A g n u s D e i

INSTRUMENTUM LABORIS
Sínodo dos Bispos
Vaticano - 1997

I
O ENCONTRO COM JESUS CRISTO VIVO

Capítulo I: o mistério de Cristo

    O mistério de Cristo e a pessoa humana

    6. Seguindo os traços do Apóstolo São Paulo, para quem a vida foi um anunciar o Cristo morto e ressuscitado, evangelizare Iesum Christum (cf. Gl 1,16), a Igreja na América deseja, uma vez mais, centralizar a sua missão evangelizadora no anúncio e na apresentação da pessoa de Jesus Cristo vivo. As respostas aos Lineamenta, confirmando a validade do tema sinodal, põem em evidência o consenso acerca da oportunidade de anunciar Jesus Cristo a partir da categoria de encontro interpessoal, como uma resposta à sensibilidade do homem contemporâneo em relação à dignidade da pessoa e ao valor do indivíduo como sujeito.

    É o Cristo vivo, morto e ressuscitado, presente hoje na sua Igreja, que deseja se encontrar com quem vive neste Continente, para lhes oferecer a sua Palavra de amor e esperança neste momento histórico crucial, que assinala a passagem do segundo ao terceiro milênio. Em comunhão com o Santo Padre, os Bispos na América afirmam que a missão fundamental da Igreja é evangelizar, isto é, orientar a consciência e os corações de todos os homens e mulheres de boa vontade a um encontro com Cristo, ajudando-os a experimentar uma familiaridade com a profundidade do mistério da Redenção, que no Filho de Deus se realizou definitivamente. (5) O anúncio do mistério de Jesus Cristo está orientado, portanto, a favorecer o encontro pessoal com Ele. A Igreja na América deseja servir a Deus e ao homem, realizando a sua finalidade principal, que o Santo Padre definiu ao iniciar o seu pontificado com as seguintes palavras: «que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer juntamente com cada homem o caminho da vida, com a potência daquela verdade sobre o homem e sobre o mundo, contida no mistério da Encarnação e da Redenção, e com a potência do amor que de tal verdade irradia».(6) Por conseguinte, cabe perguntar-se hoje como anunciar Jesus Cristo no presente contexto geográfico, histórico e cultural da realidade americana, de maneira a provocar eficazmente o encontro entre Deus, encarnado em Jesus Cristo, e o homem, em cujo interior aninha-se um inextinguível desejo de Deus.(7)

    Anunciar a verdade completa sobre o mistério de Jesus Cristo

    7. Neste diálogo de salvação com o homem, a Igreja oferece a verdade que lhe foi confiada pelo próprio Jesus Cristo, com uma «abertura universal»(8) e missionária. Para cumprir esta missão, seguindo a indicação do Papa João Paulo II na sua Encíclica Redemptor hominis, ela dirige o olhar «na direção de Cristo, Redentor do homem; na direção de Cristo, Redentor do mundo ... porque só n'Ele, Filho de Deus, está a salvação»,(9) segundo as palavras do Apóstolo São Pedro: «Senhor, a quem iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6,68). N'Ele realiza-se plenamente o mistério da redenção, que possui uma dupla dimensão, divina e humana.(10)

