A g n u s D e i

INSTRUMENTUM LABORIS
Sínodo dos Bispos
Vaticano - 1997

IV
ENCONTRO COM JESUS CRISTO VIVO, CAMINHO PARA A SOLIDARIEDADE

Capítulo I: A revelação em Jesus Cristo e a solidariedade divina

    A solidariedade na Aliança do Antigo Testamento

    50. O conceito cristão de uma solidariedade universal, como expressão do mandamento do amor, tem o seu fundamento na fé em Deus criador do universo, que se revela sempre como um Deus solidário com o homem em meio às suas tribulações na história. As narrações da criação revelam a solidariedade divina do Criador com a sua criatura: quando o homem cai em pecado, Deus não o abandona mas mantém o seu amor, prometendo-lhe a salvação (cf. Gn 3,15). O amor divino é solidário no sentido que se manifesta como um vínculo através do qual Deus se compromete com o homem, na realização da sua aspiração à felicidade. A solidariedade de Deus se manifesta nas diversas alianças que Ele celebra com os homens ao largo da História da salvação, mas, sobretudo, através da Aliança com o povo eleito, ao qual, durante o êxodo, no Sinai, dá o decálogo (cf. Ex 20,1-17). O êxodo do Egito é, portanto, o modelo e o ponto de referência de todas as intervenções libertadoras de Deus.(71) Ele compromete-se com a salvação do seu povo e exige por parte deste a fidelidade exclusiva a Ele mesmo como Senhor da Aliança. A fidelidade ao Deus da Aliança supõe, por parte do povo fiel, um compromisso religioso e ético, que se manifesta na santidade do culto e no respeito pela vida.

    51. Na Lei divina proclama-se a lealdade fundamental ao Deus da Aliança através do mandamento do amor divino (cf. Dt 6,5) e nela se anuncia o compromisso do amor ao próximo (cf. Lev 19,18). Esta vinculação entre religião e ética é característica do Antigo Testamento. Os profetas supõem-na e, por isso, com a sua pregação, tratam de manter viva a preocupação pelos pobres, criticando os abusos que derivam da riqueza e do poder (cf. Am 5,7-11; Mi 3,1-4). Não se contentam em criticar o mal, mas convidam à conversão a Deus e a observar as exigências da justiça e do direito (cf. Ez 18,21). Denunciam abertamente a injustiça cometida com os humildes, que é um pecado, enquanto viola a aliança e rompe a comunhão com Deus, realçando a responsabilidade pessoal nos problemas da comunidade (cf. Jr 31,29-30). Os profetas também anunciam, como presença do Reino de Deus na história, uma Aliança Nova na qual a sociedade será renovada e purificada da injustiça (cf. Jr 31,31-34). A liturgia supõe a vinculação entre culto divino e solidariedade fraterna (cf. Sl 15,1-5; 24,3-5). O povo de Israel espera a redenção dos oprimidos como manifestação do amor e da solidariedade de Deus (cf. Sl 18,3).

    A solidariedade na Nova Aliança

    52. No Novo Testamento, a encarnação do Filho de Deus é a maior expressão da solidariedade do Deus da Aliança com a humanidade pecadora (cf. Jo 1,14). A Boa Nova pregada por Jesus Cristo não anula a Lei e os Profetas em nenhuma das suas partes e, sobretudo, conserva intato o imperativo do amor a Deus e ao próximo (cf. Mt 5,17; Mc 12,28-34). Com efeito, Jesus prega a Boa Nova chamando à conversão. As suas bem-aventuranças referem-se aos pacíficos, aos pobres, aos puros de coração e aos perseguidos por causa da justiça (cf. Mt 5,3-11). A exaltação de formas concretas do exercício da misericórdia assume relevância escatológica: na parábola do juízo final, o interrogatório do Juiz concentra-se sobre o amor aos mais pequeninos (cf. Mt 25,31-46). No ensinamento de Jesus, o bom samaritano é proposto como modelo de comportamento solidário por sua caridade com relação ao próximo (cf. Lc 10,29-37). Na comunidade cristã nascente, insiste-se sobre a fraternidade e promovem-se formas concretas de solidariedade e de comunhão de bens (cf. At 4,42-45; 2Cor 8,7-15). O cristianismo primitivo concebe a unidade do amor a Deus e ao próximo como uma exigência fundamental da fé (cf. 1Jo 4,20) e, ao mesmo tempo, considera tal mandamento como a plenitude da lei (cf. Rm 13,8-10).

