A g n u s D e i

INSTRUMENTUM LABORIS
Sínodo dos Bispos
Vaticano - 1997

II
JESUS CRISTO VIVO, CAMINHO PARA A CONVERSÃO

Capítulo I: A conversão a Jesus Cristo

    O encontro com Jesus Cristo vivo provoca a conversão

    22. É um fato que na História da Salvação, após o pecado original, cada vez que Deus vai ao encontro do homem para com ele dialogar, fá-lo para provocar no mesmo ser humano a conversão do coração. Já no Antigo Testamento a pregação da penitência se orienta a uma conversão interior do coração, isto é, a uma recusa do pecado e a uma adesão a Deus (cf. Jn 3,4-10; Am 5,15; Ba 1,3-5; Sl 35,13; 51,3-6). Em continuidade com a pregação do Antigo Testamento, Jesus Cristo iniciou o seu ministério anunciando a Boa Nova do Reino e convidando à conversão: "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1,15). Estas palavras de Cristo constituem, em certo sentido, o compêndio de toda a vida cristã: "Ao Reino anunciado por Cristo só se pode chegar mediante a metanoia, ou seja, a íntima e total transformação e renovação do homem todo, de todo o seu sentir, do seu julgar e do seu agir".(31) A Igreja primitiva seguiu fielmente as pegadas do seu fundador, anunciando a sua mensagem de salvação e convidando todos a se converterem e a se deixarem batizar em nome de Jesus Cristo para obter o perdão dos pecados (cf. At 2,37-38). O Apóstolo São Paulo proclama inclusive a dimensão cósmica da reconciliação, ao dizer que ao Pai aprouve "reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz" (Cl 1,20).

    23. A conversão é um conceito complexo, que significa uma profunda mudança de coração sob o influxo da Palavra de Deus. Essa transformação interior exprime-se nas obras e, por conseguinte, na vida inteira do cristão.(32) O pecado é uma realidade que afeta, fundamentalmente e em primeiro lugar, a pessoa individual. No entanto, como esta vive em constante relação com outros seres humanos, com os quais constrói a sociedade através de instituições e estruturas, podem ser detectadas certas realidades sociais contaminadas pelo pecado das pessoas livres e responsáveis. Neste sentido, pode-se falar de uma dimensão social do pecado, que incide na vida de tantos homens e mulheres, e, mais concretamente, de "estruturas de pecado", como chama o Papa João Paulo II a estas relações de injustiça que caracterizam a organização social de muitos países na América.(33)

    É em tal perspectiva que no presente documento, que recolhe as respostas ao questionário dos Lineamenta, se fala não somente da necessidade de uma conversão pessoal - que encontra o seu caminho de realização plena através do sacramento da penitência ou da reconciliação - mas também da urgência de uma conversão de certos aspectos da vida intra-eclesial e da sociedade humana. São realidades complexas que, sendo fruto das ações humanas nem sempre de acordo com a vontade divina, precisam ser iluminadas pelo Evangelho para servir ao homem e à sua salvação pessoal. É nestes ambientes que Jesus Cristo deve entrar, para provocar a conversão dos homens e, por conseguinte, a renovação das relações sociais que eles vivem.

    A Igreja prega a conversão

    24. A Igreja, enquanto comunidade dos fiéis a caminho rumo à pátria celeste, precisa purificar-se e, enquanto prega a conversão ao Evangelho, sente-se ela mesma chamada a se converter continuamente a Jesus Cristo, para poder cumprir melhor a sua missão evangelizadora. Não é a Igreja enquanto instituição divina, assistida pelo Espírito Santo e, por tanto, infalível na transmissão da Revelação, que se deve converter e sim a Igreja enquanto comunidade constituída por homens pecadores, que precisa se converter constantemente em seus membros e nas suas estruturas pastorais, para dar autêntico testemunho da proximidade do Reino dos Céus.(34) Os Pastores da Igreja que vive na América, respondendo ao chamado do Santo Padre em preparação à celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, convidam todos os membros do Povo de Deus no Continente americano a realizarem um sincero exame de consciência, como primeiro passo para uma verdadeira conversão: "No limiar do novo milênio, os cristãos devem pôr-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempo".(35)

