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SÃO JERÔNIMO: A VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA |
» CAPÍTULO IX
Helvídio poderá responder: "O que você diz é, na minha opinião,
insignificante. Seus argumentos foram perdidos no tempo e esta discussão
demonstra mais astúcia do que verdade. Por que a Escritura não diria como
diz de Tamar e Judá: 'E ele a tomou como sua esposa e jamais a conheceu'?
Porque Mateus não usou estas palavras se quisesse mesmo expressar esse
significado? Ele diz claramente: 'e não a conheceu até que deu à luz a
um filho'. Logo, após o parto, certamente a conheceu, pois se privou dela
até o momento do parto".
» CAPÍTULO X
Se vocês são tão contenciosos, deveriam com suas próprias idéias testar o
vosso mestre. Vocês não devem permitir que se faça uma separação entre o
parto e o intercurso (sexual). Não devem dizer: "Se uma mulher conceber e
tiver um menino, será imunda sete dias; assim como nos dias da impureza de
suas regras, será imunda. No oitavo dia, circundar-se-á o prepúcio do menino
e, durante trinta e três dias, ela ficará ainda purificando-se do seu sangue
e não tocará em qualquer coisa sagrada" e outras coisas semelhantes. Devem
recordar que se José se aproximasse dela, estaria sujeito à reprovação de
Jeremias: "São como cavalos de lançamento bem nutridos, que andam
relinchando cada um à mulher do seu próximo".
De outra maneira, como se explicariam as palavras "e não a conheceu até
que deu à luz a um filho", se ele ainda deveria aguardar o término do tempo
de purificação, pois senão o seu desejo acabaria por sofrer com um período
ainda mais longo, de 40 dias? A mãe precisava se purificar da mácula de seu
filho recém-nascido de modo que este ficava sob os cuidados da parteira,
enquanto o marido apoiava sua esposa enfraquecida. Portanto, é certo que
[José e Maria] se casaram, já que o Evangelista não pode ser acusado de ter
mentido. Mas Deus nos livre de pensarmos tais coisas a respeito da mãe do
Salvador e de um homem justo! Nenhuma parteira assistiu ao nascimento de
Jesus; nenhuma mulher se intrometeu ali. Com suas próprias mãos [Maria]
envolveu o Menino em pedaços de pano; ela mesma foi mãe e parteira, e, como
nos é relatado, "O colocou numa manjedoura, pois não havia nenhum quarto
para eles na pousada"; eis a declaração [canônica] que refuta as estórias
apócrifas, pois foi Maria mesma que o envolveu em pedaços de pano e o que
se sucederia a partir daí torna impossível a maliciosa idéia de Helvídio,
uma vez que não havia um local adequado para o ato sexual naquela pousada.
» CAPÍTULO XI
Darei agora uma resposta mais ampla a respeito das palavras "antes que
coabitassem" e "não a conheceu até que deu à luz a um filho". Mas devo
observar primeiro que a minha resposta segue a ordem do argumento dele até o
terceiro ponto, pois ele dirá que Maria teve outros filhos quando cita a
passagem: "E José se dirigiu até a cidade de Davi, para se inscrever com
Maria, sua noiva, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os
dias para o parto e ela deu à luz ao seu filho primogênito". Esforça-se,
assim, para provar que o termo "primogênito" só pode ser aplicado a uma
pessoa que teve outros irmãos e que, no caso, seriam filhos de seus pais.
» CAPÍTULO XII
Nossa posição é esta: todo filho único é primogênito mas nem todo
primogênito é filho único. Por primogênito entendemos não apenas aquele que
pode ser sucedido por outros, mas aquele que não teve predecessor. Assim diz
o Senhor a Abraão: "Todo aquele que abrir o útero, de toda a carne, será
oferecido ao Senhor; tanto de homens como de animais, será teu. Contudo, os
primogênitos dos homens deverão ser resgatados; também os primogênitos dos
animais impuros resgatarás".
A palavra de Deus define "primogênito" como todo aquele que abriu o útero.