    Nesta perspectiva, as respostas aos Lineamenta mostram um especial interesse em oferecer aos fiéis a verdade integral sobre o mistério de Cristo, sobre a sua pessoa, a sua obra e a sua mensagem. Ele é o Verbo de Deus que se encarnou no seio da Virgem Maria e nasceu em Belém, que viveu na aldeia de Nazaré e ali esteve submetido aos seus pais, cresceu em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens (cf. Lc 2,51-52). Ele é a Palavra de Deus feita carne, que anunciou com palavras e sinais a boa nova do Reino de Deus e que proclamou a graça da salvação (cf. Lc 4,17-21). Ele é o Messias esperado que curou os enfermos, que perdoou os pecadores e se sentou à mesa deles (cf. Lc 7,36-50), que experimentou pessoalmente o valor da amizade com Marta, Maria e Lázaro (cf. Lc 10,38-42). Ele é o Servo sofredor que sofreu a angústia no Getsêmani, mas aceitou livremente beber o cálice que o Padre lhe oferecia (cf. Lc 22,39-44). Ele é o Filho de Deus que morreu na cruz e ao terceiro dia ressuscitou de entre os mortos para a nossa salvação. Ele é o Esposo que deu a vida por sua Esposa, a Igreja (cf. Ef 5,25), e desde o primeiro Pentecostes a acompanha sempre em suas provas e vicissitudes, santificando-a por meio do Espírito Santo. Ele é o Cristo Ressuscitado, que está sentado à direita de Deus Pai, vencedor do pecado e da morte, Sumo Sacerdote que intercede em favor de toda a humanidade (cf. Hb 4,14-5,10). Ele é o Senhor do tempo e da eternidade, que virá ao final da história para julgar os vivos e os mortos. Ele é, definitivamente, a imagem do Deus invisível (cf. Cl 1,15) e, ao mesmo tempo, o homem perfeito «que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado».(11)

    8. A apresentação do mistério de Cristo, em uma maneira completa, supõe, portanto, não somente a adequada valorização do fato da encarnação, através do qual o Filho de Deus assumiu una natureza humana - fazendo-se verdadeiramente semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4,15) - mas também a justa apreciação da natureza divina, segundo a qual o Verbo de Deus estava no seio de Deus e era Deus (cf. Jo 1,1). Ele existe desde a eternidade como Deus verdadeiro e n'Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (cf. Cl 1,17). Somente através de uma equilibrada compreensão das duas naturezas e da perfeita unidade das mesmas na segunda Pessoa da Santíssima Trindade o ser humano pode se aproximar do mistério de Jesus Cristo, presente no hoje da história como Cabeça da Igreja que é o seu Corpo (cf. Ef 1,22-23). Somente no Verbo encarnado pode esclarecer-se o mistério do homem, pois o Filho de Deus feito homem é, ao mesmo tempo, imagem do Deus invisível e homem perfeito, revelação definitiva de Deus Pai à humanidade e caminho para que esta possa encontrar o sentido da sua existência.(12)

    Muitas respostas aos Lineamenta manifestam a necessidade de apresentar integralmente o mistério de Jesus Cristo para poder dar uma resposta clara às confusões nas quais caem, às vezes, alguns membros do Povo de Deus ao reduzir o mistério de Cristo a um ou outro aspecto da sua vida, da sua Pessoa ou da sua obra salvífica. A nova evangelização supõe, neste sentido, um anúncio renovado a todos os homens e mulheres da América que « há-de conter também sempre - ao mesmo tempo como base, centro e ápice do seu dinamismo - uma proclamação clara que, em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, a salvação é oferecida a todos os homens, como dom da graça e da misericórdia do mesmo Deus».(13) Quando o Santo Padre João Paulo II convidava os Bispos da América Latina, em Port-au-Prince a iniciar uma nova evangelização da América, acrescentava: «nova em seu ardor, nova em seus métodos, em sua expressão»,(14) ou seja, aludia à novidade nas atitudes dos evangelizadores, pois o Evangelho e seu conteúdo, que é Jesus Cristo, não pode envelhecer, dado que é fonte de vida, sempre nova e atual.

    Finalmente, algumas respostas provenientes da América Latina assinalam que, provavelmente devido à influência do contexto sociocultural, predomina naqueles povos a imagem sofredora do Senhor da paixão, permanecendo na sombra a imagem do Cristo ressuscitado. Para anunciar o mistério de Jesus Cristo de maneira completa, sugere-se promover um anúncio mais incisivo da ressurreição que, sem cair em triunfalismos terrenos, possa ser uma verdadeira mensagem de esperança para os homens e mulheres abatidos pela dor e pela tristeza.

