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SÃO JERÔNIMO: A VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA |
» CAPÍTULO III
Sua primeira declaração é: "Mateus diz: 'O nascimento de Jesus Cristo foi
assim: quando sua mãe Maria estava prometida a José, antes de coabitarem,
encontrou-se grávida pelo Espírito Santo. E José, seu marido, sendo um homem
justo e não desejando denunciá-la publicamente, pensou em repudiá-la em
segredo. Mas enquanto pensava essas coisas, um anjo do Senhor lhe apareceu
em sonho e disse: 'José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria
como tua esposa, pois o que nela foi gerado provém do Espirito Santo'.
Notem" - continua ele - "que a palavra empregada é 'prometida' e não
'confiada', como vocês dizem; é óbvio que a única razão para estar
prometida é porque deveria se casar um dia. E o Evangelista não iria dizer
'antes de coabitarem' se eles não viessem a coabitar no futuro, já que
ninguém usaria a frase 'antes de jantar' se certa pessoa não fosse jantar.
Também o anjo a chama 'tua esposa' e se refere a ela como unida a José. A
seguir, somos chamados a ouvir a declaração da Escritura: 'E José despertou
do seu sono e fez como o anjo do Senhor lhe havia ordenado, tomando-a para
si como esposa; e não a conheceu até que deu à luz a seu filho'".
» CAPÍTULO IV
Consideremos cada um desses pontos, pois seguindo o caminho dessa impiedade
mostraremos que ele [Helvídio] está se contradizendo. Admite que [Maria]
estava "prometida" e que o próximo passo seria se tornar esposa daquele
homem a quem estava prometida. Novamente, ele a chama de "esposa" e diz que
a única razão para estar prometida seria pelo fato de casar-se um dia. E,
temendo que não o compreendêssemos suficientemente bem, ainda diz: "a
palavra usada é 'prometida' e não 'confiada', isto é, ela ainda não
se tornara esposa, nem mesmo havia sido unida pelo contrato de casamento".
Mas quando ele continua: "o Evangelista jamais usaria tais palavras se eles
não viessem a se juntar futuramente, já que não se usa a frase 'antes de
jantar' se certa pessoa não for jantar", sinceramente não sei se devo
lamentar ou rir. Deveria acusá-lo de ignorância ou de imprudência? Como se
isto, supondo que uma pessoa dissesse: "Antes de jantar no porto, naveguei
para a África", significasse que tais palavras obrigatoriamente
demonstrassem que essa pessoa alguma vez já jantou no porto. Se eu
preferisse dizer: "o apóstolo Paulo, antes de ir para a Espanha, foi preso
em Roma", ou (como também acho provável) "Helvídio, antes de se
arrepender, morreu"; acaso teria Paulo obrigatoriamente estado na Espanha
[após a prisão], ou Helvídio se arrependeria após a morte, ainda que a
Escritura diga: "No Sheol quem vos dará graças?"?
Não podemos entender a preposição "antes" - ainda que muitas vezes signifique
ordem no tempo - como também ordem de pensamento? Portanto, não há
necessidade que nossos pensamentos se concretizem, se alguma causa
suficiente vier a evitá-los (sua concretização). Logo, quando o Evangelista
diz "antes que coabitassem", indica apenas o tempo imediatamente
precedente ao casamento, e mostra que estava em estado bem adiantado, pois
ela já estava prometida, a ponto de estar próximo o momento de se tornar
esposa. Conforme diz [o Evangelista], antes de se beijarem e se abraçarem,
antes da consumação do casamento, ela se encontrou grávida. E ela foi
determinada para pertencer a ninguém mais a não ser José, que guardou com
zêlo o ventre cada vez maior de sua prometida, com olhar inquieto mas
que, a esta altura, quase que com o privilégio de um marido.
Ainda que possa parecer - conforme o exemplo citado - que ele teve relações
sexuais com Maria após o seu parto, o seu desejo poderia ter desaparecido
pelo fato dela já ter concebido anteriormente. E, embora encontremos que
foi dito a José em um sonho: "Não temas em receber Maria por tua esposa"
e, de novo: "José despertou do seu sono e fez conforme o anjo lhe
ordenara, tomando-a por sua esposa", não devemos nos preocupar com isto,
pois ainda que seja chamada "esposa", ela somente deixou de ser prometida,
pois sabemos que é usual na Escritura dar esse título para aqueles que são
noivos.