Ora, se o título pertence apenas àqueles que têm irmãos mais jovens, então
os sacerdotes não poderiam reivindicar o primogênito até que outros
sucessores nascessem, pois, caso contrário, isto é, se não houvesse outros
partos, seria necessário provar o estado de primogênito e não simplesmente o
de filho único.
"E aqueles que devem ser resgatados com um mês de idade, devem ser
resgatados , de acordo com tua estimativa por cinco siclos [de moedas],
além do siclo do santuário. Mas o
primogênito de um boi ou de uma ovelha ou de uma cabra, não deverás
resgatar; eles são sagrados". A palavra de Deus me compele a dedicar a Deus
o que quer que abra o útero se for o primogênito de animais puros; se de
animais impuros, devo resgatá-lo, dando o valor devido ao sacerdote.
Poderia replicar: Por que me sujeitais ao curto espaço de um mês? Por
que falais do primogênito, quando não posso dizer que há irmãos que irão
nascer? Esperai até que nasça o segundo filho.
Não explico nada ao sacerdote, como se apenas o nascimento do segundo desse
ao primeiro que tive a condição de primogênito. Não deveria, ao pé da
letra, chamar-me e convencer-me de louco, se em vez de declarar que
primogênito é um título devido àquele que rompe o útero, pretendesse
restringir essa condição àqueles que após terão irmãos? Então, tomando o
caso de João: estamos de acordo que ele foi filho único; eu precisaria
saber se ele não foi também filho primogênito, e se não foi absolutamente
sujeito à lei. Não há dúvidas quanto a isso.
À toda hora a Escritura assim fala do Salvador: "E quando chegou o dia de
sua purificação, de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram a Jerusalém
para apresentá-lo ao Senhor [como está prescrito na lei do Senhor, todo
macho que abre o útero deve ser consagrado ao Senhor] e para oferecer em
sacrifício de acordo com o que é prescrito na lei do Senhor, um par de
rolinhas ou duas pombas novas". Se esta lei se refere somente aos
primogênitos, e esses deveriam ser os primogênitos com irmãos sucessores,
ninguém seria obrigado pela lei se não pudesse afirmar que houve sucessores.
Mas visto que, como aquele que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei do
primogênito, deduzimos que é chamado primogênito aquele que abre o útero
da mãe e que não foi precedido por ninguém, e não aquele cujo nascimento foi
seguido por outro de irmão mais novo.
Moisés escreve no Êxodo: "E acontecerá ao passar da meia-noite que o
Senhor ferirá todos os primogênitos das terras do Egito, desde o primogênito
do Faraó que reina em seu trono até os primogênitos dos cativos que
estiverem nas prisões; e todos os primogênitos do acampamento". Diga-me: eram
os que pereceram pelas mãos do Exterminador somente seus primogênitos, ou
alguém mais, ou seja, os filhos únicos? Se somente aqueles que tinham
irmãos eram chamados primogênitos, somente os filhos únicos escaparam da
morte. E se, de fato, os filhos únicos foram trucidados, isso se opõe à
sentença pronunciada, porque nascidos para morrer eram somente os
primogênitos. Você deverá ou livrar os filhos únicos da pena, e nesse caso,
se tornará ridículo; ou, se concorda que eles foram mortos, ganhamos a
questão, embora não tenhamos de lhe agradecer isso, porque os filhos únicos
eram também primogênitos.
» CAPÍTULO XIII
A última proposição de Helvídio era esta, e era o que ele queria demonstrar
quando tratou dos primogênitos, afirmando que são citados nos Evangelhos os
irmãos de Jesus. Por exemplo: "Ora, sua mãe e seus irmãos permaneciam
procurando falar com Ele". E em outro lugar: "Depois disso Ele foi para
Cafarnaum, com sua mãe e seus irmãos". E de novo: "Seus irmãos então lhe
disseram: 'Parte daqui e vai para a Judéia, porque teus discípulos podem
também testemunhar as obras que fazes. Porque ninguém faz nada em
segredo, mas procura ser conhecido abertamente. Se realizas tais coisas,
manifesta-te ao mundo". E João acrescenta: "Porque mesmo seus irmãos
não acreditavam nele".