    O mistério de Jesus Cristo anunciado ao homem e à cultura

    9. Evangelizar o homem significa também evangelizar a sua cultura, a sua ética e os seus valores, os seus ideais de justiça e de paz. Por isso, um dos objetivos mais importantes da nova evangelização consiste precisamente em transformar a cultura a partir de dentro, enriquecendo-a com os valores cristãos que derivam da fé e fazendo que a mensagem de Cristo penetre nas consciências das pessoas e se projete no etos dos povos.(15) Seguindo as orientações do Papa Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, as respostas ao questionário dos Lineamenta reafirmam a ruptura entre Evangelho e cultura como «o drama da nossa época».(16) Importa, pois, evangelizar as pessoas individualmente, mas também evangelizar as culturas, porque o objetivo é chegar «a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação»,(17) ou seja, «importa evangelizar... a cultura e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et spes».(18) Desta maneira, por meio da inculturação, «a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, transmitindo-lhes os seus próprios valores, assumindo o que de bom nelas existe e renovando-as a partir de dentro».(19)

    10. O conceito de cultura, implícito na mencionada constituição conciliar, foi posteriormente aprofundado no documento da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Puebla com as seguintes palavras: a cultura é «a maneira particular como em determinado povo cultivam os homens sua relação com a natureza, suas relações entre si próprios e com Deus, de modo que possam chegar a um nível verdadeira e plenamente humano (Gaudium et Spes 53)».(20) A cultura é, portanto, «o estilo de vida comum» que caracteriza um povo e que compreende a totalidade da sua vida: «o conjunto de valores que o animam e dos desvalores que o enfraquecem..., as formas através das quais estes valores ou desvalores se exprimem e configuram, isto é, os costumes, a língua, as instituições e estruturas de convivência social. Numa palavra, a cultura é, pois, a vida de um povo».(21) A síntese entre cultura e fé não é somente uma exigência da cultura, mas também da fé, pois uma fé que não se faz cultura é uma fé que não é plenamente vivida.(22)

    11. Nas respostas às perguntas dos Lineamenta sobre o tema da cultura, são descritos alguns traços da cultura contemporânea, à qual a Igreja deseja anunciar o Evangelho de Jesus Cristo. A cultura moderna alcançou êxitos e progressos humanos no campo científico e técnico, como também no campo da liberdade e dos direitos humanos; ela conhece, porém, muitos traços negativos, como, por exemplo, a contaminação e o esgotamento dos recursos naturais, o desconhecimento dos limites éticos em campo científico e biogenético, o desenvolvimento material com grandes sacrifícios sociais, o ceticismo filosófico e o relativismo moral.(23) Neste contexto complexo e desafiador, é válido perguntar-se: como a mensagem da Igreja se torna acessível às novas culturas, às formas atuais da inteligência e da sensibilidade? Como pode a Igreja de Cristo se fazer compreender pelo espírito moderno, tão orgulhoso de suas realizações e, ao mesmo tempo, tão inquieto pelo futuro da família humana? Quem é Jesus Cristo para os homens e as mulheres de hoje? Para responder a estas perguntas, é necessário ter presentes dois princípios fundamentais que a inculturação supõe, ou seja: a compatibilidade das culturas com o Evangelho e a comunhão com a Igreja universal.(24)

Capítulo II: O Anúncio de Jesus Cristo no contexto cultural da América

    Evangelho e cultura

    12. Uma síntese das respostas relativas à evangelização da cultura põe em evidência que nas sociedades contemporâneas da América existem algumas tendências gerais que são, ao mesmo tempo, um reflexo das correntes culturais em nível internacional, a saber:

    • O pluralismo apresenta-se na América sob formas diversas: a afirmação da identidade dos diversos grupos étnicos, lingüísticos e nacionais; a diversidade de correntes de pensamento como manifestação da liberdade de expressão; a convivência em um mesmo ambiente social de diversas tradições culturais e religiosas; a abertura, através do mundo das comunicações, a um caudal de informações que estende amplamente os horizontes do conhecimento humano, etc.

    • O secularismo propõe uma visão da vida na qual estão ausentes os valores transcendentes, mas que, ao mesmo tempo, provoca indiretamente no homem de hoje uma busca do sentido último para a sua existência.

    • O subjetivismo e o relativismo moral produzem no homem contemporâneo uma grande crise e confusão de consciência, com a conseqüente desvalorização da ordem moral objetiva e a valorização excessiva da subjetividade pessoal. Essas características levam a uma perda do sentido do pecado.

