A g n u s D e i

O JULGAMENTO DE JESUS
O maior erro judiciário da História1
Autor: Ruy de Azevedo Sodré*
Fonte: "Revista dos Tribunais" nº 256 (Fev/1957)

Entronizamos hoje, em reunião festiva, a imagem de Jesus Cristo em nossa sala de sessões.

Era uma velha aspiração que há muito vínhamos acalentando, só agora tornada uma feliz realidade, com a construção da nossa "Casa", e por mercê de deliberação unânime deste Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Essa coesão de sentimentos tem um significado muito expressivo, de vez que, ainda mesmo que alguns poucos não professem a fé católica, vêem, contudo, na imagem de Cristo crucificado, um símbolo de justiça.

Por mais paradoxal que pareça, a verdade é que, injustiçado pelos homens que o levaram à Cruz, Cristo se ofereceu a esse sacrifício máximo para salvação da humanidade.

Trata-se da morte do Juiz do mundo, que expirou na cruz para que pudesse ser feita, plenamente, justiça eterna aos homens que se haviam desviado do caminho que Deus lhes traçara.

Por outro lado parecerá, também, paradoxal ante o constante fluxo da vida jurídica, principalmente com as transformações contínuas do direito positivo, alimentado por fontes sociológicas e históricas, trazer para esta casa de juristas, onde se reúnem aqueles a quem a classe outorgou poderes para dirigi-la, como signo sagrado, a imagem de quem viveu há dois mil anos.

Ainda que Jesus não se apresente a alguns espíritos como o próprio Deus feito homem, mesmo assim devemos reconhecer que Ele encarna um alto ideal de justiça e de verdade que, durante o perpassar de vinte séculos, constituiu sempre - como hoje ainda constitui - uma esperança para a vida do Direito e um consolo para todos os que, como advogados ou partes, sofrem os efeitos de decisões injustas.

É que, para o humanismo cristão, o Direito não é como aparece ao historicismo, um produto fatal elaborado pela tradição popular e nem, como pretende o sociologismo, uma revolução em marcha batida, comandada pelos fatos.

A despeito da vida sinuosa do Direito, entre derrotas e vitórias, há algo que já ficou definitivamente de um passado que se encerrou, e que o futuro, por mais original que venha a ser, terá que reconhecer como "constante" da ciência jurídica: é esse alto ideal de Justiça e de Verdade que Jesus Cristo, em sua eternidade, como suspenso entre os horizontes do passado e do futuro, ilumina e iluminará para sempre, ao pregar a fraternidade humana e, conseqüentemente, postular esses débitos e créditos que quebraram os quadros do individualismo jurídico e conseguiram, por exemplo, amoldar-se às fórmulas do novum ius, no sentido de proteger os social e economicamente fracos.

Jesus Cristo, na verdade, não é jurista no sentido técnico da palavra e, até pode ser apresentado, com razão, como vítima de um julgamento iníquo que o condenou à morte no madeiro destinado aos facínoras da época.

Esse julgamento, em que ficou estereotipada a falibilidade da justiça humana, foi proferido em menos de 24 horas, no maior processo da História. E, maior processo da História porque, no dizer de Armando Dias de Azevedo2, "foi ele que abriu uma nova era para a humanidade, porque foi ele que fez da data do nascimento desse réu condenado ao mais ignominioso dos suplícios, o marco divisório da História Universal".

Já a prisão de Cristo, no Jardim das Oliveira, suscita uma dúvida, que Daniel Rops3 assim a expressa: "Das duas autoridades legais, a judia e a romana, qual, aos olhos da História, carrega com o peso da morte de Cristo? Quem tem a responsabilidade, ou melhor, quem ordenou a prisão de Cristo? Foram os sumos pontífices e os fariseus quem a ordenaram mas, por outro lado, foram os soldados romanos que cumpriram o mandado de prisão".

Suspeito era o Tribunal que o iria julgar, pois dele recebeu Judas os trinta dinheiros com que atraiçoaria o seu Divino Mestre. Preso às 11 horas da noite, já à meia-noite Cristo fôra levado à presença de Anás. Este, velhaco e cruel, dominava o Sinédrio, Tribunal Supremo, onde cinco sacerdotes eram filhos seus e o presidente, seu genro Caifás. Se já pesava sobre aquele Tribunal uma comprovada suspeita, fato de Jesus ser levado à presença de Anás, que já não era sumo pontífice, mas apenas manipulador oculto das decisões do Sinédrio, evidencia o pré-julgamento daquele apressado e ignominioso processo.