Capítulo II: A conversão na Igreja e na sociedade

    Sinais concretos do despertar religioso na Igreja

    25. Muitos sinais positivos de alegria e de esperança alentam e consolam o Povo de Deus na América, enquanto caminha entre as tristezas e as angústias do nosso tempo.(36) Por este motivo, ao abordar o tema da conversão, o questionário dos Lineamenta propõe em primeiro lugar uma constatação dos sinais de vitalidade religiosa que caracterizam a situação atual da Igreja no Continente. Estes aspectos são apresentados nas respostas ao documento de preparação como os frutos mais valiosos do Concílio Ecumênico Vaticano II e dos documentos do magistério episcopal que se esforçaram continuamente por aplicá-lo. Entre os aspectos que refletem esta realidade, merecem ser citados os seguintes:

    • Um claro sentido de comunhão e participação na vida da Igreja, em níveis diversos: a colegialidade entre os Pastores dentro da Conferência Episcopal, a comunhão do Bispo com o presbitério, com os religiosos e os leigos na vida pastoral das dioceses, o planejamento pastoral nas paróquias com a ativa participação de religiosos e leigos, etc.

    • Um sensível aumento, em algumas regiões, de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada vem sendo registrado nos últimos anos. Além disso, embora em muitos casos o crescimento das vocações não consegue cobrir as próprias exigências, existe em certas Igrejas particulares um espírito de solidariedade missionária, em âmbito vocacional, com relação a outras dioceses mais necessitadas.

    • Uma maior consciência acerca da importância da formação do clero, tanto nos seminários como durante a vida sacerdotal. Em várias respostas menciona-se a contribuição positiva que representou, neste sentido, a Exortação Apostólica sinodal Pastores dabo vobis, abrindo novos caminhos para a renovação da espiritualidade sacerdotal.

    • Um abnegado testemunho de vida sacerdotal por parte de muitos sacerdotes comprometidos com a nova evangelização e fervorosos no exercício do ministério. Freqüentemente, ele é acompanhado também por um significativo interesse por experiências comunitárias de oração, de apostolado, de convivência, retiros espirituais, etc.

    • Uma crescente participação ativa dos fiéis na liturgia,(37) fazendo dela não somente um momento de comunhão pessoal com Deus mas também o centro da vida pastoral da comunidade eclesial. A renovação litúrgica conciliar tem sido bem recebida em todos os setores do Povo de Deus, cujos membros têm redescoberto o valor da liturgia como encontro com Deus e com os irmãos, como celebração da comunhão eclesial.

    • Uma maior consciência nos leigos(38) acerca do dom do batismo, que os leva a um compromisso eclesial, apostólico e missionário mais profundo. Assim mesmo, os leigos, em geral, estão tomando consciência cada vez mais da necessidade de se comprometer na transformação da sociedade segundo os valores do Evangelho, participando na defesa da vida e da família, na promoção da solidariedade, da justiça, dos direitos humanos e da ecologia, nas causas em prol da paz e da reconciliação em regiões onde reina a violência, na ajuda solidária aos mais necessitados através de obras assistenciais, etc.

    Aspectos que necessitam de conversão na realidade intra-eclesial

    26. Precisamente porque a Igreja é "uma realidade complexa em que se funde o elemento humano e divino",(39) não faltam nela sombras que obscurecem a sua imagem de sinal e instrumento de salvação e que têm a sua origem na condição pecadora dos homens que a integram. Por isso, a Igreja na América, sendo ao mesmo tempo santa e necessitada de purificação, deseja avançar continuamente pela estrada da penitência e da renovação.(40) É o que demonstram alguns aspectos evidenciados pelas respostas aos Lineamenta, a saber:

    • Será sempre necessário um testemunho de santidade mais vibrante e transparente por parte dos evangelizadores - bispos, presbíteros, diáconos, consagrados e consagradas, leigos e leigas - cada um segundo os dons e funções que lhes são próprios. A santidade de cada um dos membros do Povo de Deus, nas ocupações e circunstâncias da vida, é o meio mais eficaz para se levar adiante a tarefa da nova evangelização.