A seguinte evidência, retirada do Deuteronômio, assim o indica: "Se um
homem" - diz o Escritor [sagrado] - "encontra uma mulher prometida no campo
e a violenta, deve ser morto porque humilhou a esposa do seu próximo"; e,
em outro lugar: "Se uma virgem é prometida a um marido, e um homem a
encontra na cidade e a violenta, então deveis trazê-los para fora do portão
da cidade e os apedrejareis até à morte; a mulher porque não gritou,
estando na cidade, e o homem porque humilhou a esposa do seu próximo.
Fareis isto para eliminar o mal do meio de vós"; e também, em outra parte:
"Que tipo de homem é este que possui uma esposa prometida e ainda não a
recebeu? Que volte para sua casa, para que não morra na batalha, e que
outro homem a despose".
Mas se alguém guarda dúvidas do porquê a Virgem concebeu após estar
prometida [a José], uma vez que não estava prometida a mais ninguém, ou,
para usar os termos da Escritura, estava sem marido, deixe-me explicar três
razões: [1ª] Pela genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele, e
a origem de Maria também precisava ser demonstrada; [2ª] Porque ela não
poderia ser enquadrada na Lei de Moisés para ser apedrejada como adúltera;
[3ª] Porque em sua fuga para o Egito ela precisava de segurança, o que
poderia ser obtido com a ajuda de um guardião, de preferência um marido.
Quem, naquele tempo, acreditaria na palavra da Virgem, de que teria
concebido pelo poder do Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe teria
aparecido para anunciar o propósito de Deus? Todos não a chamariam de
adúltera, como fizeram com Suzana? Ainda nos tempos presentes, quando
praticamente toda a terra abraçou a Fé, não vêm os judeus afirmar que as
palavras de Isaías: "Eis que a 'Virgem' conceberá e dará à luz um
filho" são equívocas porque o termo hebraico almah que aparece na frase,
significa mulher jovem, enquanto que o termo bethulah, que significa
virgem não é usado? Tal posição, abordaremos com mais detalhes
adiante.
Finalmente, com exceção de José, Isabel e da própria Maria - e talvez de
mais alguns poucos que podemos supor ouviram a verdade da boca deles -
todos supunham que Jesus era filho de José. E de tal modo era essa a
suposição que até mesmo os Evangelistas, expressando a opinião corrente -
que é a regra correta para qualquer historiador - o chamavam de pai do
Salvador, como, por exemplo: "Movido pelo Espírito, ele (isto é, Simeão)
veio ao Templo. Então os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as
prescrições da Lei a seu respeito"; e, em outro lugar: "E seus pais iam
todos os anos a Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa"; e, mais adiante:
"Tendo completado os dias, eles retornaram, mas o menino Jesus permaneceu
em Jerusalém, e seus pais não sabiam disso".
Note-se que a própria Maria respondeu ao [anjo] Gabriel com as seguintes
palavras: "Como se sucederá isso, se não conheço varão?", dizendo isto a
respeito de José; e, mais: "Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai
e eu estávamos à tua procura". Não fazemos uso aqui, como muitos fazem, do
discurso dos judeus ou dos escarnecedores. Os Evangelistas chamam José de
"pai" e Maria confessa que ele era pai. Não - como já disse antes - que José
fosse realmente o pai do Salvador, mas, preservando a reputação de Maria,
todos o viam como sendo o pai [de Jesus], pois ouvira a advertência do
anjo: "José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua
esposa, pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo", pois pensava em
repudiá-la em segredo; tudo isto bem demonstrando que o filho não era dele.
Ao dizermos tudo isto, mais com o objetivo de oferecer uma instrução
imparcial do que responder a um oponente, mostramos o porquê José era
chamado de pai de Nosso Senhor e o porquê Maria era chamada de esposa de
José. Isto também responde ao porquê de certas pessoas serem chamadas de
"seus irmãos".
» CAPÍTULO V
Entretanto, este último ponto encontrará seu lugar apropriado mais adiante.
Vamos agora abordar outros tópicos. A passagem que discutiremos agora é:
"E José despertou de seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a
como sua esposa; e não a conheceu até que deu à luz a um filho, e ele lhe
colocou o nome de Jesus". Aqui, antes de mais nada, é absolutamente inútil
para o nosso oponente querer demonstrar, de forma tão elaborada, que essas
palavras se referem à cópula sexual, especialmente na compreensão
intelectual: qualquer um pode negar isso e toda pessoa de bom senso pode
imaginar a estupidez da refutação que Helvídio se esforçou por sustentar.