Não obtendo - naquele interrogatório que faria inveja aos mais desalmados beleguins da nossa época - nenhuma prova, indício algum ou mesmo mera suposição de qualquer crime, Anás remeteu Jesus ao Sinédrio, que estava reunido sob a presidência de Caifás.

E o julgamento prosseguiu, às duas horas da madrugada de sexta-feira, sem figura nem forma de processo. Não houve acusação. As testemunhas arroladas eram falsas e mesmo assim, no dizer do evangelista Marcos, não eram concordes. Da boca de uma delas, surgiu a acusação: Jesus dissera - "Posso destruir o templo de Deus e reconstruí-lo em 3 dias".

Caifás, exultante, argüiu a Jesus sobre o que ouvira.

As palavras de Jesus, no entanto, não se referiam ao Templo de Jerusalém, mas ao seu próprio Corpo, metaforicamente considerado Templo Vivo de Deus.

Ante o inquietante silêncio de Jesus, Caifás procurou obter a sua confissão, inquirindo-o astuciosamente, com a evidente intenção de ilaquear a sua inocência: "Eu te conjuro, em nome do Deus Vivo, a que nos diga se és Cristo, o Filho do Deus Vivo". A esse repto Jesus proferiu uma advertência: "Se vo-lo disser, não me acreditareis. Também se vos fizer qualquer pergunta, não me respondereis, nem me dareis liberdade. Mas, depois disto, o Filho do Homem estará sentado à direita do Poder de Deus".

Replicaram, imediatamente, os julgadores, a uma voz: "Portanto, és o Filho de Deus!".

E então Jesus afirmou: "Vós o dizeis: Eu o sou".

E Caifás, triunfante, voltando-se para os seus comparsas, sentenciou, segundo relato de São Mateus: "Blasfemou! Para que precisamos, ainda, de testemunhas? Acabastes de ouvir a blasfêmia. Que vos parece?"

E os juízes do Sinédrio, acordes e uníssonos, proclamaram: "É réu de morte - reus est mortis".

Mas - e aqui surge mais outra nulidade - naquele nefando processo, além da acusação ser baseada num único depoimento, e é a de que o julgamento se estendera madrugada a dentro, ferindo preceito expresso da lei mosaica, segundo o qual só à luz alguém poderia ser julgado.

E, para sanar essa nulidade, entregaram Jesus à fúria da soldadesca para, ao romper do dia, ser confirmada a sentença já proclamada.

E assim se fez, violando, também, outro preceito legal, que ordenava que "nas causas pecuniárias pode-se terminar o processo no mesmo dia em que se começou; nas causas capitais pode-se pronunciar a absolvição no mesmo dia, mas a condenação deve - ao invés - deferir-se ao dia seguinte, na esperança que se encontre um argumento a favor do acusado".

O Tribunal Supremo dos judeus não tinha força executória para suas condenações à morte. Jerusalém estava sob o domínio de Roma; só o pontífice Pilatos, procurador dos romanos, poderia homologar tal condenação, ordenando que se a cumprisse.

Há mesmo quem sustente que, no Estado constitucional da Palestina, os judeus não só não tinham o direito de pronunciar uma condenação à morte, como o Sinédrio não poderia nem mesmo reunir-se para cuidar de um processo capital senão com a expressa autorização do Procurador dos romanos.

E a prova de que, no processo de Jesus, os judeus o julgaram sem a prévia licença do representante de Roma está no fato, segundo relata São João, de que, quando os judeus foram procurar Pilatos, este entendeu que eles vinham pedir aquela autorização e, então, lhes disse: "Tomai-o vós e julgai-o segundo a vossa lei".

E Jesus já estava julgado...

Mas foi Jesus levado à presença de Pilatos no Procuratorium, com a denúncia já decretada procedente pelo Sinédrio, mas a ele apresentada, não mais sob o aspecto religioso, mas sim como uma questão política a fim de angariar a ratificação de Pilatos: "Encontramos este homem subvertendo a nossa Nação, vedando pagar imposto a César e dizendo ser ele o Cristo-Rei".

Passa Pilatos a interrogar Jesus e desse interrogatório, relatado pelos evangelistas, encontramos a razão pela qual Jesus não se defendeu, nem tampouco teve a sua causa patrocinada por advogado.

As palavras de Jesus, em resposta ao tíbio procurador dos romanos, esclarecem a plenitude do sacrifício, a que livremente se impusera, para a salvação da humanidade. "O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros certamente haveriam de pelejar para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui".