Também Marcos e Mateus: "E indo à sua própria terra, ensinava em suas
sinagogas, tanto que [sua gente] ficava atônita e dizia: 'De onde tirou
este homem tal sabedoria e miraculosas obras? Não é o filho do
carpinteiro. Não é sua mãe chamada Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e
Judas? E suas irmãs não moram conosco?'". Lucas, também, nos Atos dos
Apóstolos relata: "Todos aqueles com um só propósito continuaram firmes na
oração, com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e com seus irmãos".
Paulo, o Apóstolo, também uma vez esteve com eles, e testemunha sua
precisão histórica: "E cresci pela revelação, mas não vi os outros
apóstolos, a não ser Pedro e Tiago, o irmão do Senhor". E de novo, em outro
lugar: "Não temos o direito de comer e beber? Não temos o direito de
trabalhar com as viúvas, assim como o resto dos Apóstolos, os irmãos do
Senhor e Pedro?"
E, por medo, ninguém aceitou o testemunho dos judeus, pois foi de sua boca que
ouvimos o nome de Seus irmãos, mas mantivemos que seus conterrâneos ficaram
decepcionados com esse mesmo erro a respeito dos irmãos pelo qual [os
judeus] passaram a acreditar sobre o pai, Helvídio profere uma dura
observação de advertência e grita: "Os mesmos nomes estão repetidos pelos
Evangelistas em outro lugar e as mesmas pessoas são ali irmãos do Senhor e
filhos de Maria".
Mateus diz: "E muitas mulheres estavam ali (sem dúvida ao pé da cruz do
Senhor), observando de alguma distância, e elas tinham seguido Jesus desde
a Galiléia, ajudando-o, entre as quais estava Maria Madalena, Maria a mãe
de Tiago menor e de José, e Salomé"; e no mesmo lugar, logo depois: "E
muitas outras mulheres que subiram com Ele a Jerusalém".
Lucas também diz: "Ali estavam Maria Madalena e Joana, e Maria, a mãe de Tiago,
e as outras mulheres com elas".
» CAPÍTULO XIV
Minha razão para repetir sempre a mesma coisa é para adverti-lo para não
fazer uma falsa afirmação, divulgando que eu deixei de lado tais
passagens, como propícias a você, e que essa interpretação foi desfigurada e
desfeita não pela evidência da Escritura, mas por argumentos evasivos.
"Observe:" - diz ele - "Tiago e José são filhos de Maria, e são as mesmas
pessoas que são chamadas irmãos pelos judeus. Note que Maria é a mãe de
Tiago o menor e de José. E Tiago é chamado o menor para distingui-lo de
Tiago o maior que era filho de Zebedeu, como Marcos afirma em outro lugar;
E Maria Madalena e Maria a mãe de José estavam onde ele (=Jesus) fora
colocado. E quando passou o Sábado, elas compraram essências para irem
ungi-lo". E, como era de se esperar, ele diz: "Quão pobre e ímpia visão
temos de Maria, se afirmamos que quando outras mulheres estavam ocupadas com
o sepultamento de Jesus, ela, Sua mãe, estava ausente; ou se inventamos
alguma outra Maria; e tudo o mais porque o Evangelho de São João testemunha
que ela estava ali presente, quando o Senhor, do alto da cruz a recomendou
como Sua mãe, agora uma viúva, aos cuidados de João. Ou deveríamos supor
que o Evangelista caiu em tamanho erro e nos induziu a tamanho erro,
chamando Maria a mãe daqueles que eram conhecidos dos judeus como irmãos de
Jesus?"
» CAPÍTULO XV
Que cegueira, que raivosa loucura o leva à sua própria destruição!
