e da sua família.

9. Trabalho e dignidade da pessoa

Permanecendo ainda na perspectiva do homem como sujeito do trabalho, é conveniente tocar, ao menos de maneira sintética, alguns problemas quedefinem mais de perto a dignidade do trabalho humano, porque isso irá permitir caracterizar mais plenamente o seu valor moral específico. E importa fazê-lo tendo sempre diante dos olhos a sobredita vocação bíblica para « submeter a terra », (14) na qual se expressou a vontade do Criador, querendo que o trabalho tornasse possível ao homem alcançar um tal « domínio » que lhe é próprio no mundo visível.

A intenção fundamental e primordial de Deus quanto ao homem, que Ele « criou ... à Sua semelhança, à Sua imagem », (15) não foi retratada nem cancelada, mesmo quando o homem, depois de ter infringido a aliança original com Deus, ouviu estas palavras: « Comerás o pão com o suor da tua fronte ». (16) Tais palavras referem-se àquela fadiga, por vezes pesada, que a partir de então passou a acompanhar o trabalho humano; no entanto, elas não mudam o facto de o mesmo trabalho ser a via pela qual o homem chegará a realizar o « domínio » que lhe é próprio no mundo visível, « submetendo » a terra. Esta fadiga é um facto universalmente conhecido, porque universalmente experimentado. Sabem-no os homens que fazem um trabalho braçal, executado por vezes em condições excepcionalmente difíceis; sabem-no os que labutam na agricultura, os quais empregam longas jornadas no cultivar a terra, que por vezes apenas « produz espinhos e abrolhos »; (17) como o sabem também aqueles que trabalham nas minas e nas pedreiras, e igualmente os operários siderúrgicos junto dos seus altos-fornos, e os homens que exercem a actividade no sector da construção civil e em obras de construção em geral, frequentemente em perigo de vida ou de invalidez. Sabem-no bem, ainda, os homens que trabalham agarrados ao « banco » do trabalho intelectual, sabem-no os cientistas, sabem-no os homens sobre cujos ombros pesa a grave responsabilidade de decisões destinadas a ter vasta ressonância no plano social. Sabem-no os médicos e os enfermeiros que velam de dia e de noite junto dos doentes. Sabem-no as mulheres que, por vezes sem um devido reconhecimento por parte da sociedade e até mesmo nalguns casos dos próprios familiares, suportam dia-a-dia as canseiras e a responsabilidade do arranjo da casa e da educação dos filhos. Sim, sabem-no bem todos os homens do trabalho e, uma vez que o trabalho é verdadeiramente uma vocação universal, sabem-no todos os homens sem excepção.

E no entanto, com toda esta fadiga - e talvez, num certo sentido, por causa dela - o trabalho é um bem do homem. E se este bem traz em si a marca de um bonum arduum - « bem árduo » - para usar a terminologia de Santo Tomás de Aquino, (18) isso não impede que, como tal ele seja um bem do homem. E mais, é não só um bem « útil » ou de que se pode usufruir, mas é um bem « digno », ou seja, que corresponde à dignidade do homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta. Querendo determinar melhor o sentido ético do trabalho, é indispensável ter diante dos olhos antes de mais nada esta verdade. O trabalho é um bem do homem - é um bem da sua humanidade - porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, « se torna mais homem ».

Sem esta consideração, não se pode compreender o significado da virtude da laboriosidade, mais exactamente não se pode compreender por que é que a laboriosidade haveria de ser uma virtude; efectivamente, a virtude, como aptidão moral, é algo que faculta ao homem tornar-se bom como homem. (19) Este facto não muda em nada a nossa justa preocupação por evitar que no trabalho, mediante o qual a matéria é nobilitada, o próprio homem não venha a sofrer uma diminuição da sua dignidade. (20) É sabido, ainda, que é possível usar de muitas maneiras do trabalho contra o homem, que se pode mesmo punir o homem com o recurso ao sistema dos trabalhos forçados nos lager (campos de concentração), que se pode fazer do trabalho um meio para a opressão do homem e que, enfim, se pode explorar, de diferentes maneiras, o trabalho humano, ou seja o homem do trabalho. Tudo isto depõe a favor da obrigação moral de unir a laboriosidade como virtude com a ordem social do trabalho, o que há-de permitir ao homem « tornar-se mais homem » no trabalho, e não já degradar-se por causa do trabalho, desgastando não apenas as forças físicas (o que, pelo menos até certo ponto, é inevitável), mas sobretudo menoscabando a dignidade e subjectividade que lhe são próprias.