Jesus não convocou nenhum súdito ou ministro seu para pelejar a fim de que ele não fosse entregue aos judeus.

Não se defendeu porque contra ele não havia acusação alguma. Não se defendeu, nem solicitou a outros que o livrassem do processo porque ele não veio a este mundo "para se fazer servir, mas para servir e para dar a sua vida como resgate da multidão".

Nunca, na feliz expressão de um historiador, "na terra nenhum ato foi tão livre interiormente, produzido tão exclusivamente pela vontade pessoal, como o sacrifício de Jesus no Gólgota".

"Ninguém toma a minha vida; eu mesmo que a dou. Tenho o poder de dá-la e tenho o poder de retomá-la".

Jesus não confocou nenhum advogado para assisti-lo, mesmo porque Ele é que, como sublime advogado, naquele nefando processo, estava patrocinando a causa da humanidade em cuja defesa iria sacrificar a própria vida, perdoando a final, na hora da morte, aos que o imolavam impiedosamente.

Pilatos, após interrogar Jesus, e procurando julgar-se incompetente, ratione materiae [=em razão da matéria], volta-se para os príncipes dos sacerdotes e proclama: "Não encontro culpa alguma neste homem".

Mas estes, que haviam apresentado Jesus como criminoso, por atos contrários à religião e ao poder civil, um e outro não apurados por Pilatos, voltam-se, com maior veemência, então, acusando-o: "Ele subleva o povo, ensinando por toda a Judéia, a começar da Galiléia até aqui". Tal acusação deu a Pilatos outra oportunidade para, fugindo à responsabilidade, deixar de absolver Jesus. Julgou-se incompetente, já agora ratione loci [=em razão do local].

Se Jesus tinha o seu domicílio em Nazaré, na Galiléia, e se o seu crime era o de sublevar os habitantes daquele reino, a competência para julgá-lo não era sua, mas sim de Herodes Antipas. A este, como governador do reino da Galiléia e da Peréia, pertencia a jurisdição criminal.

O expediente denunciador de uma astuta habilidade política de Pilatos, desaforando a causa, e que o usura com um dúplice fim: não condenar Jesus porque sabia que ele era inocente; e lisonjear a Herodes, com quem não mantinha relações políticas. Tal expediente, se atingira a este último escopo, fracassara quanto ao primeiro.

O ato de Pilatos não pode ser interpretado como um escrúpulo de constitucionalidade mas, segundo a opinião de Giovanini Rsadi4, como um desprezível expediente de irresolução e de contemporização, se não, também de deferência e de adulação para com o Tetrarca, com quem o procurador irrequieto estava até então em relação de inimizade, talvez devido à morte dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara aos sacrifícios.

Há, ainda, os que, como Daniel Rops5, vêem no ato de Pilatos, além daquele dúplice fim, uma armadilha lançada contra Herodes, então presente em Jerusalém para as festas da Páscoa, transferindo-lhe a responsabilidade por um veredicto embaraçante.

E o ardil consistia no fato de que o julgamento que o Tetrarca proferisse seria nulo, pois não poderia ele julgar fora das fronteiras do seu Estado que, por certo, limitavam a sua competência jurisdicional.

Realmente, autores há que sustentam a existência de um impedimento de ordem legal pois, se conforme a acusação, Jesus respondia a um delito de sedição continuada, começada na Galiléia e terminada em Jerusalém, na Judéia, a regra do Direito Romano que Pilatos não desconhecia, impunha a competência do fôro pelo lugar em que fôra preso o réu cometendo delito. E se Jesus fôra preso às portas de Jerusalém, a competência era de Pilatos e não de Herodes.

Mas Herodes, "árbitro momentâneo de embaraçosa situação", sem levantar nenhum conflito de jurisdição, ao cabo de um frustrado interrogatório, astuciosamente devolve o incômodo réu ao procônsul sem culpa alguma, apenas vestido de uma túnica branca, a indicar tratar-se de um insensato e irresponsável.

Há, por seu turno, certos comentadores que interpretam o gesto de Herodes, devolvendo Jesus a Pilatos, vestido de uma túnica branca, não como sendo um réu insensato e irresponsável, mas com uma intencional ironia para com Pilatos. A túnica branca, análoga a que em Roma os tribunos militares se revestiam para o combate ou que os candidatos às eleições traziam obrigatoriamente, tinha esse sentido romano e não o de ridicularizar Jesus, como se fosse rei dos judeus. Assim, a uma "blague" de Pilatos, Herodes respondia com um gesto de sibilina ironia.