Você (Helvídio) diz que a mãe do Senhor estava presente ao pé da cruz; diz
que ela foi confiada ao discípulo João por causa de sua viuvez e condição de
soledade, como se no ponto de vista de sua própria afirmação, ela não
tivesse quatro filhos e numerosas irmãs, com o conforto dos quais ela
poderia se apoiar? Você também lhe dá o nome de viúva, que não se encontra
na Escritura. E embora cite, a cada momento, o Evangelho, somente as palavras
de João lhe desagradam. Você diz, de passagem, que ela estava presente ao
pé da cruz porque parece que você não a omitiu de propósito, e contudo [não
diz] nenhuma palavra sobre as mulheres que estavam com ela. Poderia
perdoá-lo se fosse ignorante, mas vejo que você tem uma razão para suas
omissões.
Deixe-me destacar então o que João disse: "Mas estavam de pé junto à cruz
de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, a esposa de Cléofas, e Maria
Madalena".
Não há nenhuma dúvida que existiam dois apóstolos chamados pelos nomes de
Tiago: Tiago, o filho de Zebedeu, e Tiago, o filho de Alfeu. Por acaso você
tem em vista que o comparativamente desconhecido Tiago o menor, que é
chamado nas Escrituras filho de Maria, não contudo de Maria a mãe do Nosso
Senhor, era apóstolo ou não ? Se era um apóstolo, devia ser o filho de
Alfeu e um crente em Jesus, "porque nem seus irmãos acreditavam n'Ele".
Se não era um apóstolo mas um terceiro Tiago (que possa ser, não sei),
como poderia ser tido como o irmão do Senhor, e como, sendo um terceiro,
poderia ser chamado "menor" para ser destinguido do "maior" , porquanto
maior e menor são usados para mostrar relação existente não entre três, mas
entre dois? Observe, ainda mais, que o irmão do Senhor é um apóstolo,
uma vez que Paulo diz: "Então depois de três dias eu fui a Jerusalém para
visitar Pedro e fiquei com ele quinze dias. Mas não vi nenhum outro dos
apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor". E na mesma Epístola: "E
quando eles perceberam a graça que me foi concedida, Tiago, Pedro e João que
eram considerados os pilares" etc.
E você não poderá supor que esse Tiago fosse o filho de Zebedeu, bastando
para isso ler os Atos dos Apóstolos, onde você encontrará que esse último
já tinha sido trucidado por Herodes. A única conclusão é que a Maria que é
descrita como a mãe de Tiago o menor era a esposa de Alfeu e irmã de Maria,
a mãe do Senhor, aquela que é chamada por João Evangelista "Maria de
Cléofas", seja por filiação, seja por parentesco, seja por outra razão.
Mas se você julga que são duas pessoas porque em outro lugar lemos: "Maria
a mãe de Tiago menor" e aqui: "Maria de Cléofas", você terá a aprender
ainda que era costume na Escritura dar diferentes nomes ao mesmo indivíduo.
Raguel, sogro de Moisés, é chamado também de Jetro. Gedeão, sem nenhuma outra
razão aparente para a troca, de repente se torna Jerubbaal. Ozias, rei de
Judá, tem, como nome alternativo, Azarias. O Monte Tabor é chamado
Itabyrium. Igualmente, o Hermon é chamado pelos fenícios Sanior, e pelos
amorreus Sanir. O mesmo pedaço do país é conhecido por três nomes: Negebb,
Teman e Darom, em Ezequiel. Pedro é também chamado Simão e Cefas. Judas, o
zelote, em outro Evangelho é chamado Tadeu. Há numerosos outros exemplos que
o leitor pode por si mesmo colecionar, em toda a Escritura.