    • Em não poucas ocasiões verifica-se uma falta de comunhão, sobretudo no que diz respeito à coordenação e colaboração dos carismas dentro da Igreja. Em particular, indica-se em alguns casos uma carência de harmonia entre o carisma da vida consagrada e o carisma da autoridade do Bispo, entre o carisma do clero diocesano e os demais carismas de serviço na Igreja. Por sua vez, o clero diocesano deve estar mais aberto para acolher os consagrados, como também os movimentos eclesiais, que podem contribuir com seus respectivos dons e carismas ao serviço da comunidade eclesial.

    • Por vezes constata-se uma falta de sintonia de alguns teólogos com o magistério da Igreja, sobretudo em relação a certos temas do dogma e da moral. É fácil compreender que tais dissensões criam nos membros do Povo de Deus uma grande confusão e, o que é pior, geram divisões que atentam contra a comunhão eclesial. Dever-se-iam ter sempre presentes as palavras do Santo Padre João Paulo II: in necessariis, unitas; in dubiis, libertas; in omnibus, caritas.(41)

    • Não poucas vezes verifica-se uma certa ineficácia pastoral provocada por uma inadequação de algumas estruturas pastorais, seja porque estas não correspondem às novas situações da sociedade, seja por não se ter dado lugar aos leigos nessas mesmas estruturas pastorais.

    • Uma incompleta aplicação do Concílio Ecumênico Vaticano II, sobretudo em certas áreas relativas às estruturas diocesanas e paroquiais (especialmente no que se refere à constituição e ao funcionamento de conselhos pastorais e de administração). Uma maior difusão dos ensinamentos conciliares e pontifícios, através de programas de formação nos distintos níveis, pode ajudar eficazmente a pôr em prática estes e outros aspectos do Concílio Ecumênico Vaticano II.

    • Uma falta de renovação dos métodos de catequese, tanto no que se refere à preparação para a recepção dos sacramentos (sobretudo do sacramento do batismo, da confirmação e do matrimônio) como no que diz respeito à formação permanente. Neste sentido, sugere-se uma maior aplicação do Catecismo da Igreja Católica e da Exortação Apostólica Catechesi tradendae.(42)

    • Uma inadequada aplicação, em alguns casos, dos princípios da renovação litúrgica propostos pelo Concílio Vaticano II. Às vezes, com efeito, mesmo quando se agiu com boas intenções de uma melhor adaptação à cultura popular, caiu-se em arbitrariedades litúrgicas que ocultaram o sentido transcendente da celebração litúrgica.(43)

    Aspectos positivos da sociedade contemporânea, com relação ao Evangelho

    27. Respondendo ao convite do Concílio Ecumênico Vaticano II de conhecer e compreender o mundo com suas esperanças e aspirações,(44) o questionário dos Lineamenta propunha dirigir o olhar às realidades temporais, para descobrir nelas alguns sinais positivos que predispõem o homem contemporâneo para o encontro com Jesus. As respostas recolhem os seguintes elementos:

    • Crescente consciência da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis, como também do sentido da justiça. Isso se manifesta, entre outros aspectos, em uma recusa de qualquer tipo de discriminações sociais, como conseqüência do respeito pela pessoa, e na busca de uma sempre maior transparência na administração da justiça.

    • Respeito pela natureza, que se exprime em uma atenta consideração aos problemas ecológicos. Este é um aspecto positivo na medida em que predispõe adequadamente o ser humano a tomar consciência do seu caráter de criatura e o convida ao respeito pela obra do Criador.

