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Exortação Apostólica Pós-Sinodal
VITA CONSECRATA

III. SERVITIUM CARITATIS: A VIDA CONSAGRADA, EPIFANIA DO AMOR DE DEUS NO MUNDO

Consagrados para a missão

72. À imagem de Jesus, dilecto Filho «a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo» (Jo 10,36), também aqueles que Deus chama a seguir Cristo são consagrados e enviados ao mundo para imitar o seu exemplo e continuar a sua missão. Valendo fundamentalmente para todo o discípulo, isto aplica-se de modo especial àqueles que são chamados, na característica forma da vida consagrada, a seguir Cristo «mais de perto» e a fazer d'Ele o «tudo» da sua existência. Na sua vocação, portanto, está incluído o dever de se dedicarem totalmente à missão; mais, a própria vida consagrada, sob a acção do Espírito Santo que está na origem de toda a vocação e carisma, torna-se missão, tal como o foi toda a vida de Jesus. A profissão dos conselhos evangélicos, que torna a pessoa totalmente livre para a causa do Evangelho, revela a sua importância também desde este ponto de vista. Assim há que afirmar que a missão é essencial para cada Instituto, não só nos de vida apostólica activa, mas também de vida contemplativa.

Na realidade, a missão, antes de ser caracterizada pelas obras externas, define-se pelo tornar presente o próprio Cristo no mundo, através do testemunho pessoal. Este é o desafio, a tarefa primária da vida consagrada! Quanto mais se deixa conformar com Cristo, tanto mais O torna presente no mundo e operante para a salvação dos homens.Assim, pode-se afirmar que a pessoa consagrada está «em missão» por força da sua própria consagração, testemunhada segundo o projecto do respectivo Instituto. Quando o carisma de fundação prevê actividades pastorais, é óbvio que o testemunho de vida e as obras de apostolado e promoção humana são igualmente necessários: ambos representam Cristo, que é simultaneamente o consagrado à glória do Pai e o enviado ao mundo para a salvação dos irmãos e irmãs.lém disso, a vida religiosa participa na missão de Cristo por outro elemento peculiar que lhe é próprio: a vida fraterna em comunidade para a missão. Por isso, a vida religiosa será tanto mais apostólica quanto mais íntima for a sua dedicação ao Senhor Jesus, quanto mais fraterna for a sua forma comunitária de existência, quanto mais ardoroso for o seu empenhamento na missão específica do Instituto.

Ao serviço de Deus e do homem

73. A vida consagrada tem a função profética de recordar e servir o desígnio de Deus sobre os homens, tal como esse desígnio é anunciado pela Escritura e resulta também da leitura atenta dos sinais da acção providente de Deus na história. É projecto de uma humanidade salva e reconciliada (cf. Col 2,20-22). Para cumprirem convenientemente tal serviço, as pessoas consagradas devem ter uma profunda experiência de Deus e tomar consciência dos desafios do seu tempo, identificando o sentido teológico profundo deles por meio do discernimento realizado com a ajuda do Espírito. É que, nos acontecimentos históricos, encerra-se frequentemente o apelo de Deus para trabalharmos segundo os seus planos com uma inserção activa e fecunda nos acontecimentos do nosso tempo.O discernimento dos sinais dos tempos, como afirma o Concílio, deve ser feito à luz do Evangelho, para que se «possa responder (...) às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas».É necessário, portanto, abrir o coraçao às sugestões interiores do Espírito, que convida a ler em profundidade os desígnios da Providência. Ele chama a vida consagrada a elaborar novas respostas para os problemas novos do mundo actual. São solicitações divinas, que só almas habituadas a procurar em tudo a vontade de Deus conseguem captar fielmente e, depois, traduzi-las corajosamente em opções coerentes seja com o carisma originário, seja com as exigências da situação histórica concreta.Perante os numerosos problemas e urgências que parecem às vezes comprometer e até mesmo transtornar a vida consagrada, os chamados não podem deixar de sentir o compromisso de conservarem no coração e levarem à oração as inúmeras necessidades do mundo inteiro, ao mesmo tempo que trabalham vigorosamente nos campos ligados ao carisma de fundação. A sua dedicação deverá, obviamente, ser guiada pelo discernimento sobrenatural, que sabe distinguir o que vem do Espírito daquilo que Lhe é contrário (cf. Gal 5,16-17.22; 1 Jo 4,6). Mediante a fidelidade à Regra e às Constituições, tal discernimento conserva a plena comunhão com a Igreja.ssim, a vida consagrada não se limitará a ler os sinais dos tempos, mas há-de contribuir também para elaborar e actuar novos projectos de evangelização para as situações actuais. E tudo isto, na certeza derivada da fé de que o Espírito sabe dar as respostas apropriadas mesmo às questões mais difíceis. A este respeito, será bom redescobrir aquilo que sempre ensinaram os grandes protagonistas da acção apostólica: é preciso confiar em Deus como se tudo dependesse d'Ele e, ao mesmo tempo, empenhar-se generosamente como se tudo dependesse de nós.