» CAPÍTULO XVI
Agora aqui temos a explicação do que eu me esforcei por mostrar, como foi
que os filhos de Maria, a irmã da mãe de Nosso Senhor, que anteriormente
eram tidos por não crentes, e que depois passaram a acreditar, podem ser
chamados irmãos do Senhor. Possivelmente, o caso foi que um dos irmãos
acreditou imediatamente enquanto os outros não acreditaram senão muito
depois, e que uma Maria era a mãe de Tiago e José, chamada "Maria de
Cléofas", que é a mesma dita esposa de Alfeu, e a outra, a mãe Tiago o
menor. De qualquer modo, se ela (esta última) fosse a mãe do Senhor, São
João teria lhe concedido seu sublime título, como em todos os demais
lugares, e não teria passado uma impressão errônea, chamando-a mãe de outros
filhos. Mas neste ponto não desejo argüir a favor ou contra a suposição de
que Maria, a esposa de Cléofas, e Maria, a mãe de Tiago e José, eram
mulheres diferentes, uma vez que está claramente entendido que Maria, a mãe
de Tiago e José não era a mesma pessoa que a mãe do Senhor.
Como, então - pergunta Helvídio - explica você que eram chamados irmãos do
Senhor aqueles que não eram seus irmãos?
Mostrarei como.
Na Sagrada Escritura há quatro espécies de irmãos: pela natureza, pela
raça, pelo parentesco e pelo amor.
Exemplos de irmãos pela natureza foram Esaú e Jacó, os doze patriarcas,
André e Pedro, Tiago e João.
Irmãos de raça, eram todos os judeus que assim se chamavam um ao outro, como
no Deuteronômio: "Se teu irmão, um homem hebreu, ou uma mulher hebréia, te
for vendida, ele servirá por seis anos; então, no sétimo ano, deixarás que
ele se vá livre". E antes, no mesmo livro: "Deverás de qualquer maneira
fazê-lo teu rei aquele que o Senhor teu Deus escolher: um dentre teus
irmãos deverá ser feito teu rei; não porás um estrangeiro acima de ti, que
não é teu irmão". E de novo: "Não deverás ver o boi ou a ovelha de teu
irmão se extraviar e ficares omisso; deverás com segurança levá-los de novo
para teu irmão. E se teu irmão não morar perto de ti, ou se não o conheces,
então deves trazê-los para tua casa, e ficarão contigo até que teu irmão
venha procurá-los, e tu deves devolvê-los a ele de volta". E o Apóstolo
Paulo diz: "Desejaria eu mesmo ser reprovado por Cristo pela salvação de
meus irmãos, meus próximos pela carne, que são os israelitas".
E ainda mais: são chamados irmãos por parentesco aqueles que são de uma
família, que é pátrio, que corresponde à palavra latina "paternidade",
porque de uma única raiz procede uma numerosa progênie. No Gênese, lemos:
"E Abraão disse a Lot: 'Que não haja luta, eu te peço, entre mim e ti, e
entre meus pastores e os teus, porque somos irmãos'". E de novo: "Assim
Lot escolheu para si toda a planície do Jordão, e se direcionou para leste.
E eles se separaram, um irmão do outro". Certamente Lot não era irmão de
Abraão, mas o filho do irmão Aram de Abraão. Porque Terah gerou Abraão,
Nahor e Arão. E Arão gerou Lot. De novo, lemos: "E Abraão tinha setenta e
cinco anos quando partiu de Haram. E Abraão levou Sarai sua esposa, e Lot,
filho de seu irmão".
Mas se você (Helvídio) ainda duvida que um sobrinho possa ser chamado filho,
permita-me dar-lhe um outro exemplo: "E quando Abraão ouviu que seu irmão fora
feito escravo, tomou seus experimentados homens, nascidos em sua casa,
trezentos e dezoito". E depois de descrever o ataque e o massacre noturno
ele acrescenta: "E trouxe de volta todos os bens, assim como seu irmão Lot".
Que isso seja suficiente como prova de minha afirmação. Mas por medo,
você pode levantar alguma objeção cavilosa, e se contorcer em seu aperto
como uma cobra; assim devo imobilizá-lo rapidamente com as garantias de
provas para fazê-lo parar de sibilar e murmurar, porque sei que você
gostaria de dizer que está baseado não tanto na verdade da Escritura mas em
complicados argumentos.