Qualquer, porém, que seja a interpretação que se pretenda dar ao gesto de Pilatos, deferindo a competência para julgar a Herodes e a solerte réplica deste, o que se verifica, sob o aspecto estritamente jurídico, é mais uma nulidade, de vez que ao Tetrarca não era lícito exercer a judicatura fora dos limites da sua jurisdição.

Herodes e Pilatos, um e outro se valiam pois, na mesma bitola - compara-os d. Duarte Leopoldo e Silva6 - "aferidos pelo mesmo padrão, em muito pouco se encontrariam desiguais, um quase nada desconforme na vileza e covardia. Um e outro, o judeu e o romano, este prepotente e ambicioso, humilhado e vingativo aquele, inimigos que antes eram, aqui se apertavam as mãos, no campo neutro da judicatura; aqui se reconciliam irmanando interesse políticos, que se não entrechoquem em luta desigual e ventura".

Segundo o relato de São Lucas, quis ainda Pilatos, ao prosseguir no julgamento, escapar de sua responsabilidade, ponderando aos acusadores: "Apresentastes-me este homem como agitador do povo e eis que, interrogando-o eu diante de vós, não achei nele culpa alguma daquilo de que o acusais. Nem tampouco Herodes, pois o remeti a ele e eis que nada ficou apurado que mereça morte. Por isso, soltá-lo-ei depois de o castigar".

E Jesus foi horrivelmente flagelado mercê de um ato de extrema covardia de quem, julgando-o inocente, subordina a concessão de sua liberdade a um castigo.

Mas a multidão, insuflada pelos pontífices, não se satisfez com o simples flagelo. Quer a condenação de Jesus.

E Pilatos, mais uma vez, se acovarda e lança mão de outro recurso. Como era costume, na Páscoa, pôr em liberdade um prisioneiro que o povo designasse, o Procurador dos romanos usa do direito de indulto. E ofereceu à plebe a escolha: ou o assassino Barrabás ou Jesus. E o indultado foi o bandido e Jesus foi condenado à crucifixão.

E Pilatos lavou as mãos significando, com isso, conforme um costume judeu, que se julgava inocente daquele assassínio. Mas, como adverte Rosadi, o oceano não seria suficiente para lavar as suas mãos maculadas de sangue, ou melhor, o próprio oceano ficaria ensangüentado.

Chauvin7, ao estudar o processo de Jesus, acentua como Pilatos violou as formalidades mais elementares do processo romano: não designou os acusadores, não concedeu ao acusado os prazos de vigor para escolher seus advogados; não indagou mesmo se o acusado tinha um defensor. Portanto, nem acareação em regra, nem discussão contraditória, nem acareação de testemunhas de acusação e de defesa, finalmente, nem a sentença foi pronunciada nos termos regulares.

E foi assim que no ano 17 do Império de Tibério César e 30 da nossa era, numa sexta-feira, na Santa Cidade de Jerusalém, Pôncio Pilatos condenou a Jesus de Nazaré a morrer em uma cruz entre dois ladrões, um à direita e outro à esquerda, Jesus no meio. No meio - comenta São Boaventura - "como o principal e o maior dos celerados".

E, na sua sentença8, o juiz político e astucioso, covarde e hipócrita, consigna que, segundo os grandes e notórios testemunhos do povo, Jesus é sedutor, é sedioso, é inimigo da lei, chama-se falsamente rei de Israel, e entrou no Templo seguido da multidão levando palmas na mão.

Nos dois processos a que Jesus foi submetido, o religioso perante o Sinédrio e o civil perante Pilatos, ambos iniciados e concluídos em menos de 24 horas, foram cometidas as maiores iniqüidades a par de, segundo profundas pesquisas levadas a efeito por renomados juristas9, terem ocorrido mais de 30 nulidades.

Cumpre, ainda, lembrar, como o fez Dias de Azevedo, em interessante estudo, a clássica sentença de Cícero: "crimen sine accusatore, sententia sine concilio, demnatio sine defensione".

E Jesus foi crucificado.

Resta-nos, porém, a sua imagem veneranda e venerável. Resta-nos o crucifixo que, segundo o nosso grande e saudoso arcebispo d. Duarte Leopoldo e Silva, "é uma dádiva preciosa do seu amor, já agora para sempre fixando no vértice das igrejas ou na sala nobre das famílias que não se pejam das suas ignomínias" e, também - acrescentamos nós - já agora na sala onde se reúnem aqueles a quem foram confiados altos interesses de uma nobre classe, como a dos advogados de São Paulo.