Colaboração eclesial e espiritualidade apostólica

74. Tudo deve ser feito em comunhão e diálogo com as outras componentes eclesiais. Os desafios da missão são tais que não podem ser eficazmente enfrentados, tanto no discernimento como na acção, sem a colaboração de todos os membros da Igreja. Dificilmente o indivíduo isoladamente possui a resposta decisiva: esta, ao contrário, pode brotar da confrontação e do diálogo. De modo particular, a comunhão de acção entre os vários carismas não deixará de garantir, para além do enriquecimento recíproco, uma eficácia mais incisiva na missão. A experiência destes anos confirma largamente que «o diálogo é o novo nome da caridade»,especialmente da caridade eclesial; aquele ajuda a ver os problemas nas suas reais dimensões, e permite enfrentá-los com melhores esperanças de sucesso. A vida consagrada, pelo facto mesmo de cultivar o valor da vida fraterna, apresenta-se como uma experiência privilegiada de diálogo. Deste modo, ela pode contribuir para criar um clima de aceitação recíproca, no qual os vários sujeitos eclesiais, sentindo-se valorizados por aquilo que são, concorrem de maneira mais convicta para a comunhão eclesial, orientada para a grande missão universal.Os Institutos empenhados nas várias formas de serviço apostólico devem, enfim, cultivar uma sólida espiritualidade da acção, vendo Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. De facto, «é preciso saber que como uma vida bem ordenada tende a passar da vida activa à contemplativa, também a maior parte das vezes o espírito regressa com proveito da vida contemplativa à activa, para conservar mais perfeitamente a vida activa para aquilo que a vida contemplativa lhe acendeu na mente. Portanto a vida activa deve transferir-nos à vida contemplativa, e algumas vezes a contemplação, por aquilo que vimos interiormente, há-de chamar-nos a uma melhor acção».O próprio Jesus nos deu o exemplo perfeito de como é possível unir a comunhão com o Pai e uma vida intensamente activa. Sem a tensão constante para tal unidade, o perigo de colapso interior, desorientação e desânimo está continuamente à espreita. A união íntima entre a contemplação e a acção permitirá, hoje como ontem, enfrentar as missões mais difíceis.

1. O Amor até ao Fim

Amar com o coração de Cristo

75. «Ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim. E, no decorrer da ceia, (...) levantou-Se da mesa (...) e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cinta» (Jo 13,1-2.4-5).

Ao lavar os pés, Jesus revela a profundidade do amor de Deus pelo homem: n'Ele, o próprio Deus põe-Se ao serviço dos homens! Mas revela ao mesmo tempo o sentido da vida cristã e, com maior razão, da vida consagrada, que é vida de amor oblativo , de serviço concreto e generoso. No seguimento do Filho do homem que «não veio ao mundo para ser servido, mas para servir» (Mt 20,28), a vida consagrada, pelo menos nos períodos melhores da sua longa história, caracterizou-se por este «lavar os pés», ou seja, pelo serviço sobretudo aos mais pobres e necessitados. Se, por um lado, aquela contempla o mistério sublime do Verbo no seio do Pai (cf. Jo 1,1), por outro, segue o Verbo que Se faz carne (cf. Jo 1,14), aniquila, humilha para servir os homens. As pessoas que seguem Cristo pelo caminho dos conselhos evangélicos também hoje se propõem ir até onde Cristo foi e fazer o que Ele fez.Continuamente Jesus chama a Si novos discípulos, homens e mulheres, para lhes comunicar, mediante a efusão do Espírito (cf. Rm 5,5), a agape divina, o seu modo de amar, estimulan- do-os assim a servirem os outros, no humilde dom de si próprios, sem cálculos interesseiros. A Pedro que, extasiado pelo resplendor da Transfiguração, exclama: «Senhor, é bom estarmos aqui» (Mt 17,4), é dirigido o convite a regressar às estradas do mundo, para continuar a servir o Reino de Deus: «Desce, Pedro! Desejavas repousar no monte. Desce! Prega a Palavra de Deus, insiste a todo o momento, oportuna e inoportunamente, repreende, exorta, encoraja com toda a paciência e doutrina. Trabalha, não olhes a canseiras, nem rejeites dores ou suplícios, a fim de que, pela candura e beleza das boas obras, tu possuas na caridade aquilo que está simbolizado nas vestes brancas do Senhor».O olhar fixo no rosto do Senhor não diminui no apóstolo o empenho a favor do homem; pelo contrário, reforça-o, dotando-o de uma nova capacidade de influir na história, para a libertar de tudo quanto a deforma.A busca da beleza divina impele as pessoas consagradas a cuidarem da imagem divina deformada nos rostos de irmãos e irmãs: rostos desfigurados pela fome, rostos desiludidos pelas promessas políticas, rostos humilhados de quem vê desprezada a própria cultura, rostos assustados pela violência quotidiana e indiscriminada, rostos angustiados de menores, rostos de mulheres ofendidas e humilhadas, rostos cansados de migrantes sem um digno acolhimento, rostos de idosos sem as mínimas condições para uma vida digna.A vida consagrada prova assim, com a eloquên- cia das obras, que a caridade divina é fundamento e estímulo do amor gratuito e operoso. Bem convencido disto estava S. Vicente de Paulo, quando indicava às Filhas da Caridade este programa de vida: «O espírito da Companhia consiste em dar-se a Deus para amar Nosso Senhor e servi-Lo na pessoa dos pobres material e espiritualmente, nas suas casas e noutros lugares, para instruir as meninas pobres, as crianças, e em geral todos aqueles que a divina Providência vos manda».ntre os possíveis âmbitos da caridade, certamente aquele que, a título especial, manifesta ao mundo o amor «até ao fim» é, hoje, o anúncio apaixonado de Jesus Cristo àqueles que ainda não O conhecem, aos que O esqueceram, e de modo preferencial aos pobres.