Jacó, o filho de Isaac e Rebeca, quando por medo da perfídia de seu irmão
tinha ido para a Mesopotâmia, retirou-se para perto [de Labão], rolou a
pedra da tampa do poço e bebeu da fonte de Labão, irmão de sua mãe. "E Jacó
beijou Raquel, ergueu sua voz e chorou. E Jacó disse a Raquel que ele era
irmão de seu pai, que era filho de Rebeca". Aqui está um exemplo da regra
já referida, pela qual um sobrinho é chamado de irmão. E mais: "Labão
disse a Jacó: 'Porque tu és meu irmão, poderias doravante trabalhar para mim
sem pagamento? Diga-me qual o teu propósito'". E assim, quando ao fim de
12 anos, sem conhecimento de seu tio e acompanhado por suas esposas e filhos
estava retornando para sua terra, quando Labão os alcançou na montanha de
Gilead e não conseguiu encontrar os ídolos que Raquel escondera em sua
bagagem, Jacó fez uma pergunta a Labão: "Qual é minha transgressão? Qual
é meu pecado, para que tu me venhas tão irado e me persigas? Procuraste
tudo em minhas bagagens! O que encontraste em todos meus utensílios? Digas
aqui, irmãos perante irmãos, para que eles julguem a nós dois".
Diga-me [Helvídio] quem são esses irmãos de Jacó e Labão que estão aqui
presentes? Esaú, irmão de Jacó, certamente não estava lá, e Labão, o filho
de Bethuel, não tinha irmãos, embora tivesse uma irmã, Rebeca.
» CAPÍTULO XVII
Inumeráveis exemplos da mesma espécie podem ser vistos nos Livros Sagrados.
Mas, para abreviar, volto à última das quatro espécies de irmãos, aqueles,
esclareço, que são irmãos por afeição, e estes novamente são de duas
espécies: aqueles por um relacionamento espiritual e aqueles por um
relacionamento geral. Digo espiritual porque todos nós cristãos somos
chamados irmãos, como no verso: "Veja como é bom e agradável para os
irmãos viverem juntos na unidade". E em outro Salmo, o Salvador diz: "Eu
enumerarei teu nome entre meus irmãos". E , em outro lugar: "Vá a meus
irmãos e dize-lhes..."
Eu disse - por relacionamento geral - porque nós somos todos filhos de um
mesmo Pai, há como um penhor de irmandade entre nós todos. "Dizei àqueles
que vos odiarem:" - diz o profeta - "vós sois nossos irmãos". E o Apóstolo
escrevendo aos Coríntios: "Se algum homem que é chamado irmão for um
fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou caluniador, ou beberrão, ou autor
de extorsões, com alguém assim, não se deve comer".
Agora eu pergunto à que classe você considera que devem pertencer os irmãos
do Senhor, no Evangelho. Eles são irmãos por natureza, você responde. Mas a
Escritura não diz isso. Não os chama nem filhos de Maria, nem de José.
Poderíamos dizer que eles eram irmãos pela raça? No entanto, seria
absurdo supor que uns poucos judeus fossem chamados irmãos quando todos os
judeus daquele tempo poderiam, a esse título, reivindicar o nome. Eram eles
irmãos pela virtude de intimidade estreita e de união de coração e
pensamento? Se eram assim, quais eram exatamente seus irmãos mais do que
os apóstolos que receberam sua instrução privada e eram chamados por Ele Sua
mãe e Seus irmãos? Novamente, se todos os homens, como visto, eram seus
irmãos, seria loucura dar uma mensagem especial: "Vede, seus irmãos o
procuram" porque todos os homens semelhantemente mereceriam esse nome.
A única alternativa é adotar a explicação anterior e considerar que são
chamados irmãos em virtude do vínculo de parentesco, não de amor e simpatia,
nem por prerrogativa de raça, nem pela natureza. Exatamente como Lot foi
chamado irmão de Abraão, e Jacó, de Labão, exatamente como as filhas de
Zelophehad receberam um lote entre seus irmãos, exatamente como o próprio
Abraão tinha a esposa Sarai por sua irmã, porque ele diz: "Ela é de fato
minha irmã, por lado de pai, não pelo lado da mãe" o que quer dizer, ela
era filha de seu irmão e não de sua irmã. De outro modo, o que diremos de
Abraão, um homem justo, falando que a esposa era filha de seu próprio pai?