Capítulo II: Igreja e Solidariedade

    A consciência solidária da Igreja na América

    53. Segundo revelam as respostas aos Lineamenta, nas Igrejas particulares da América existe uma profunda convicção, à luz da revelação divina, da necessidade de uma solidariedade global que abarque as distintas regiões e realidades humanas e espirituais de todo o Continente. A Assembléia Especial para a América do Sínodo dos Bispos oferece uma ocasião providencial: para promover a nova evangelização nas terras do Continente americano; para incrementar a solidariedade entre as suas Igrejas particulares; para iluminar os problemas da justiça nas relações entre Norte e Sul do mesmo Continente.(72)

    O Magistério Pontifício, sobretudo durante este século, tratou em diversas ocasiões sobre o tema da questão social(73) e, especificamente, o Papa João Paulo II manifestou a sua preocupação por uma maior solidariedade universal, como expressão do respeito pela dignidade da pessoa e da vocação cristã do seguimento de Jesus Cristo.(74) A Igreja na América, juntamente com a Igreja espalhada por toda a terra, enquanto peregrina rumo ao grande Jubileu do ano 2000, procura, ao mesmo tempo, perscrutar os sinais dos tempos no Continente americano, que esperam uma resposta a partir do Evangelho.(75) Por isso, especialmente nos últimos tempos, os Pastores do Povo de Deus, em comunhão com o Vigário de Cristo, têm procurado iluminar, através do seu ensinamento e de uma série de iniciativas, a realidade humana na multiplicidade de suas facetas.

    54. As respostas ao questionário dos Lineamenta revelam uma consciência clara da relação existente entre evangelização e promoção humana. Vendo a tribulação de muitas famílias, que constituem as células fundamentais da "ecologia humana" e são os verdadeiros "santuários da vida",(76) os Pastores do Povo de Deus na América, de diversos modos, esforçam-se por promover iniciativas de solidariedade, tanto na própria Igreja diocesana como em nível da Conferência Episcopal: através de campanhas que ilustram os princípios da Doutrina social da Igreja; procurando pôr em prática estes princípios através de estruturas eclesiais (como as Comissões Nacionais e Diocesanas de Iustitia et Pax e de Cáritas) ou outras organizações de pastoral social especializada; mitigando os sofrimentos presentes na sociedade humana através de coletas diocesanas e nacionais, fundos de solidariedade e campanhas de comunicação de bens, solicitando inclusive a ajuda generosa de entidades católicas ou de outras instituições internacionais ou nacionais, fornecendo assessoria jurídica gratuita a quem não pode assumir os honorários de profissionais particulares, etc. As respostas confirmam a generosidade espontânea de todo o Povo de Deus diante destas iniciativas dos Pastores. Além disso, em muitos casos são os próprios leigos que, com a criatividade própria que os caracteriza por estarem imersos no mundo, sugerem e propõem projetos para ir ao encontro das urgências dos mais necessitados.

    55. A consciência solidária manifesta-se também na caridade, como genuína e profunda expressão da fé dos que crêem. A instituição das Cáritas diocesanas e nacionais é um fato em quase todas as dioceses dos países americanos. Muitas respostas aos Lineamenta assinalam a generosidade do povo fiel, que responde não somente com as esmolas às necessidades dos mais pobres, mas também com o serviço pessoal desinteressado e comprometido, tanto em circunstâncias normais, como em ocasião de catástrofes extraordinárias que afligem muitos de maneira imprevista. Em algumas regiões, inclusive, foram organizadas estruturas de cooperação solidária, nas quais intervêm comunidades em nível diocesano ou paroquial, que ajudam outras comunidades com menos recursos, manifestando, deste modo, a solidariedade entre as igrejas. Não obstante esta atitude positiva, que nasce espontaneamente nas pessoas de fé, as mesmas respostas indicam a necessidade de uma formação sistemática, orientada para uma maior conscientização acerca da importância da solidariedade social, como expressão de uma fraternidade que não seja somente uma união humana mas também, fundamentalmente, uma comunhão espiritual em Cristo.