Ele quer nos ensinar que o advérbio "até que" implica um tempo fixo e
definitivo que, ao se completar, ocorre o evento que até então não se
realizara; como neste caso: "e não a conheceu até que deu à luz um filho".
Segundo ele, é claro que ela [Maria] foi conhecida depois, e que apenas
aguardara o tempo necessário para o nascimento de seu filho. Para defender
sua posição, [Helvídio] amontoa textos e mais textos sem qualquer
critério, comportando-se como um gladiador cego que fica movimentando sua
espada a esmo, dizendo asneiras com sua língua barulhenta e terminando sem
ferir ninguém, a não ser a si próprio.
» CAPÍTULO VI
Nossa resposta é brevemente esta: as palavras "conhecer" e "até que", na
linguagem da Sagrada Escritura, possuem duplo significado. Do primeiro
[quanto a "conhecer"], ele mesmo [Helvídio] nos ofereceu uma dissertação para
mostrar que pode se referir a relação sexual, como também ninguém duvida que
pode ser usada para significar percepção (entendimento, saber), como, por
exemplo: "o menino Jesus permaneceu em Jerusalém e seus pais não tinham
conhecimento disso".
Já que provamos que ele seguiu o uso da Escritura neste caso,
com relação à expressão "até que" será completamente refutado pela
autoridade da mesma Escritura, pois várias vezes significa um certo tempo
sem limitação, como quando Deus diz a certas pessoas pela boca do profeta:
"Até à vossa velhice Eu sou o mesmo"; acaso Ele deixará de ser Deus após
essas pessoas envelhecerem? E, no Evangelho, o Salvador diz aos Apóstolos:
"Estarei convosco até a consumação do mundo"; será que quando chegar o fim
dos tempos o Senhor abandonará Seus discípulos e estes, quando estiverem
sentados sobre os doze tronos para julgar as doze tribos de Israel, estarão
privados da companhia de seu Senhor?
Também Paulo, ao escrever aos Coríntios, declara: "[Cada um, porém, na
sua ordem:] Cristo, as primícias; depois os que são de Cristo, na sua
vinda. Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando
houver destruído todo domínio e toda autoridade e todo poder. Pois é
necessário que Ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo de
seus pés". Certos de que a passagem relata a natureza humana de Nosso
Senhor, não temos como negar que as palavras são Daquele que sofreu [morte]
na cruz e que mais tarde se sentou à direita [de Deus]. O que Ele quer
demonstrar ao dizer que "é necessário que Ele reine até que haja posto todos
os inimigos debaixo de seus pés"? O Senhor reinará apenas até colocar
todos os seus inimigos sob os seus pés e, depois disso, deixará de reinar?
É óbvio que seu reino estará começando quando seus inimigos estiverem sob os
seus pés.
Também Davi, na Quarta Canção da Ascensão, fala assim: "Olhai: assim como
os olhos dos servos olha para a mão de seu mestre; assim como os olhos da
moça olham para a mão de sua senhora; assim também os nossos olhos olham
para o Senhor, nosso Deus, até que tenha misericórdia de nós". Será então
que o profeta, olhando para Deus com o intuito de obter misericórdia, irá
desviar seu olhar para o chão assim que obtiver misericórdia? [Certamente
que não,] ainda que ele, em algum lugar, diga: "Meus olhos quedam pela tua
salvação e pela palavra da tua justiça".
Eu poderia acrescentar inúmeras passagens como estas que, atestam esse uso,
e cobriria com uma nuvem de provas a verbosidade do nosso contendente. Porém,
acrescentarei mais algumas passagens e deixarei que o leitor descubra outras
semelhantes por si mesmo.