A Escritura, relatando a história dos homens nos tempos primitivos, não
ultraja nossos ouvidos falando da amplitude em termos expressos, mas prefere
deixá-la ser inferida pelo leitor. Deus mais tarde aplicou a sanção de lei
à proibição, estabelecendo: "Quem toma sua irmã, filha de seu pai, ou de
sua mãe, e mostra sua nudez, comete abominação, deverá ser morto. Aquele
que descobre a nudez de sua irmã, deverá pagar seu pecado".
» CAPÍTULO XVIII
Há coisa que, em sua extrema ignorância, você nunca leu e, portanto, você
negligenciou toda a imensidade da Escritura e usou sua maldade para
ultrajar a Virgem, como o homem da história que sendo desconhecido de todo
mundo e achando que poderia tramar um mau ato pelo qual ganhasse renome,
incendiou o templo de Diana; e quando ninguém revelou o ato sacrílego, diz-se
que ele próprio apareceu e se proclamou como aquele que nele pusera fogo.
Os administradores de Éfeso ficaram curiosos em saber o que o levara a agir
de tal modo, quando então ele respondeu que se não tinha fama por boas
obras, todos poderiam lhe dar crédito por uma má. A história grega relata o
incidente.
Mas você fez pior. Você pôs fogo no templo do corpo do Senhor, você aviltou
o santuário do Espírito Santo, do qual se propôs a fazer gerar um grupo de
quatro irmãos e uma porção de irmãs. Numa palavra, juntando-se ao coro dos
judeus, você diz: "Não é este o filho do carpinteiro Não é sua mãe
chamada Maria? E seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs
não moram todas conosco?". A palavra "todas" não seria usada se não
houvesse um grande número delas. Rogo-te: diga-me quem, antes de você
surgir, tinha conhecimento desta blasfêmia? Quem imaginou essa teoria digna
de dois centavos? Você obteve seu propósito e se tornou notório por um
crime. Pois eu mesmo que sou seu oponente, embora vivamos na mesma cidade,
eu não o conheço como o autor disso, não sei se você é branco ou negro.
Omito as faltas de dicção que abundam em todos os livros que escreveu. Não
digo nada sobre sua introdução absurda. Bons céus! Eu não procuro
eloquência, embora você mesmo não a tenha; você contou para isso com a ajuda
de seu irmão, Cratério. Eu não procuro graça e estilo, mas busco pureza de
alma, porque entre cristãos é o maior dos solecismos e dos vícios de estilo
fundamentar algo na palavra ou ação. Chego à conclusão de meu argumento.
Concordarei com você em que eu não ganhei nada; e você se encontrará num
dilema.
É claro que os irmãos de Nosso Senhor usaram o nome da mesma maneira como
José era chamado seu pai: "Eu e teu pai te procurávamos preocupados"; foi
Sua mãe que disse isso, não os judeus. O Evangelista relata que Seu pai e
Sua mãe ficaram admirados com as coisas que se falavam a Seu respeito, e há
uma passagem semelhante, que já citamos, na qual José e Maria são chamados
Seus pais. Sabendo que você tem sido louco o bastante para se persuadir que
os manuscritos gregos estão corrompidos, agora você talvez alegue a
diversidade de interpretações.
Então procuro o Evangelho de João e ali está claramente escrito: "Filipe
encontrou Natanael, e lhe disse, nós encontramos aquele de quem Moisés na
lei, e os profetas escreveram, Jesus de Nazaré, o filho de José". Você
encontrará certamente isso em seu manuscrito. Agora me diga: como Jesus é
filho de José quando está claro que Ele fora gerado pelo Espírito Santo?
Era José seu verdadeiro pai? Obtuso como você é, não se aventurará a
dizer isso. Era seu suposto pai? Se era, que a mesma regra que você aplica
a José, seja aplicada àqueles que eram chamados irmãos, assim como você
chama José de pai.