    • A globalização da cultura supõe aspectos positivos na medida em que oferece a possibilidade de uma intercomunicação que enriquece, mas, ao mesmo tempo, orienta as culturas a uma homogeneidade de conteúdos e de valores, com a conseqüente perda das próprias identidades. Este efeito pode ser particularmente preocupante quando o que está em jogo é o perfil cristão e católico das culturas locais.

    • A consciência da importância de certos valores, alguns dos quais relacionados com a dignidade da pessoa humana, como a liberdade, a vida e a justiça; outros, relacionados com o desejo inato ao ser humano de abrir-se às realidades espirituais e transcendentes.

    • A urbanização apresenta novos desafios para a evangelização, não somente porque surgem problemas novos, que derivam da cultura urbana (a pobreza e a indigência das classes marginalizadas, o desenraizamento, o anonimato, a solidão, a imoralidade e a violência, etc.), mas também porque a estrutura urbana requer novos métodos pastorais que incorporem o uso de meios modernos e de técnicas de comunicação.

    Pode-se dizer que as características enumeradas precedentemente são comuns a todo o Continente, embora se apresentem com diversos matizes regionais e locais. Assim, por exemplo, o fenômeno da urbanização apresenta o problema da marginalidade social, tanto nos bairros pobres ou favelas da América Latina, como nas áreas marginalizadas das grandes cidades da América do Norte. De maneira análoga, a consciência de certos valores como a justiça, a liberdade e a vida, traduz-se em diversas expressões culturais segundo o grau de desenvolvimento econômico e os problemas políticos da respectiva sociedade, porém, na realidade, os ideais de base são os mesmos.

    Evangelho e culturas indígenas e afro-americanas

    13. A preocupação pela relação entre Evangelho e cultura estende-se, nas respostas aos Lineamenta, ao tema da evangelização das culturas indígenas e afro-americanas, que, em graus diversos, representam um componente que não pode ser ignorado em todos os países da América. Estas culturas são o legado das civilizações que habitavam no Continente antes da chegada dos primeiros evangelizadores, ou foram o fruto de imigrações imediatamente sucessivas à chegada dos colonizadores. Em um e em outro caso, pode-se dizer que ambas as culturas, desde o início, acolheram com simplicidade de coração a mensagem da Boa Nova. No entanto, a tarefa de evangelização dessas culturas não terminou com o anúncio do kerygma. Faz-se necessário ainda hoje - como refletem as respostas ao questionário do documento de preparação da Assembléia sinodal - uma maior inserção da Igreja nas culturas indígenas e afro-americanas, para lograr uma íntima transformação dos autênticos valores culturais mediante a sua integração no cristianismo e para iluminar com a fé as diversas culturas.

    14. Entre os grupos indígenas e afro-americanos, existe uma crescente conscientização do direito a conservar a própria identidade cultural. A Igreja na América, em comunhão com o Magistério do Santo Padre, é consciente da importância de tal direito e se esforça para levar a estes povos a mensagem do Evangelho e, ao mesmo tempo, preocupa-se com a promoção de suas legítimas reivindicações.(25) Entre os valores destas culturas compatíveis com a fé cristã as respostas ao questionário dos Lineamenta citam: o grande amor à própria terra, o respeito aos antepassados e às tradições comunitárias, o sentido religioso da vida e da morte, que se exprime em celebrações rituais animadas com a dança, a música e o canto, como também a crença em uma vida ultra-terrena. As mesmas respostas põem em realce também aspectos que precisam ser purificados, pois todas as culturas são produto do homem e, por conseguinte, são marcadas também pelo pecado. Entre os costumes e comportamentos que necessitam de purificação são mencionados: o alcoolismo (freqüentemente ligado à celebração das festas), o fetichismo, a superstição, a feitiçaria, o sincretismo religioso, o fatalismo, a bruxaria, o curandeirismo e outras concepções míticas que se concretizam em práticas incompatíveis com a fé cristã.