10. Trabalho e sociedade: familia, nação

Confirmada deste modo a dimensão pessoal do trabalho humano, deve-se passar depois para a segunda esfera de valores, que com ele anda necessariamente unida. O trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do homem. Estas duas esferas de valores - uma conjunta ao trabalho e a outra derivante do carácter familiar da vida humana - devem unir-se entre si e compenetrar-se de um modo correcto. O trabalho, de alguma maneira, é a condição que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que o homem obtém normalmente mediante o trabalho. Assim, trabalho e laboriosidade condicionam também o processar-se da educação na família, precisamente pela razão de que cada um « se torna homem » mediante o trabalho, entre outras coisas, e que o facto de se tornar homem exprime exactamente a finalidade principal de todo o processo educativo. Como é evidente, entram aqui em jogo, num certo sentido, dois aspectos do trabalho: o que faz dele algo que permite a vida e a manutenção da família, e aquele outro mediante o qual se realizam as finalidades da mesma família, especialmente a educação. Não obstante a distinção, estes dois aspectos do trabalho estão ligados entre si e completam-se em vários pontos.

Deve-se recordar e afirmar que, numa visão global, a família constitui um dos mais importantes termos de referência, segundo os quais tem de ser formada a ordem sócio-ética do trabalho humano. A doutrina da Igreja dedicou sempre especial atenção a este problema e será necessário voltar ainda a ele no presente documento. Com efeito, a família é, ao mesmo tempo, uma comunidade tornada possível pelo trabalho e a primeira escola interna de trabalho para todos e cada um dos homens.

A terceira esfera de valores que se apresenta, na perspectiva aqui mantida - a perspectiva do sujeito do trabalho - abarca aquela grande sociedade de que o homem faz parte, em virtude de laços culturais e históricos particulares. Tal sociedade - mesmo quando não tenha ainda assumido a forma completa de uma nação - é não só a grande « educadora » de cada um dos homens, se bem que indirectamente (pois cada pessoa recebe na família os conteúdos e os valores que constituem, no seu conjunto, a cultura de uma determinada nação), mas é também uma grande encarnação histórica e social do trabalho de todas as gerações. Tudo isto faz com que o homem ligue a sua identidade humana mais profunda ao facto de pertencer a uma nação, e encare o seu trabalho também como algo que irá aumentar o bem comum procurado juntamente com os seus compatriotas, dando-se conta assim de que, por este meio, o trabalho serve para multiplicar o património da inteira família humana, de todos os homens que vivem no mundo.

Estas três esferas conservam de modo permanente a sua importância para o trabalho humano visto na sua dimensão subjectiva. E esta dimensão, ou seja, a concreta realidade do homem do trabalho, tem precedência sobre a dimensão objectiva. Na dimensão subjectiva é que se realiza, antes de mais nada, aquele « domínio » sobre o mundo da natureza, que o homem é sempre chamado a exercer, desde o princípio, segundo as palavras do Livro do Génesis. O próprio processo de « submeter a terra », quer dizer, o trabalho sob o aspecto da técnica, é caracterizado no decorrer da história, e especialmente nestes últimos séculos, por um imenso desenvolvimento dos meios produtivos à disposição; e isso é um fenómeno vantajoso e positivo, contanto que a dimensão objectiva do trabalho não tome o predomínio sobre a dimensão subjectiva, tirando ao homem ou diminuindo a sua dignidade e os seus direitos inalienáveis.