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SÃO JERÔNIMO: A VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA

Parte IV
O estado virginal é superior ao estado matrimonial

» CAPÍTULO XIX

Agora que ultrapassei as pedras e encolhos, devo me por ao largo e ir a toda velocidade para chegar ao destino. Você, se sentindo uma pessoa sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco, não de natureza.

Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir e muitos outros homens apostólicos e eloqüentes, que expuseram as mesmas explicações contra Ebião, Theodoto de Bizâncio e Valentino, escreveram volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que prolongar meu livro por uma extensão indevida.

» CAPÍTULO XX

Agora dirijo meu ataque contra a passagem na qual, desejando mostrar seu talento você faz uma comparação entre virgindade e casamento. Eu não poderia deixar de rir, e penso no provérbio: viu você alguma vez uma dança cautelosa?

Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão, Isaac e Jacó, que foram casados? Não são as crianças diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães? E se assim é, somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal. Porque de acordo com esses, há mais desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".

Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os detalhes, não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz que confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos inimigos.

» CAPÍTULO XXI

Mas como não negamos o que está escrito, assim também rejeitamos o que não está escrito. Acreditamos que Deus nasceu de uma Virgem, porque lemos assim. Não acreditamos que Maria teve união marital depois que deu à luz porque não lemos isso. Nem afirmamos tal para condenar o casamento, porque a virgindade é o fruto do casamento; mas porque quando estamos tratando de santos não devemos julgar apressadamente. Pois se adotássemos a possibilidade como padrão de julgamento, poderíamos sustentar que José teve várias esposas porque Abraão teve, e também Jacó, e que aqueles que eram irmãos do Senhor nasceram daquelas esposas, uma criação imaginária que alguns sustentam com uma temeridade que nasce da audácia e da piedade.

Você diz que Maria não continuou virgem. Eu brado ainda mais que José, ele mesmo, aceitou que Maria era virgem, de modo que de um casamento virgem nasceu um filho virgem. Porque se, como um homem santo, ele não se apresentou com a acusação de fornicação, e está escrito que ele não teve outra esposa, mas foi o guardião de Maria, aquela que foi tida por sua esposa mas não ele por seu marido; a conclusão é que aquele que foi julgado digno de ser chamado pai do Senhor, permaneceu casto.

» CAPÍTULO XXII

E agora que vou fazer uma comparação entre virgindade e casamento, rogo a meus leitores para não suporem que louvando a virgindade, tenho em menor grau o casamento, e discrimino os santos do Antigo Testamento com relação àqueles do Novo, isto é, aqueles que tinham esposas daqueles que se mantiveram livres dos laços de mulheres; antes, penso que de acordo com a diferença de tempo e circunstâncias, uma regra foi aplicada aos primeiros, uma outra a nós, sobre quem sobrevirá o fim do mundo.

Tanto que continua vigorando a lei : "Sede férteis e multipliquai-vos e povoai a terra"; e: "Amaldiçoada é a mulher estéril que não gerou semente em Israel"; elas todas que casaram e foram dadas em matrimônio, deixaram pai e mãe, e se tornaram uma só carne.

Mas de repente com a força do trovão se fizeram ouvir essas palavras: "O tempo está se acabando, em que doravante aqueles que têm esposas sejam como se não tivessem"; aderindo ao Senhor, nós somos feitos um espírito com Ele. E por quê?

Porque "aquele que é solteiro está preocupado com as coisas do Senhor, de modo que poderá agradar ao Senhor; mas aquele que é casado está preocupado com as coisas do mundo, do modo como agradará a sua esposa. E aqui está a diferença também entre a esposa e a virgem. Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, porque será santa tanto no corpo como no espírito; mas aquela que é casada, está preocupada com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido".

Por que você sofisma? Por que resiste? O vaso de eleição disse isso. Disse-nos que há uma diferença entre a esposa e a virgem. Observe qual deva ser a felicidade daquele estado no qual mesmo a distinção de sexo desaparece. A virgem não é mais chamada mulher. "Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, de modo que é santa no corpo e no espírito".

A virgem é definida como aquela que é santa no corpo e no espírito, porque não é bom ter uma carne virgem se a mulher se põe casada no espírito. "Mas aquela que é casada está preocupada com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido". Julga você que não há diferença entre uma que gasta seu tempo em oração e jejuns daquela que se sente impelida, ao aproximar-se seu marido, a arranjar sua aparência, andar com passos afetados, e demonstrar atos de carinho?

O objetivo da virgem é aparecer menos faceira; ela quer se guardar de modo a esconder suas atrações naturais. A mulher casada tem seu pincel preparado ante seu espelho, e em desacordo com seu Criador, esforça-se para adquirir algo mais do que sua beleza natural. Então lhe chegam as conversas de seus filhos, o barulho da casa, as crianças buscando sua palavra e pedindo seus beijos, a lista das despesas, o cuidado para acertar as despesas. De um lado você a vê na companhia dos cozidos, cercada de gritos e preparando o alimento; você ali ouve o barulho de uma multidão de fiandeiras. Enquanto isso, chega uma mensagem que o marido e seus amigos estão chegando. A esposa, como uma andorinha, voa por toda a casa. Ela deve cuidar de todas as coisas. Está o sofá arrumado? Está o piso varrido? Estão as flores nas jarras? E o jantar está pronto?