Contribuição específica da vida consagrada para a evangelização

76. A contribuição específica dos consagrados e consagradas para a evangelização consiste, primariamente, no testemunho de uma vida totalmente entregue a Deus e aos irmãos, à imitação do Salvador que Se fez servo, por amor do homem. Na obra da salvação, de facto, tudo provém da participação na agape divina. As pessoas consagradas, na sua consagração e total doação, tornam visível a presença amorosa e salvadora de Cristo, o consagrado do Pai, enviado em missão.Deixando-se conquistar por Ele (cf. Fil 3,12), aquelas dispõem-se a ser, de certo modo, um prolongamento da sua humanidade.A vida consagrada mostra eloquentemente que quanto mais se vive de Cristo, tanto melhor se pode servi-Lo nos outros, aventurando-se até aos postos de vanguarda da missão, e abraçando os maiores riscos.

A primeira evangelização: anunciar Cristo aos povos

77. Quem ama a Deus, Pai de todos, não pode deixar de amar os seus semelhantes, nos quais reconhece igualmente seus irmãos e irmãs. Por isso mesmo, não pode ficar indiferente face à constatação de que muitos deles não conhecem a plena manifestação do amor de Deus em Cristo. Daqui nasce, por obediência ao mandato de Cristo, o ardor missionário ad gentes , que todo o cristão consciente partilha com a Igreja, missionária por natureza. É um ardor sentido sobretudo pelos membros dos Institutos, tanto de vida contemplativa como activa.De facto, as pessoas consagradas têm o dever de tornar presente, mesmo entre os não cristãos,Jesus Cristo casto, pobre, obediente, orante e missionário.Permanecendo dinamicamente fiéis ao próprio carisma, elas, por força da sua consagração mais íntima a Deus,não podem deixar de se sentirem comprometidas numa especial colaboração com a actividade missionária da Igreja. Aquele desejo tantas vezes manifestado por Teresa de Lisieux: «amar-Te e fazer-Te amar»; o ardente anseio de S. Francisco Xavier de que «muitos daqueles que estudam as ciências, se meditassem nas contas que Deus nosso Senhor lhes há-de pedir delas e do talento que lhes deu, decidir-se-iam a procurar meios e Exercícios espirituais para conhecer e ouvir dentro da própria alma a vontade divina, e, conformando-se mais com ela do que com as próprias inclinações, diriam: "Senhor, eis-me aqui; que quereis que eu faça? Mandai-me onde quiserdes"»,e outros testemunhos semelhantes de inumeráveis almas santas manifestam a irreprimível tensão missionária que determina e qualifica a vida consagrada.

Presentes em todos os cantos da terra

78. «O amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5,14): os membros de cada Instituto deveriam poder repetir isto com o Apóstolo, porque é tarefa da vida consagrada trabalhar em todos os cantos da terra para consolidar e dilatar o Reino de Cristo, levando o anúncio do Evangelho a todo o lado, mesmo às regiões mais longínquas.Na verdade, a história missionária testemunha a grande contribuição que eles deram para a evangelização dos povos: desde as antigas Famílias monásticas até às Fundações mais recentes empenhadas de maneira exclusiva na missão ad gentes, desde os Institutos de vida activa até aos que se dedicam à contemplação,inúmeras pessoas consumaram as próprias energias nesta «actividade primária e essencial da Igreja, jamais concluída»,porque dirigida à multidão, sempre maior, daqueles que não conhecem Cristo.

Ainda hoje, este dever continua a interpelar urgentemente os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica: o anúncio do Evangelho de Cristo espera deles a máxima contribuição possível. Mesmo os Institutos que surgem ou trabalham nas jovens Igrejas são convidados a abrirem-se à missão junto dos não cristãos, dentro e fora da sua pátria. Apesar das compreensíveis dificuldades que alguns deles possam atravessar, é bom que todos se lembrem que da mesma forma que «é dando a fé que ela se fortalece»,assim também a missão reforça a vida consagrada, dá-lhe novo entusiasmo e novas motivações, estimula a sua fidelidade; e a actividade missionária, por sua vez, oferece amplos espaços para acolher as mais variadas formas de vida consagrada.A missão ad gentes oferece oportunidades extraordinárias e especiais às mulheres consagradas, aos religiosos irmãos e aos membros dos Institutos seculares, para uma acção particularmente incisiva. Os últimos referidos podem, com a sua presença nos vários âmbitos típicos da vocação laical, desempenhar uma preciosa obra de evangelização dos ambientes, das estruturas e mesmo das leis que regulam a convivência social. Além disso, podem testemunhar os valores evangélicos junto das pessoas que ainda não conhecem Jesus, dando assim uma específica contribuição para a missão.Há que sublinhar ainda que, nos países onde estão radicadas religiões não cristãs, assume enorme importância a presença da vida consagrada, tanto por meio das actividades educativas, assistênciais e culturais, como através da figura da vida contemplativa. Por isso, deve-se encorajar nas novas Igrejas, de modo particular, a fundação de comunidades dedicadas à contemplação, uma vez que «a vida contemplativa pertence à plenitude da presença da Igreja».É necessário, enfim, promover com meios adequados uma equitativa distribuição da vida consagrada em suas várias formas, para suscitar um novo impulso evangelizador, quer pelo envio de missionários e missionárias, quer com a devida ajuda dos Institutos de vida consagrada às dioceses mais pobres.