    A ajuda solidária que recebe a Igreja na América

    56. Segundo a procedência, a ajuda solidária recebida pela Igreja que está no Continente pode ser classificada em: solidariedade eclesial e solidariedade extra-eclesial. Ao responder à pergunta sobre o primeiro tipo de colaboração, menciona-se a ajuda solidária que, há já várias décadas, as diversas Igrejas particulares no Continente recebem de instituições eclesiais de outros continentes, especialmente da Europa. Entre essas organizações são citadas: Misereor, Adveniat, Kindermissionwerk, Kirche in not, a Conferência Episcopal Italiana e várias outras contribuições enviadas por dioceses e paróquias européias, que agem como "madrinhas" de entidades do mesmo nível na América. Muitas são as obras de promoção social e as estruturas de evangelização que foram possíveis graças a esta ação solidária, atuada em diversos campos: educação, saúde, habitação, construção de edifícios sagrados, formação catequética e teológica, pastoral vocacional, ação missionária, etc. Com referência à solidariedade extra-eclesial, as respostas mencionam a colaboração de alguns organismos civis em nível municipal, provincial e nacional, que vêm na Igreja uma instituição digna de confiança e, ao mesmo tempo, uma colaboração subsidiária aos seus programas de promoção social. Constata-se, no entanto, que este tipo de colaboração é possível somente quando as relações entre a Igreja e o Estado são cordiais.

    A solidariedade eclesial vem se concretizando, nos últimos anos, também em ajudas provenientes não mais de instituições da Igreja de fora do Continente, mas das mesmas Igrejas particulares na América. Assim sendo, algumas respostas indicam a Conferência Episcopal dos Estados Unidos da América e a Conferência Canadense de Bispos Católicos como órgãos eclesiais que colaboram com os programas de desenvolvimento em muitas dioceses carentes da América Latina. Estas manifestações concretas de solidariedade intereclesial, no Continente, não somente demonstram a clara consciência da fraternidade solidária na Igreja que vive na América, como também constituem um testemunho evangélico de comunhão para toda a sociedade humana.

    A Doutrina Social da Igreja

    57. A experiência cristã é complexa, pois nela confluem a ética da justiça e as exigências da solidariedade fraterna. A fé cristã supõe uma ética social do cristianismo, que a Doutrina Social da Igreja propõe sistematicamente como orientações para o discípulo de Cristo, na vida pessoal e familiar, cultural e social. Das respostas ao questionário dos Lineamenta emerge como convicção geral, no Episcopado das Igrejas particulares da América, de que a Doutrina Social da Igreja é um instrumento útil e necessário para levar adiante uma pastoral da solidariedade cristã. Nela formulam-se princípios de reflexão para se ver a realidade, os critérios de julgamento moral para avaliar o conflito social entre realidade humana e ideal cristão, bem como as regras capazes de iluminar a ação concreta do indivíduo e da comunidade, para promover o bem comum e superar a desordem moral e a injustiça social.(77) Por sua vez, os princípios fundamentais da Doutrina social da Igreja, que se baseiam na dignidade do homem, são o princípio da solidariedade e o princípio da subsidiaridade. Em virtude do primeiro princípio, cada homem é chamado a contribuir para o bem comum da sociedade. Em virtude do segundo princípio, o Estado não pode substituir as livres iniciativas nem as responsabilidades das pessoas e dos grupos sociais intermédios, nos níveis em que eles podem atuar.(78)

    58. Quanto à difusão da Doutrina Social da Igreja, muitas respostas aos Lineamenta informam acerca de iniciativas várias, por parte de Igrejas locais e de Conferências Episcopais: organização de cursos, debates, conferências e semanas sociais; publicação de artigos e ensaios em jornais locais, revistas e boletins eclesiais; ensinamento em seminários, universidades e escolas católicas; etc. São indicadas, ademais, as numerosas instituições eclesiais que se interessam pela Doutrina Social da Igreja, tanto no que se refere ao estudo e aprofundamento da mesma, como no que diz respeito à aplicação prática dos seus princípios. Em muitas Conferências Episcopais existe uma Comissão destinada a promover a Pastoral Social, cuja intervenção nos problemas sociais do país, normalmente, é muito positiva, na medida em que contribui a iluminar, com os princípios da Doutrina Social da Igreja, o diálogo entre sindicatos e empresários, entre governo e operários. A ação de mediação da Igreja, nestes casos, é, em geral, bem aceita por ambas as partes.