    • Existe um acentuado interesse pelos valores espirituais e uma notável inquietude pelas realidades transcendentes. Embora isso, às vezes, se manifeste em práticas pseudo-religiosas e sincretistas, não deixa de ser um ponto de interesse que pode motivar o diálogo da Igreja com o homem contemporâneo, sempre sedento da Palavra de Vida.

    • Detecta-se um forte sentido de solidariedade e generosidade que se manifesta em uma crescente sensibilidade pelas necessidades do próximo. Este sinal positivo, que se reflete em tantas organizações com fins humanitários, verifica-se não somente dentro das realidades nacionais mas também nas relações internacionais.

    Aspectos da sociedade contemporânea que necessitam de conversão

    28. Em nossas sociedades do Continente americano existem também aspectos que requerem conversão e mudança de atitudes. A Igreja na América, atenta à realidade social, manifestou através de numerosos documentos dos seus Pastores o seu constante desejo de contribuir para iluminar as realidades temporais com a luz do Evangelho. Das respostas aos Lineamenta surgem como aspectos sociais que reclamam conversão, os seguintes:

    • No âmbito familiar percebe-se, com freqüência, um conceito de liberdade e um ideal de amor humano sem compromissos. São cada vez mais freqüentes as separações e divórcios, com a conseguinte destruição das famílias. Verificam-se práticas contrárias aos nascimentos e abortivas, que levam à perda do valor da vida e à difusão de uma "cultura de morte". A violência familiar é um fato real em contínuo crescimento. Constata-se também a perda da identidade feminina e masculina e, ao mesmo tempo, vem indicada uma inadequada formação para a sexualidade, que se divulga indiscriminadamente no âmbito da educação. A infância, a mulher, a juventude e a terceira idade são áreas que reclamam uma maior atenção.

    • No campo econômico, falta em muitas sociedades da América uma maior justiça distributiva: cresce o desemprego, os salários são baixos, a desigualdade entre ricos e pobres faz-se cada vez maior. Na totalidade do território do Continente americano verifica-se aquela diferença indicada pelo Papa João Paulo II na sua Carta Encíclica Redemptoris missio: "O hemisfério Norte construiu um modelo de desenvolvimento, e quer difundi-lo para o Sul, onde o sentido de religiosidade e os valores humanos, que ali existem, correm o risco de serem submersos pela vaga do consumismo".(45) Várias respostas, além disso, assinalam a urgência de se dar uma solução ao problema da dívida externa no contexto da celebração jubilar, como propõe o Santo Padre na Carta Apostólica Tertio millenio adveniente.(46)

    • No campo social, verifica-se um acelerado processo de urbanização, ligado ao desenvolvimento da sociedade industrial e ao crescimento demográfico. As grandes cidades, que muitas vezes crescem descontrolada e desordenadamente, trazem consigo sérios problemas sociais: pobreza, desenraizamento, tráfico e consumo de drogas, prostituição de crianças e de jovens, alcoolismo, despersonalização, etc.

    • No campo político, às vezes predomina uma concepção da política que perde de vista o bem comum. Não é raro que a classe dirigente viva alheia às necessidades do povo e se guie por interesses partidários. Freqüentemente predomina a demagogia e cresce a corrupção das estruturas de poder. Esta situação gera uma desconfiança com respeito às instituições políticas, sobretudo no que se refere à administração da justiça, nem sempre transparente, igualitária e eficaz.

    • No campo cultural, o laicismo ateu às vezes predomina nos ambientes intelectuais e culturais. São poucos os leigos cristãos comprometidos nas universidades e nos ambientes intelectuais, profissionais e artísticos. Falta uma maior presença dos leigos cristãos nos meios de comunicação social. Existe, em alguns casos, uma carência de princípios éticos que leva certos agentes de comunicação a uma falta de objetividade na transmissão da verdade. As deficiências no campo educacional se fazem evidentes, sobretudo, no analfabetismo e na redução da educação a uma mera instrução, que deixa pouco espaço aos valores transcendentes.