Anúncio de Cristo e inculturação

79. O anúncio de Cristo «tem a prioridade permanente, na missão»da Igreja, e visa a conversão, isto é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao seu Evangelho.No quadro da actividade missionária, entram também o processo de inculturação e o diálogo inter-religioso. O desafio da inculturação há-de ser acolhido pelas pessoas consagradas como apelo a uma fecunda cooperação com a graça na aproximação às diversas culturas. Isto supõe séria preparação pessoal, dotes maturos de discernimento, fiel adesão aos critérios indispensáveis de ortodoxia doutrinal, autenticidade e comunhão eclesial.Com o apoio do carisma dos fundadores e fundadoras, muitas pessoas consagradas souberam aproximar-se das diversas culturas, com a atitude de Jesus que «Se despojou a Si mesmo tomando a condição de servo» (Fil 2,7), e, com um paciente e audaz esforço de diálogo, estabeleceram contactos proveitosos com os povos mais diversos, a todos anunciando o caminho da salvação. Também hoje, muitas delas sabem procurar e encontrar, na história dos indivíduos e de povos inteiros, vestígios da presença de Deus, que guia toda a humanidade para o discernimento dos sinais da sua vontade redentora. E tal investigação revela-se vantajosa também para as próprias pessoas consagradas: na verdade, os valores descobertos nas diversas civilizações podem levá-las a aumentar o seu empenho de contemplação e oração, a praticar mais intensamente a partilha comunitária e a hospitalidade, a cultivar com maior diligência a atenção à pessoa e o respeito pela natureza.Para uma autêntica inculturação, são necessárias atitudes semelhantes às do Senhor, quando, com amor e humildade, encarnou e veio habitar entre nós. Neste sentido, a vida consagrada torna as pessoas particularmente preparadas para enfrentar o processo complexo da inculturação, visto que as habitua ao desprendimento das coisas e até mesmo de muitos aspectos da própria cultura. Aplicando-se com estas atitudes ao estudo e à compreensão das culturas, os consagrados podem discernir melhor nelas os valores autênticos e o modo como acolhê-los e aperfeiçoá-los com o auxílio do próprio carisma.No entanto, convém não esquecer que, em muitas culturas antigas, a expressão religiosa está tão profundamente arreigada que a religião representa muitas vezes a dimensão transcendente da cultura. Neste caso, uma verdadeira inculturação comporta necessariamente um sério e franco diálogo inter-religioso, que «não está em contraposição com a missão ad gentes», nem «dispensa a evangelização».

A inculturação da vida consagrada

80 A vida consagrada, portadora por natureza de valores evangélicos, pode por sua vez oferecer, nos lugares onde é vivida com autenticidade, uma contribuição original para os desafios da inculturação. De facto, sendo um sinal do primado de Deus e do seu Reino, ela torna-se uma provocação que, no diálogo, pode despertar as consciências dos homens. Se a vida consagrada mantiver a força profética que lhe é própria, torna-se fermento evangélico dentro de uma cultura, capaz de a purificar e elevar. Isto mesmo o demonstra a história de numerosos santos e santas, que, em épocas diversas, souberam inserir-se no seu tempo, sem se deixar submergir, mas antes conseguindo apontar novos caminhos à sua geração. O estilo de vida evangélico é uma fonte importante para a proposta de um novo modelo cultural. Quantos fundadores e fundadoras, tendo individuado algumas exigências do seu tempo, procuraram, com todas as limitações por eles mesmos reconhecidas, dar-lhes remédio com uma resposta que se tornou proposta cultural inovadora!

As comunidades dos Institutos religiosos e das Sociedades de Vida Apostólica podem, de facto, oferecer concretas e significativas propostas culturais, quando testemunham o modo evangélico de viver o acolhimento recíproco na diversidade e de exercer a autoridade, quando testemunham a partilha dos bens tanto materiais como espirituais, a universalidade, a colaboração intercongregacional, a escuta dos homens e mulheres do nosso tempo. Na verdade, o modo de pensar e agir de quem segue Cristo mais de perto dá origem a uma verdadeira e própria cultura de referência, faz evidenciar aquilo que é desumano, testemunha que só Deus dá aos valores vigor e plenitude. Uma autêntica inculturação ajudará, por sua vez, as pessoas consagradas a viverem o radicalismo evangélico, segundo o carisma do próprio Instituto e a índole do povo com que entram em contacto. Deste fecundo relacionamento, brotam estilos de vida e métodos pastorais que poderão revelar-se uma autêntica riqueza para o Instituto inteiro, se forem coerentes com o carisma de fundação e com a acção unificadora do Espírito Santo. Uma garantia de recto caminho, neste processo feito de discernimento e audácia, de diálogo e provocação evangélica, é oferecida pela Santa Sé, à qual compete encorajar a evangelização das culturas, bem como autenticar os seus progressos e sancionar os seus êxitos em ordem à inculturação,tarefa esta «delicada e difícil, porque está em causa a fidelidade da Igreja ao Evangelho e à Tradição Apostólica, na evolução constante das culturas».