    Não obstante esta ampla tarefa de divulgação, as mesmas respostas reconhecem que ainda há muito a fazer, na Igreja na América, para a promoção do conhecimento e da aplicação da Doutrina Social da Igreja. Esta situação é vista, pelas respostas aos Lineamaenta, como a expressão de uma escassa sensibilidade pela dimensão social da fé, que, por sua vez, reflete, de algum modo, uma formação incompleta, tanto dos leigos como do clero. O tema da unidade essencial entre a fé e as obras (cf. Tg 2,14), entre o culto e a vida cristã (cf. Mt 5,23-24), entre a vida espiritual e a prática do princípio evangélico do amor ao próximo, ainda deve se incarnar mais profundamente na consciência de muitos membros do Povo de Deus.

Capítulo III: Áreas de solidariedade na América

    O desafio do Evangelho

    59. O destinatário do desígnio de comunhão e de salvação em Cristo é o homem, "a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção".(79) Não pode haver anúncio do Evangelho separado dos problemas da condição humana, na ordem espiritual e temporal.(80) A comunidade dos discípulos de Jesus Cristo continua sendo a Igreja do bom samaritano, que procura sempre socorrer os aflitos em suas necessidades (cf. Lc 10,29-37). A promoção humana, portanto, está intimamente ligada à evangelização, pois o homem a quem se deve levar os valores do Evangelho não é um conceito abstrato, mas um sujeito atingido por problemas econômicos e sociais concretos.(81)

    60. As respostas provenientes dos países da América Latina assinalam diversas situações angustiantes que tantos povos atravessam naquela área geográfica e cultural: as diferenças cada vez maiores entre ricos e pobres; a complexa situação criada pela dívida internacional;(82) a falta de trabalho e o salário insuficiente, que não será possível superar se um estremecimento da consciência humana não provocar um movimento geral de solidariedade;(83) a recessão econômica e a inflação; a especulação financeira e a fuga de capitais; o comércio de armamentos e as tensões bélicas; o problema do tráfico de drogas; a corrupção na administração pública e o desinteresse pelo bem comum;(84) as condições de indigência em que vivem muitas famílias (fome e doença, carências no plano da assistência sanitária e social, falta de moradia digna e de uma educação). Todas estas realidades são percebidas como graves desordens éticas que pedem uma mudança de mentalidade e convidam a um empenho de toda a Igreja, que, em sua missão evangelizadora, tem como horizonte o homem em sua realidade concreta e integral.

    61. Em outros países do Continente, principalmente no Canadá e nos Estados Unidos da América, existem situações sociais que, de alguma maneira, são análogas às descritas precedentemente, e que provocam preocupação por parte da Igreja, principalmente em dois âmbitos culturais: o dos imigrantes e o das áreas marginalizadas das grandes cidades. Também nestes ambientes fazem-se presentes complexos problemas sociais como: desocupação, indigentes condições de vida (fome, carência de moradia e falta de higiene), dependência de drogas e violência, incapacidade de adaptação social por parte de muitos imigrantes, delinqüência juvenil, etc. Em casos como estes, as comunidades cristãs vivem os mencionados problemas como exigências evangélicas de serviço ao próximo e tentam dar uma resposta adequada, desde o ponto de vista da assistência material, que é, ao mesmo tempo, mensagem e testemunho de caridade cristã. Nestas atividades sociais percebe-se um bom espírito de colaboração entre a Igreja Católica e outras confissões cristãs e, inclusive, outras religiões. Não sucede o mesmo com as seitas e outros movimentos religiosos semelhantes.