    Evangelho e culturas de povos imigrantes

    15. Não menos importante do que a evangelização das culturas indígenas e afro-americanas é a evangelização das culturas dos imigrantes, que constitui uma realidade em quase todas as sociedades da América desde os fins do século passado. As respostas aos Lineamenta indicam a presença de dois grandes fenômenos migratórios: um proveniente, fundamentalmente, da Europa e, em menor medida, da Ásia, e outro movimento, interno ao Continente americano. O primeiro movimento migratório verificou-se com maior intensidade em alguns países do que em outros, mas, em geral, pode-se dizer que os imigrantes trouxeram autênticos valores humanos, como o sentido de família e do trabalho, o amor à pátria, a solidariedade com os mais pobres, o valor da palavra dada, o sentido da justiça, como também valores religiosos, tanto católicos (em predominância, de rito latino, mas também de outras igrejas orientais), como de outras religiões cristãs (diversos ramos protestantes e também igrejas ortodoxas) e, inclusive, de religiões não cristãs (judaísmo e, em menor medida, islamismo). Enquanto em alguns países, como o Canadá e sobretudo os Estados Unidos da América, o fluxo migratório foi composto por muitas correntes provenientes principalmente de vários países e culturas da Europa e, em menor medida, da Ásia, no resto do Continente o mesmo fenômeno mostra a presença de imigrantes principalmente espanhóis e italianos.

    16. No segundo movimento percebem-se migrações maciças do Sul, do Centro e do Caribe, rumo ao Norte do Continente. Muitas respostas aos Lineamenta concordam ao afirmar que faz falta uma maior colaboração entre a Igreja «a quo» e a Igreja «ad quem», para promover um adequado acompanhamento dos imigrantes, de maneira que estes possam receber assistência pastoral por parte de sacerdotes provenientes de sua mesma região. Igualmente sugere-se fomentar as formas de religiosidade popular que os imigrantes levam consigo, como festividades familiares, religiosas e patronais, celebrações tradicionais associadas ao Natal e à Semana Santa, como também procissões e devoções relacionadas com específicas invocações de Cristo, da Santíssima Virgem e dos santos. Nos Estados Unidos da América a presença de imigrantes latino-americanos, cada vez mais significativa, é motivo de enriquecimento para a cultura deste país. Muitos imigrantes, em sua maioria católicos, trazem autênticos valores: o sentido de família, a religiosidade popular, o folclore e as próprias tradições. Os Bispos deste país reconhecem o valor deste estilo de vida e dos costumes expressivos da fé católica, embora, ao mesmo tempo, assinalam a necessidade de evangelizar continuamente as manifestações populares latino-americanas, para purificá-las e integrá-las de maneira adequada, de maneira a contribuir para um maior enriquecimento das culturas cristãs locais.

    Evangelho e piedade popular

    17. Um outro aspecto que emerge das respostas aos Lineamenta, em relação ao tema da evangelização da cultura, é a religiosidade popular. Nas populações da América Latina e nos grupos latino-americanos que vivem no Norte, esta manifestação da cultura é, fundamentalmente, expressão da fé católica, enquanto no resto do continente se pode dizer somente que tal religiosidade assume um matiz genericamente cristão. De todos os modos, em ambos os casos, constata-se que, nos últimos tempos, a religiosidade do povo, simples porém não menos profunda, tem sido objeto de especial atenção na ação pastoral das Igrejas locais de toda a América.

    Alguns sinais indicadores da importância que assume a cultura popular religiosa são: a participação sempre maior das pessoas nas peregrinações aos santuários (especialmente marianos), a tradição familiar de batizar os filhos, o culto às almas do purgatório e a celebração de Missas em sufrágio dos defuntos, as festas dos padroeiros com suas características procissões e a celebração da Santa Missa (em geral com grande participação do povo), o culto aos santos, não somente da Igreja universal mas também os próprios do Continente americano,(26) etc. Estas e outras tantas expressões da religiosidade popular oferecem excelentes ocasiões para que os fiéis se encontrem com Jesus Cristo vivo. Com efeito, a comunidade eclesial, ao se reunir para celebrar a Palavra e receber os sacramentos nas memórias dos santos, recorda de modo particular aqueles que imitaram fielmente com suas vidas o Salvador do mundo e entra em comunhão com aqueles que fazem parte da Igreja celeste. É por esse motivo que a piedade popular, purificada e devidamente catequizada, pode chegar a ser um elemento decisivo para a nova evangelização. Este é um ponto no qual converge a maior parte das respostas aos Lineamenta.