A nova evangelização

81. Para enfrentar adequadamente os grandes desafios que a história actual coloca à nova evangelização, faz falta, antes de mais, uma vida consagrada que se deixe interpelar continuamente pela Palavra revelada e pelos sinais dos tempos.A recordação das grandes evangelizadoras e evangelizadores — antes tinham sido grandes evangelizados — revela que, para enfrentar o mundo de hoje, são necessárias pessoas dedicadas amorosamente ao Senhor e ao seu Evangelho. «As pessoas consagradas, pela sua vocação específica, são chamadas a fazer emergir a unidade entre auto-evangelização e testemunho, entre renovação interior e ardor apostólico, entre ser e agir, evidenciando que o dinamismo provém sempre do primeiro elemento do binómio».A nova evangelização, como a evangelização de sempre, será eficaz se souber proclamar sobre os tectos aquilo que antes viveu na intimidade com o Senhor. Para tal, requerem-se personalidades sólidas, animadas pelo fervor dos santos. A nova evangelização exige nos consagrados e consagradas plena consciência do sentido teológico dos desafios do nosso tempo. Estes desafios hão-de ser examinados, com discernimento atento e concorde, em ordem à renovação da missão. A coragem do anúncio do Senhor Jesus deve ser acompanhada pela confiança na acção da Providência que opera no mundo de tal modo que «tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja».lementos importantes para uma útil inserção dos Institutos no processo da nova evangelização são a fidelidade ao carisma de fundação, a comunhão com quantos na Igreja estão empenhados no mesmo empreendimento, especialmente com os Pastores, e a cooperação com todos os homens de boa vontade. Isto exige um sério discernimento dos apelos que o Espírito dirige a cada Instituto, tanto nas regiões onde não se prevêem a curto prazo grandes progressos, como nas outras onde já se anuncia uma consoladora revitalização. Em cada lugar e situação, as pessoas consagradas sejam ardorosos anunciadores do Senhor Jesus, prontas a responder com a sabedoria evangélica às interpelações feitas hoje pela inquietude do coração humano e pelas suas urgentes necessidades.

A predilecção pelos pobres e a promoção da justiça

82. Ao início do seu ministério, na sinagoga de Nazaré, Jesus proclama que o Espírito O consagrou para levar aos pobres uma boa nova, para anunciar a libertação aos cativos, devolver a vista aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,16-19). A Igreja, assumindo como própria a missão do Senhor, anuncia o Evangelho a todo o homem e mulher, preocupando-se pela sua salvação integral. Mas, com uma atenção especial, uma verdadeira «opção preferencial», ela dirige-se a quantos se encontram em situação de maior debilidade e, consequentemente, de maior necessidade. «Pobres», nas várias acepções da pobreza, são os oprimidos, os marginalizados, os idosos, os doentes, as crianças, todos aqueles que são considerados e tratados como «últimos» na sociedade.

A opção pelos pobres inscreve-se na própria dinâmica do amor, vivido segundo Jesus Cristo. Assim estão obrigados a ela todos os seus discípulos; mas aqueles que querem seguir o Senhor mais de perto, imitando as suas atitudes, não podem deixar de se sentirem implicados de modo absolutamente particular em tal opção. A sinceridade da sua resposta ao amor de Cristo leva-os a viver como pobres e a abraçar a causa dos pobres. Isto comporta para cada Instituto, de acordo com o seu carisma específico, a adopção de um estilo de vida, tanto pessoal como comunitário, humilde e austero. Apoiadas pela vivência deste testemunho, as pessoas consagradas poderão, nos modos adequados à sua opção de vida e permanecendo livres relativamente às ideologias políticas, denunciar as injustiças que são perpetradas contra tantos filhos e filhas de Deus, e empenhar-se na promoção da justiça no ambiente social onde actuam.Deste modo, renovar-se-á também nas situações actuais, graças ao testemunho de inúmeras pessoas consagradas, aquela dedicação própria dos fundadores e fundadoras, que gastaram a sua vida a servir o Senhor, presente nos pobres. Na verdade, Cristo «encontra-se, na terra, na pessoa dos seus pobres (...). Enquanto Deus, é rico; enquanto homem, pobre. Com efeito, o próprio homem já rico subiu ao céu, está sentado à direita do Pai, mas aqui em baixo, pobre ainda agora, sofre a fome, a sede, a nudez». Evangelho torna-se efectivo através da caridade, que é glória da Igreja e sinal da sua fidelidade ao Senhor. Demonstra-o toda a história da vida consagrada, que pode ser considerada como uma exegese viva da palavra de Jesus: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40). Muitos Institutos, especialmente na idade moderna, nasceram precisamente para ir ao encontro das diversas necessidades dos pobres. Mas, mesmo quando tal finalidade não foi determinante, a atenção e a solicitude pelos indigentes, expressas mediante a oração, o acolhimento e a hospitalidade, sempre acompanharam naturalmente as várias formas de vida consagrada, inclusive a vida contemplativa. E como poderia ser de outra maneira, uma vez que o Senhor encontrado na contemplação é o mesmo que vive e sofre nos pobres? A história da vida consagrada é rica, neste sentido, de exemplos maravilhosos, por vezes geniais. S. Paulino de Nola, depois de ter distribuído os seus bens aos pobres para se consagrar a Deus, levantou as celas do seu mosteiro sobre um albergue destinado precisamente aos indigentes. Ele rejubilava ao pensar nesta singular «permuta de dons»: os pobres por ele assistidos consolidavam, com a sua oração, os próprios «alicerces» da sua casa, toda ela dedicada ao louvor de Deus.S. Vicente de Paulo, por seu lado, gostava de dizer que, quando se tem de deixar a oração para ir prestar assistência a um pobre em necessidade, na realidade a oração não é interrompida, porque «se deixa Deus para ir estar com Deus».ervir os pobres é acto de evangelização e, ao mesmo tempo, selo de fidelidade ao Evangelho e estímulo de conversão permanente para a vida consagrada, porque — como diz S. Gregório Magno — «quando a caridade se debruça amorosamente a prover mesmo às ínfimas necessidades do próximo, então é que se alteia até aos cumes mais elevados. E quando benignamente se inclina sobre as necessidades extremas, então mais vigorosamente retoma o voo para as alturas».