Na condenação de Jesus há quatro cruzes que significam quatro atitudes:

  1. Há a cruz do mau ladrão, que encerra a vida de erros e pecados, blasfemando.
  2. Há a do bom ladrão que, embora criminoso, suplica perdão de seus pecados e se converte no primeiro santo da Igreja.
  3. Há a de Simão, o cirineu, que foi obrigado a carregar a cruz de Cristo e suportou-a nos ombros com orgulhosa dignidade.
  4. A quarta cruz foi a que levou Jesus. Esta representa um ato de vontade plena. As outras três foram impostas.

Toca a cada um de nós a escolha da cruz.

"Na cruz morreu o homem um dia. É preciso aprender a morrer na cruz todos os dias".

Vivemos na sociedade num permanente drama jurídico. A lei objetiva prevenir esses dramas e encontrar-lhes soluções adequadas. Cada um de nós, continuamente, está criando relações jurídicas que se resolvem, a maioria das vezes, dentro de um clima normal, no desenrolar cotidiano da nossa vida. Mas, o drama jurídico está sempre envolvendo em suas malhas uma multidão de pessoas que, não respeitando os princípios da coexistência social, ferem direitos alheios.

Cabe ao advogado, dentro desse drama, um papel saliente e de difícil desempenho. Surgimos no cenário jurídico, em defesa daqueles que se julgam feridos em seus dirreitos e também, do outro lado, aparecemos defendendo os autores das lesões.

Para libertar o advogado da terrível tragédia que representa a perda de um pleito, recordamos o conselho de um jurista castelhano, segundo o qual os advogados devem sentir os pleitos como próprios, mas julgá-los como alheios uma vez proferida a sentença.

Mas, na verdade, de tal forma nos identificamos com os interesses do cliente que, difícil senão impossível será traçar um limite dentro do qual sintamos a causa como própria, para em seguida senti-la como unicamente do cliente. Só a justiça divina, simbolizada na imagem de Cristo, fortalecerá o nosso ânimo para, compreendendo a falibilidade humana, continuarmos a pleitear justiça nesse espinhoso múnus público de que estamos investidos.

E a lição do maior processo da História, para o maior advogado brasileiro, o grande Ruy10, é a de que o bom ladrão se salvou, mas não há salvação para o juiz covarde.

Assim, na imagem de Cristo que ora entronizamos nesta sala de nossas reuniões, acima da ratio scripta que é a lei, vejamos a grande força civilizadora, cristalizada no ideal cristão - essa mola mestra do progresso social que, com base na unidade Divina, ensina aos homens que, pela sua progênie comum, são verdadeiros irmãos.

"Há vinte séculos que o espetáculo desse Deus sofredor ajuda os homens a suportarem o sofrimento".

Que Jesus nos dê forças para carregarmos a nossa cruz, iluminando o caminho a percorrermos com as luzes da sua Verdade e da sua Justiça.


*Ruy de Azevedo Sodré: membro do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados; do Instituto de Direito Social, do Instituto dos Advogados; da Sociedade Internacional de Direito Social; do Instituto de Direito do Trabalho do Rio Grande do Sul; do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros; e da Sociedade Paulista de Medicina Social e do Trabalho.


Referências:

  1. Oração proferida em nome do Conselho Seccional, em 08.12.1956, por ocasião da entronização da imagem de Cristo na sala de sessões.

  2. Armando Dias de Azevedo - "O maior processo da História": conferência pronunciada em 18.08.1954, no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul.

  3. Daniel Rops - "Jesus en son temps - la Passion".

  4. Giovanini Rosadi - "Il processo de Gesú".

  5. Daniel Rops - op. cit.

  6. d. Duarte Leopoldo e Silva - "Sermões da Paixão".

  7. Chauvin - "Le procés de Jesus-Christ".

  8. Sentença de Jesus Cristo proferida por Pôncio Pilatos. [...]

  9. Dias de Azevedo, na sua citada conferência, relata a revisão criminal do processo [...], publicada em 31.03.1931 pelo jornal "Estado do Rio Grande", de Porto Alegre-RS. [...]

  10. Ruy Barbosa - "O justo e a justiça política": artigo publicado na "A Imprensa", de 31.03.1899, e transcrito no Correio Paulistano, de 30.03.1956.