    Solidariedade e amor aos Pobres

    62. Mantém sempre a sua validez, sobretudo para a América, a palavra do Papa João XXIII, que declarava que a Igreja, sendo Igreja de todos, quer ser especialmente a Igreja dos pobres.(85) Significativo foi o debate conciliar sobre a Igreja e os pobres: a Igreja contempla nos pobres, como em um espelho moral, a imagem do seu divino Fundador, pobre e humilde, procurando com solicitude aliviar os seus sofrimentos, como serviço a Cristo.(86) Com insistência, se continuou a chamar a atenção sobre o drama da pobreza: Paulo VI, dirigindo-se aos camponeses, na Colômbia, falou do pobre como "sacramento de Cristo";(87) e na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi confirmou a vinculação entre o Evangelho de Cristo e a questão da libertação da miséria, como exigência da justiça e da caridade cristã.(88)

    63. Os Pastores das Igrejas particulares no Continente americano, confirmados pelas orientações do Magistério Pontifício, exortam ao melhor cumprimento dos deveres cristãos para vencer o flagelo humilhante da miséria, quando estruturas de pecado produzem ricos sempre mais ricos e pobres sempre mais pobres. João Paulo II, falando no Continente americano, convidou ao compromisso social em favor da justiça e de uma justa distribuição dos bens.(89) As Igrejas particulares na América, acolhendo este convite do Sucessor de Pedro, desenvolvem uma intensa pastoral da solidariedade cristã em favor da infância e da mulher, dos camponeses e dos operários, dos enfermos e dos prisioneiros, dos emigrantes e dos imigrantes, dos indigentes e dos abandonados. Em várias ocasiões os Bispos da América Latina têm convidado todo o Povo de Deus a se ocupar, de maneira particular, do problema da pobreza: proclamando que a autenticidade da evangelização se manifesta no amor pelos necessitados, chamando a um compromisso no serviço aos irmãos que sofrem e assumindo uma clara opção preferencial e solidária pelos pobres.(90)

    Comunidades eclesiais e solidariedade

    64. A II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Medellin definiu a comunidade eclesial de base como a célula primeira da estrutura eclesial, que, em seu próprio nível, é responsável pela riqueza e expansão da fé, como também pela promoção humana e pelo desenvolvimento.(91) O conceito de comunidade eclesial de base tornou a ser tema da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, que identificou nela três notas distintivas: a dimensão comunitária, através da qual seus membros entram em íntima relação interpessoal na fé; a dimensão eclesial, segundo a qual a comunidade que celebra os sacramentos tenta viver as implicações do mandamento novo na solidariedade fraterna e em um compromisso de vida; a dimensão estrutural, segundo a qual a comunidade, formada de modo estável por poucos membros, é concebida como uma célula viva e básica de uma grande comunidade.(92) A estes elementos fundamentais o Papa Paulo VI, explicitando a dimensão eclesial que constitui a essência destas comunidades, acrescentou duas características fundamentais: a comunhão com a Igreja (local e universal) e a comunhão com os Pastores e com o magistério da Igreja.(93)

    Em muitas Igrejas locais na América Latina, estas pequenas comunidades cristãs têm sido consideradas como uma opção pastoral decisiva para a renovação da vida eclesial, dadas as enormes dimensões e exigências da estrutura diocesana e paroquial. Não obstante, os mesmos documentos do magistério episcopal latino-americano reconhecem que em alguns lugares as comunidades de base têm sido manipuladas por interesses políticos e separadas da comunhão com os Bispos, perdendo, desse modo, o seu sentido eclesial.(94) De todos os modos, nas respostas aos Lineamenta são elogiadas as pequenas comunidades eclesiais, como núcleos onde muitos cristãos podem realizar uma experiência eclesial de comunhão e de solidariedade fraterna.

    A dívida externa e o equilíbrio da economia global

    65. A Igreja que vive na América, anunciando o Evangelho, procura sempre iluminar os homens e as mulheres do Continente para a construção de uma fraternidade solidária, onde reine a justiça e a paz. Os vínculos de solidariedade adquirem uma importância particular quando se trata da relação entre o Norte e o Sul, sobretudo no que se refere ao problema da dívida externa. As respostas aos Lineamenta sugerem que os caminhos de solução para uma situação tão complexa, no contexto da globalização da economia internacional, só podem ser encontrados a partir de princípios éticos básicos, sobre os quais cada uma das partes assuma solidariamente as responsabilidades na construção do futuro.(95)