Diga-me, rogo-lhe, onde entre tudo isso há lugar para pensar em Deus? São essas casas tranqüilas? Onde há as batidas do tambor, o barulho e a algazarra do órgão e do alaúde, o tinir dos címbalos, pode se encontrar alguma preocupação com o temor de Deus? O parasita é repreendido e se sente orgulhoso da honra. Entram depois as vítimas meio despreparadas para as paixões, uma referência para todo olhar lúbrico. A infeliz esposa ou deve achar prazer neles e perecer, ou ficar desgostosa e provocar seu marido. Disso surge a discórdia, a semente conspiratória do divórcio.

Ou suponha que você encontre uma casa onde essas coisas são desconhecidas, o que acontece em pequena proporção! Contudo, mesmo ali, o desempenho do dono da casa, a educação das crianças, as necessidades do marido, a correção dos servos, não falham em afastar a mente do pensamento de Deus. "Deixou de ficar com Sara como se fica com as mulheres" - assim diz a Escritura, e mais tarde Abraão recebeu a ordem: "Presta atenção em tudo o que Sara te disser". [Porque] ela não está tomada de ansiedades e dor de parto e, tendo passado pela mudança de vida [sexual], deixou de exercer as funções de uma mulher, estando liberta do esquecimento de Deus; não tem desejo por seu marido, mas, pelo contrário, seu marido se torna sujeita a ela, e a voz do Senhor lhe ordena: "Presta atenção em tudo o que Sara te disser". Então, começam a ter tempo para rezar. Porque enquanto demorou a ser pago o dever do matrimônio, a determinação de rezar foi negligenciada.

» CAPÍTULO XXIII

Não nego que se encontram mulheres santas entre as viúvas e aquelas que têm marido; mas se tornam santas logo que deixam de ser esposas, ou se no estrito dever do matrimônio imitam a castidade virginal. O Apóstolo, como se Cristo falasse por sua boca, brevemente deu testemunha disso quando disse: "Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, como poderá agradar ao Senhor; mas aquela que é casada está preocupada com as coisas do mundo, como poderá agradar a seu marido".

Ele nos deixa ao livre exercício de nossa razão a esse respeito. Não determina obrigação a ninguém nem induz alguém em cilada; somente persuade àquilo que é próprio quando deseja que todos os homens sejam como ele mesmo. Não emitiu, é verdade, um mandamento do Senhor a favor da virgindade, porque essa graça sobrepuja o poder do homem desassistido, e seria usar um ar de imodéstia forçar os homens a se porem a voar em face de sua natureza, e dizer em outras palavras: "Quero que você seja como são os anjos do céu". É essa angélica pureza que assegura à virgindade a mais alta recompensa, e o Apóstolo poderia parecer desprezar um sistema de vida que não é culposo.

Não obstante, no contexto a seguir diz: "Mas presto meu julgamento como alguém que obteve misericórdia do Senhor para ficar fiel. Penso, portanto, que isso é bom em razão da atual aflição, ou seja, que é bom para um homem ser como ele é". O que quer dizer com "a atual aflição"?

"Haverá aflição para aqueles que tiverem crianças e para aquelas que amamentarem naqueles dias!" A razão por que a madeira cresce é que poderá ser cortada. O campo é semeado porque poderá ser segado. O mundo está já repleto, e a população está demasiado grande para a terra. A cada dia somos dizimados pela guerra, levados pelas doenças, tragados pelos naufrágios, embora continuemos a levar alguém a juízo por causa dos muros de nossa propriedade.

É somente uma adição à regra geral que é feita por aqueles que seguem o Cordeiro, e que não desvestiram seus ornamentos, que continuam em seu estado de virgindade. Preste atenção ao significado de desvestir. Eu não me aventuro a explicá-lo, por medo de que Helvídio possa se tornar abusivo.

Concordo com você, quando diz que algumas virgens não são senão mulheres de taverna; digo ainda mais, que mesmo o pecado do adultério pode ser encontrado entre elas, e você ficará sem dúvida mais surpreso de ouvir que alguns do clero são taberneiros e alguns monges não são castos. Quem não entende logo que uma mulher de taverna não persistirá virgem, nem adúltero um monge, nem taberneiro um clérigo? Exigiremos virgindade se a virgindade corrompida é um pecado?

De minha parte, me omitindo das outras pessoas, e tratando dos castos, afirmo que aquela que trabalha como vendeira, embora sem provas, poderá ser virgem no corpo, porém não mais será casta em espírito.