    18. Como confirmam as respostas ao documento de preparação, dentro da piedade popular e não exclusivamente a ela circunscrita, ocupa um lugar privilegiado a devoção à Virgem Maria, que é um claro sinal da identidade católica. O Povo de Deus na América é um povo mariano. Atestam-no os numerosos títulos com que os fiéis se dirigem a Ela, como também os inumeráveis santuários marianos, espalhados por todo o Continente americano. Entre as muitas invocações, sobressai a de Nossa Senhora de Guadalupe, que tem sua origem na aparição da Virgem em terra americana ao índio João Diego, na colina de Tepeyac (México), no ano de 1531. Este acontecimento mariano sempre foi considerado como sinal da proteção da Mãe de Deus para todos os homens e mulheres do Continente americano, a partir das celestiais palavras dirigidas a João Diego: «Não estou eu aqui, que sou tua mãe? Não estás sob a minha sombra e proteção? ... Que nada te aflija nem te perturbe...». Algumas respostas aos Lineamenta indicam como, nestes últimos tempos, cresceu a devoção a este título mariano que, sem desprezar o culto à Virgem segundo as invocações locais, une todos os povos católicos da América na confissão de uma mesma fé na Mãe do Redentor. Isso se verifica não somente nos países latino-americanos mas também nos Estados Unidos da América, onde a popularidade crescente desta devoção se explica, entre outras razões, pela presença de católicos latino-americanos naquele País. O Papa João Paulo II propõe a devoção mariana à Nossa Senhora de Guadalupe como um grande exemplo de evangelização perfeitamente inculturada, quando diz: «No rosto mestiço da Virgem de Tepeyac se resume o grande princípio da inculturação: a íntima transformação dos autênticos valores culturais, mediante a integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas».(27) Por esse motivo, o Santo Padre quis honrar a Mãe de Deus em terra americana com o título de: «Estrela da primeira e da nova evangelização».(28)

    19. Entre as manifestações da religiosidade popular destacam-se: a reza do santo rosário, as peregrinações e visitas a santuários que são, com freqüência, momentos oportunos para a recepção dos sacramentos, os títulos e invocações marianos que deram nome a santuários, capelas e cidades, a arte religiosa que oferece imagens devocionais e testemunha a fé mariana do povo, as festas da padroeira, o mês dedicado principalmente à devoção a Maria, as promessas e os votos que exprimem a dimensão mariana da fé dos que crêem, etc. Nas Igrejas locais, na América, procura-se cultivar e encaminhar constantemente esta devoção a um encontro pessoal com Cristo, que integre as aspectos afetivos e doutrinais, orientando os fiéis à prática sacramental e ao crescimento na fé, na esperança e na caridade. Em várias respostas assinala-se que a devoção mariana é autêntica na medida em que leva ao compromisso de vida cristã mais coerente, através do qual a fé se manifesta na caridade para com os irmãos mais necessitados e em um maior empenho de evangelização, tanto a nível pessoal como no contexto das estruturas eclesiais.

    Evangelho e educação

    20. Com relação ao tema da evangelização da cultura, várias respostas aos Lineamenta indicam a presença pastoral da Igreja na América no campo educacional, em todos os níveis. Os motivos que levam a Igreja a se fazer presente neste âmbito são, fundamentalmente, dois: 1) o interesse pela pessoa, cuja educação estimula as capacidades especificamente humanas e, desse modo, prepara o terreno para a recepção da Boa Notícia e 2) o interesse pela sociedade, pois através da educação são criados modos de comportamento e valores que definem o perfil de uma cultura, na qual podem crescer os valores evangélicos.