    Mesmo quando a dívida externa não é a causa exclusiva da pobreza de muitos países em vias de desenvolvimento, não se pode desconhecer que ela tem contribuído para criar condições de extrema indigência que, hoje, se apresentam como um desafio urgente que interpela a consciência dos membros do Povo de Deus. Muitas são as características enumeradas nas respostas ao documento de preparação: carestia e miséria, falta do necessário para a sobrevivência, para a saúde e para a alimentação, desocupação, falta de moradia digna e de educação, etc. Esta situação de sofrimento em que se encontram tantas famílias pobres da América, faz-se presente na população camponesa e nos operários das cidades, entre afro-americanos e ameríndios. Um cristianismo comprometido em favor da justiça tem diante de si um amplo campo de ação. Muitas das respostas aos Lineamenta reafirmam o apelo do Papa João Paulo II a encontrar uma solução ao problema da dívida internacional "propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total" da mesma.(96) Sugere-se ainda tratar o tema no contexto mais amplo da globalização da economia mundial, buscando sempre um adequado restabelecimento da ordem da justiça social.

    Solidariedade e promoção da cultura da vida

    66. O ser humano, chamado a uma plenitude de vida que consiste na participação da vida divina, é o sujeito ao qual a Igreja anuncia a salvação realizada por Cristo através do seu mistério pascal. O Magistério Pontifício destes últimos tempos revela a especial preocupação do Papa pelo tema da família e da tutela da vida humana em todas as fases da sua existência.(97) Também a Igreja na América tem manifestado, através de muitas iniciativas pastorais, a sua adesão à preocupação do Sumo Pontífice com relação à promoção da vida humana. Ele recorda na sua Carta Encíclica Evangelium vitae a responsabilidade que todo ser humano tem diante de Deus, com relação à própria vida e à do próximo.(98) Entre as principais áreas de promoção da vida, indicadas pelas respostas aos Lineamenta, merecem ser citadas as seguintes:

    • A família, como lugar privilegiado onde nasce a vida e se desenvolve a pessoa.(99) Nesta área, existem em nível diocesano e nacional diversos institutos e organizações eclesiais para favorecer nas famílias o sentido da fidelidade conjugal, a paternidade responsável, a educação cristã dos filhos, a solidariedade com as outras famílias e, em geral, o desenvolvimento do núcleo familiar como "igreja doméstica", sob o exemplo da Sagrada Família de Nazaré. Uma particular atenção é dada à divulgação dos métodos naturais de planejamento familiar, à ajuda às mães solteiras e aos anciãos que não estão integrados nas famílias.

    • A assistência sanitária, orientada a cobrir todas as etapas da vida humana. Nesta área, a Igreja desempenha uma atividade não somente de acompanhamento espiritual dos enfermos, mas também, em alguns casos, de verdadeira atenção sanitária, colaborando com as iniciativas civis em hospitais e centros de saúde. Entre tantos campos de ação, são indicados: as doenças mais graves como o câncer e a AIDS, o vício das drogas, o alcoolismo, as minorações físicas e mentais, etc.

    • A bioética cristã, como conjunto de princípios éticos com relação à vida humana. Neste campo, procura-se iluminar, a partir dos valores do Evangelho, os novos problemas que a ciência suscita com suas descobertas e novidades. São indicadas iniciativas como a criação de institutos de bioética, a preparação de agentes pastorais especializados, a inclusão da temática nos programas de universidades católicas e seminários, etc. Não obstante, as respostas reconhecem que ainda resta muito a fazer, diante deste grande desafio do tempo presente.

    • A promoção de uma cultura da vida diante do crescimento de "uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira cultura de morte".(100) Muitos são os sinais negativos que manifestam uma espécie de "conjura contra a vida" nas sociedades da América: a violação dos direitos humanos, a legalização do aborto, a aceitação da eutanásia, os programas de esterilização, etc. Em reiteradas ocasiões os Bispos, individual ou colegialmente, através da própria pregação e de documentos emanados pelas Conferências Episcopais, têm levantado suas vozes de Pastores, dirigindo-se ao Povo de Deus e a todos os homens de boa vontade, para despertar a consciência da responsabilidade individual e social com relação ao dom divino da vida.