» CAPÍTULO VII
A Palavra de Deus diz em Gênesis: "Entregaram a Jacó todos os deuses
estranhos que tinham em suas mãos, e as argolas que penduravam em suas
orelhas; e Jacó os escondeu debaixo do carvalho que está junto a Siquém , e
continuam perdidos até o dia de hoje". Igualmente lemos no final do
Deuteronômio: "Assim, Moisés, servo do Senhor, morreu ali na terra de Moab,
conforme a palavra do Senhor. E foi sepultado no vale, na terra de Moab,
defronte de Beth-Peor; até o dia de hoje ninguém sabe o lugar da sua
sepultura". Certamente devemos identificar a expressão "até o dia de hoje"
com o tempo da composição da história, podendo vocês preferirem o ponto de
vista que afirma que Moisés foi o autor do Pentateuco ou que Esdras o
reeditou. Não faço qualquer objeção em ambos os casos. A questão agora é
saber se as palavras "até o dia de hoje" se referem à época da publicação ou
composição desses livros e, caso o sejam, por que [Helvídio] não mostra -
agora que muitos e muitos anos se passaram desde aquele dia - que os ídolos
escondidos sob o carvalho ou a sepultura de Moisés foram descobertos, já
que ele sustenta, com demasiada teimosia, que certa coisa não pode ocorrer
dentro de um espaço de tempo delimitado pela expressão "até que" mas, para
que venha a ocorrer, é necessário que atinja aquele ponto delimitado por
"até que"?
Ele faria bem se prestasse atenção ao idioma da Sagrada Escritura e
compreendesse como nós - já que se encontra mergulhado na lama; certas
coisas parecem ambíguas quando não claramente declaradas, emboras outras
coisas sejam deixadas assim para exercitar o nosso intelecto. Ora, se ainda
quando o evento permanecia fresco na memória daqueles homens que viram e
conviveram com Moisés já se desconhecia o local da sepultura, quanto mais
agora depois que tantos anos se passaram!
E da mesma forma devemos interpretar o que se conta a respeito de José. O
Evangelista apontou uma circunstância que poderia causar escândalo, ou seja,
que Maria não foi conhecida por seu marido até dar à luz, e ele (o
Evangelista) agiu assim para que tivéssemos a certeza de que ela - de quem
José se absteve enquanto havia lugar para dúvidas sobre a importância da
visão - não foi conhecida depois de seu parto.
» CAPÍTULO VIII
Em resumo: o que eu gostaria de saber é por que José teria se privado [de
Maria] até o dia de ter ela dado à luz? Helvídio certamente responderia:
"Porque ele ouviu o que o anjo disse: 'pois o que nela foi gerado provém
do Espírito Santo'". Nós, então, responderíamos a seguir que [José]
certamente ouviu o que o [anjo] disse: "José, filho de Davi, não temas em
tomar para ti Maria como tua esposa". A razão pela qual ele estava proibido
de repudiar sua esposa era porque não achava que ela fosse adúltera. Seria
então verdade que o [anjo] ordenara que não tivesse relações sexuais com sua
esposa? Não está suficientemente claro que a advertência feita foi para que
não se separasse dela? E poderia o homem justo pensar em se aproximar dela
tendo ouvido que o Filho de Deus estava em seu ventre? Ótimo! Vamos então
acreditar que o mesmo homem que deu tanto crédito a um sonho, não se atreveu
a tocar em sua esposa, mesmo depois, quando ele ouviu dos pastores que o
anjo do Senhor desceu dos céus e lhes disse: "Não temais! Eis que vos
anuncio uma grande alegria, que o será também para todo o povo: nasceu-vos
hoje, na cidade de Davi, o Cristo Senhor"; e após, quando a multidão
celeste se juntou ao anjo e entoaram: "Glória a Deus nas alturas e paz na
terra aos homens de boa vontade"; e ainda quando o justo Simeão abraçou a
criancinha e exclamou: "Podeis levar agora para ti este teu Servo, Senhor,
pois os meus olhos viram a tua salvação, conforme a tua palavra"; e também
quando [José] viu a profetisa Ana, os Magos, a Estrela [de Belém], Herodes,
os anjos...
Eu diria então: quer Helvídio nos fazer acreditar que José, muito bem
inteirado de tamanhas maravilhas, ousaria tocar o templo de Deus, a morada
do Espírito Santo, a mãe do seu Senhor? Maria mantinha todos esses eventos
"guardados em seu coração". Vocês não podem cair na vergonha de dizer que
José desconhecia tudo isso, pois Lucas nos diz: "Seu pai e sua mãe ficavam
maravilhados das coisas que diziam a Seu respeito".
E vocês ainda afirmam, arrogantemente, que a leitura dos manuscritos gregos
é corrupta, embora seja exatamente isso que todos os escritores gregos
fizeram constar em seus livros, e não apenas eles, mas também muitos
escritores latinos interpretaram as palavras da mesma forma... E nem
precisaremos considerar as variações existentes nas cópias, pois todos os
registros existentes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, se
encontram assim desde que foram traduzidos para o Latim; portanto, devemos
crer que a água da fonte brota mais pura que a [água] do rio.