O cuidado dos doentes

83. Seguindo uma gloriosa tradição, um grande número de pessoas consagradas, sobretudo mulheres, exercem o seu apostolado nos meios hospitalares, segundo o carisma do respectivo Instituto. Ao longo dos séculos, muitas foram as pessoas consagradas que sacrificaram a sua vida ao serviço das vítimas de doenças contagiosas, mostrando que pertence à índole profética da vida consagrada a dedicação até ao heroísmo.

A Igreja olha com admiração e reconhecimento para tantas pessoas consagradas que, assistindo os doentes e atribulados, contribuem de modo significativo para a sua missão. Elas continuam o ministério de misericórdia de Cristo, que «passou (..) fazendo o bem e curando a todos» (Act 10,38). Seguindo os passos d'Ele, divino Samaritano, médico das almas e dos corpos,e a exemplo dos respectivos fundadores e fundadoras, as pessoas consagradas, que a tal são encaminhadas pelo carisma do próprio Instituto, perseverem no seu testemunho de amor pelos enfermos, dedicando-se a eles com profunda compreensão e solidariedade. Nas suas opções, privilegiem os doentes mais pobres e abandonados, bem como os idosos, os inválidos, os marginalizados, os doentes em fase terminal, as vítimas da droga e das novas doenças contagiosas. Encorajem aos enfermos a oferta do próprio sofrimento em comunhão com Cristo crucificado e glorioso para a salvação de todos;mais ainda, alimentem neles a consciência de serem, por meio da oração e do testemunho da palavra e da vida, sujeitos activos de pastoral através do peculiar carisma da cruz.lém disso, a Igreja lembra aos consagrados e consagradas que faz parte da sua missão evangelizar os meios hospitalares onde trabalham, procurando iluminar, através da comunicação dos valores evangélicos, o modo de viver, sofrer e morrer dos homens do nosso tempo. É compromisso seu dedicarem-se à humanização da medicina e ao aprofundamento da bioética, ao serviço do Evangelho da vida. Por isso, promovam sobretudo o respeito pela pessoa e pela vida humana desde a concepção até ao seu termo natural, em plena conformidade com o ensinamento moral da Igreja,instituindo também centros de formação para tal fime colaborando fraternalmente com os organismos eclesiais da pastoral no campo da saúde.

2. Um Testemunho Profético face aos Grandes Desafios

O profetismo da vida consagrada

84. O carácter profético da vida consagrada foi posto em grande relevo pelos Padres sinodais. Apresenta-se como uma forma especial de participação na função profética de Cristo, comunicada pelo Espírito a todo o Povo de Deus. De facto, o profetismo é inerente à vida consagrada enquanto tal, devido ao radicalismo do seguimento de Cristo e da consequente dedicação à missão que o caracteriza. A função de sinal, que o Concílio Vaticano II atribui à vida consagrada, expri-me-se no testemunho profético da primazia que Deus e os valores do Evangelho têm na vida cristã. Em virtude desta primazia, nada pode ser preferido ao amor pessoal por Cristo e pelos pobres, nos quais Ele vive.A tradição patrística viu um modelo da vida religiosa monástica em Elias, profeta audaz e amigo de Deus.Vivia na sua presença e contemplava no silêncio a sua passagem, intercedia pelo povo e proclamava com coragem a sua vontade, defendia os direitos de Deus e levantava-se em defesa dos pobres contra os poderosos do mundo (cf. 1 Rs 18-19; 21). Na história da Igreja, juntamente com outros cristãos, não faltaram homens e mulheres consagrados a Deus que exerceram, por dom particular do Espírito, um autêntico ministério profético, falando em nome de Deus a todos, também aos Pastores da Igreja. A verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta diligente da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta sente arder no coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter acolhido a palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os lábios e com os gestos, fazendo-se porta-voz de Deus contra o mal e o pecado. O testemunho profético requer a busca constante e apaixonada da vontade de Deus, uma comunhão eclesial generosa e imprescindível, o exercício do discernimento espiritual, o amor pela verdade. O referido testemunho exprime-se ainda mediante a denúncia do que é contrário à vontade divina e a busca de novos caminhos para actuar o Evangelho na história, na perspectiva do Reino de Deus.