    Para evangelizar a cultura no âmbito da educação, do pensamento e da pesquisa, a Igreja na América conta com uma considerável rede de escolas, colégios, universidades e faculdades, que desempenham uma eficiente obra evangelizadora e uma importante tarefa de promoção humana. Para aproveitar melhor este potencial, as respostas aos Lineamenta sugerem os seguintes aspectos a serem considerados:

    • a conservação de uma clara e nítida identidade católica dos centros educacionais da Igreja nos diversos níveis, sobretudo no que se refere à orientação cristã de fundo dos programas e das linhas pastorais. Um centro de educação da Igreja deve ser, antes de tudo, uma escola de crescimento na fé.

    • a elaboração de programas educacionais orientados não somente para proporcionar uma instrução profissional eficiente, mas também e sobretudo, para oferecer uma visão e uma cultura inspiradas nos valores do Evangelho, que possam ser assimiladas em termos de atitudes de comportamento humano e cristão. Neste sentido é importante oferecer, através dos programas educativos, uma cosmovisão cristã que integre as diversas disciplinas do saber.

    • a coordenação da pastoral da educação em nível nacional e local, através de organismos eclesiais, sobretudo em vista da elaboração de programas e textos de formação religiosa. Um precioso instrumento para isso pode ser o novo Catecismo da Igreja Católica.

    • a formação de docentes profissionalmente capazes e cristãmente comprometidos é outro aspecto fundamental da evangelização da cultura no campo educacional.

    • a intensificação do trabalho educativo da Igreja nos setores desfavorecidos, com escolas gratuitas, tanto na cidade como no campo, e com escolas profissionais, é um excelente testemunho que a Igreja pode oferecer com relação à promoção da pessoa e ao desenvolvimento cultural de uma sociedade.

    • a presença da Igreja nas universidades e outras entidades educacionais, sejam elas estatais ou privadas não confessionais, por meio de capelães e de professores católicos, é também um âmbito privilegiado para a evangelização da cultura.

    Uma vez que a tarefa evangelizadora, no campo educacional, está orientada principalmente para os jovens, nas respostas indica-se a conveniência de se considerar também as categorias da cultura juvenil, com suas expressões características (a canção, o esporte, o tempo livre, a amizade, a convivência comunitária, etc.), mas também com os seus desafios específicos (a droga, a violência, a sexualidade, a marginalidade, a ruptura entre as gerações, a solidão, etc.).

    Evangelho e meios de comunicação social

    21. Todas as respostas aos Lineamenta coincidem amplamente em que um dos «areópagos modernos»(29) que requer uma evangelização urgente é o dos meios de Comunicação Social. O motivo fundamental desta urgência é a influência que estes meios exercem sobre a quase totalidade dos indivíduos. Fala-se, com razão, de uma «cultura de massa», que incide sobre as pessoas mudando os modos de pensar, os valores e os estilos de comportamento. Em contraste, muitas respostas confirmam a presença escassa - e em alguns casos a ausência completa - da Igreja no âmbito dos meios de comunicação social. Um ponto de convergência é a necessidade de promover o tema em dois níveis:

    1. O uso dos meios de comunicação para transmitir a mensagem do Evangelho e o Magistério da Igreja. Neste nível, mesmo quando a Igreja na América dispõe de uma série de meios para transmitir suas notícias (jornais, publicações várias, emissoras de rádio e de televisão, redes de comunicação informática, etc.), percebe-se que o uso que se faz destes meios nem sempre é o mais adequado, por falta de atualização técnica, de recursos econômicos e de pessoal suficientemente capacitado.

    2. A integração da mensagem do Evangelho nesta "nova cultura" criada pela comunicação moderna, porque a evangelização mesma da cultura atual depende, em grande parte, da influência dos meios de comunicação.(30) Neste nível, percebe-se a necessidade de iluminar com os valores do Evangelho os princípios éticos com que se maneja a informação, o conteúdo da comunicação que se transmite às massas, os objetivos com os quais se trabalha no mundo das comunicações. Várias respostas indicam que, freqüentemente, a finalidade dos agentes de comunicação é obter vantagens econômicas e não a promoção da pessoa.