A sua importância para o mundo contemporâneo

85. No nosso mundo, onde frequentemente parecem ter-se perdido os vestígios de Deus, torna-se urgente um vigoroso testemunho profético por parte das pessoas consagradas. Tal testemunho versará, primariamente, sobre a afirmação da primazia de Deus e dos bens futuros, como transparece do seguimento e imitação de Cristo casto, pobre e obediente, votado completamente à glória do Pai e ao amor dos irmãos e irmãs. A própria vida fraterna é já profecia em acto, numa sociedade que, às vezes sem se dar conta, anela profundamente por uma fraternidade sem fronteiras. Às pessoas consagradas é pedido que ofereçam o seu testemunho, com a ousadia do profeta que não tem medo de arriscar a própria vida.

Uma íntima força persuasiva da profecia vem-lhe da coerência entre o anúncio e a vida. As pessoas consagradas serão fiéis à sua missão na Igreja e no mundo, se forem capazes de se reverem continuamente a si próprias à luz da Palavra de Deus.Poderão assim enriquecer os outros fiéis com os dons carismáticos recebidos, deixando-se por sua vez interpelar pelas provocações proféticas vindas dos outros elementos eclesiais. Nesta permuta de dons, garantida por uma plena sintonia com o Magistério e a disciplina da Igreja, resplandecerá a acção do Espírito, que «conduz [a Igreja] à verdade total e unifica-a na comunhão e no ministério, enriquece-a e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos».

Uma fidelidade até ao martírio

86. Neste século, como noutras épocas da história, homens e mulheres consagrados testemunharam Cristo Senhor, com o dom da própria vida. Contam-se aos milhares aqueles que, escorraçados para as catacumbas pela perseguição de regimes totalitários ou de grupos violentos, hostilizados na actividade missionária, na acção em favor dos pobres, na assistência aos doentes e marginalizados, viveram, e vivem, a sua consagração num sofrimento prolongado e heróico, chegando muitas vezes até ao derramamento do próprio sangue, plenamente configurados com o Senhor crucificado. A alguns deles, a Igreja já reconheceu oficialmente a sua santidade, honrando-os como mártires de Cristo. Eles iluminam-nos com o seu exemplo, intercedem pela nossa fidelidade, esperam-nos na glória.

Deseja-se vivamente que a memória de tantas testemunhas da fé perdure na consciência da Igreja, como incentivo à sua celebração e imitação. Os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica contribuam para esta obra, recolhendo os nomes e os testemunhos de todas as pessoas consagradas que possam ser escritas no Martirológio do século XX.

Os grandes desafios da vida consagrada

87. A missão profética da vida consagrada ve-se provocada por três desafios principais, lançados à própria Igreja: são desafios de sempre, colocados sob formas novas e talvez mais radicais pela sociedade contemporânea, pelo menos nalgumas partes do mundo. Tocam directamente os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência, estimulando a Igreja, e de modo particular as pessoas consagradas, a pôr em evidência e testemunhar o seu significado antropológico profundo. Na verdade, a opção por estes conselhos, longe de constituir um empobrecimento de valores autenticamente humanos, revela-se antes como uma transfiguração dos mesmos. Os conselhos evangélicos não hão-de ser considerados como uma negação dos valores inerentes à sexualidade, ao legítimo desejo de usufruir de bens materiais, e de decidir autonomamente sobre si próprio. Estas inclinações, enquanto fundadas na natureza, são boas em si mesmas; mas a criatura humana, enfraquecida como está pelo pecado original, corre o risco de as exercitar de modo transgressivo. A profissão de castidade, pobreza e obediência torna-se uma admoestação a que não se subestimem as feridas causadas pelo pecado original, e, embora afirmando o valor dos bens criados, relativiza-os pelo simples facto de apontar Deus como o bem absoluto. Desta forma, aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma «terapia espiritual» para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial.

O desafio da castidade consagrada

88. A primeira provocação provém de uma cultura hedonista que separa a sexualidade de qualquer norma moral objectiva, reduzindo-a frequentemente ao nível de objecto de diversao e consumo, e favorecendo, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, uma espécie de idolatria do instinto. As consequências disto estão à vista de todos: prevaricações de todo o género, geradoras de inúmeros sofrimentos psíquicos e morais para os indivíduos e as famílias. A resposta da vida consagrada está, antes de mais, na prática alegre da castidade perfeita, como testemunho da força do amor de Deus na fragilidade da condição humana. A pessoa consagrada atesta que aquilo que é visto como impossível pela maioria da gente, torna-se, com a graça do Senhor Jesus, possível e verdadeiramente libertador. Sim, em Cristo é possível amar a Deus com todo o coração, pondo-O acima de qualquer outro amor, e amar assim, com a liberdade de Deus, toda a criatura! Este testemunho é hoje mais necessário que nunca, exactamente por ser tão pouco compreendido pelo nosso mundo. Ele é oferecido a toda a gente — aos jovens, aos noivos, aos cônjuges, às famílias cristãs — para mostrar a todos que a força do amor de Deus pode operar grandes coisas, mesmo no âmbito das vicissitudes do amor humano. É um testemunho que vai de encontro também a uma necessidade crescente de transparencia interior nas relações humanas.

É preciso que a vida consagrada apresente ao mundo de hoje exemplos de uma castidade vivida por homens e mulheres que demonstram equilíbrio, domínio de si, espírito de iniciativa, maturidade psicológica e afectiva.Graças a este testemunho, é oferecido ao amor humano um ponto de referência seguro, que a pessoa consagrada encontra na contemplação do amor trinitário, que nos foi revelado em Cristo. Precisamente porque imersa neste mistério, ela sente-se capaz de um amor radical e universal, que lhe dá a força para o domínio de si e a disciplina necessária para não cair na escravidão dos sentidos e dos instintos. A castidade consagrada apresenta-se assim como experiência de alegria e de liberdade. Iluminada pela fé no Senhor ressuscitado e pela esperança dos novos céus e da nova terra (cf. Ap 21,1), ela oferece também preciosos estímulos para a educação da castidade obrigatória nos outros estados de vida.

O desafio da pobreza

89. Outra provocação vem, hoje, de um materialismo ávido de riqueza, sem qualquer atenção pelas exigências e sofrimentos dos mais débeis, nem consideração pelo próprio equilíbrio dos recursos naturais. A resposta da vida consagrada é dada pela profissão da pobreza evangélica, vivida sob diversas formas e acompanhada muitas vezes por um empenhamento activo na promoção da solidariedade e da caridade.

Quantos Institutos se dedicam à educação, à instrução e à formação profissional, habilitando jovens e menos jovens a tornarem-se protagonistas do seu futuro! Quantas pessoas consagradas gastam todas as suas energias em favor dos últimos da terra! Quantas delas se dedicam à formação de futuros educadores e responsáveis da vida social, capazes de se empenharem, por sua vez, para eliminar as estruturas opressoras e promover projectos de solidariedade em benefício dos pobres! Elas lutam para debelar a fome e as suas causas, animam as actividades do voluntariado e as organizações humanitárias, sensibilizam organismos públicos e privados para favorecerem uma equitativa distribuição das ajudas internacionais. As nações devem verdadeiramente muito a estes dinâmicos agentes da caridade, que, pela sua incansável generosidade, deram e continuam a dar uma sensível contribuição para a humanização do mundo.

A pobreza evangélica ao serviço dos pobres

90. Na verdade, a pobreza evangélica, ainda antes de ser um serviço em favor dos pobres, é um valor em si mesma , enquanto faz lembrar a primeira das bem-aventuranças na imitação de Cristo pobre.Com efeito, o seu primeiro significado é testemunhar Deus como verdadeira riqueza do coração humano. Mas, por isso mesmo, ela contesta vigorosamente a idolatria do dinheiro, propondo-se como apelo profético lançado a uma sociedade que, em tantos lugares do mundo abastado, se arrisca a perder o sentido da medida e o próprio significado das coisas. Por isso hoje, mais do que noutras épocas, a sua solicitação é escutada com favor inclusive por aqueles que, cientes do carácter limitado dos recursos da terra, pedem o respeito e a salvaguarda da criação, mediante a redução do consumo, a sobriedade, a imposição de um freio obrigatório aos próprios desejos.

Deste modo, às pessoas consagradas é pedido um renovado e vigoroso testemunho evangélico de abnegação e sobriedade, num estilo de vida fraterna inspirada por critérios de simplicidade e de hospitalidade, como exemplo mesmo para quantos permanecem indiferentes perante as necessidades do próximo. Tal testemunho há-de ser naturalmente acompanhado pelo amor preferencial pelos pobres e manifestar-se-á, de modo especial, na partilha das condições de vida dos mais desfavorecidos. Diversas são as comunidades que vivem e operam entre os pobres e marginalizados, abraçam a sua condição e partilham os seus sofrimentos, problemas e perigos.Exímias páginas de história de solidariedade evangélica e de dedicação heróica foram escritas por pessoas consagradas, nestes anos de profundas mudanças e de grandes injustiças, de esperanças e desilusões, de importantes conquistas mas também de amargas derrotas. E páginas igualmente significativas foram e continuam a ser ainda escritas por muitas outras pessoas consagradas, que vivem em plenitude a sua vida «escondida com Cristo em Deus» (Col 3,3) pela salvação do mundo, sob o lema da gratuidade, do investimento da própria vida em causas pouco reconhecidas e menos ainda aplaudidas. Através destas formas diversas e complementares, a vida consagrada participa da pobreza extrema abraçada pelo Senhor e vive a sua função específica no mistério salvífico da sua encarnação e da sua morte redentora.

O desafio da liberdade na obediência

91. A terceira provocação provém daquelas concepções da liberdade que subtraem esta fundamental prerrogativa humana à sua relação constitutiva com a verdade e com a norma moral.Na realidade, a cultura da liberdade é um valor autêntico, ligado intimamente ao respeito da pessoa humana. Mas quem não vê as consequências monstruosas de injustiça e mesmo de violência, geradas na vida dos indivíduos e dos povos pelo uso deturpado da liberdade?

Uma resposta eficaz a tal situação é a obediência que caracteriza a vida consagrada. Esta apresenta de modo particularmente vivo a obediência de Cristo ao Pai e, partindo exactamente do seu mistério, testemunha que não há contradição entre obediência e liberdade . Com efeito, o comportamento do Filho desvenda o mistério da liberdade humana, como um caminho de obediência à vontade do Pai, e o mistério da obediência, como um caminho de progressiva conquista da verdadeira liberdade. É precisamente este mistério que a pessoa consagrada quer exprimir com este voto concreto. Com ele, deseja dar testemunho da sua consciência de um relacionamento de filiação, em virtude do qual assume a vontade paterna como alimento diário (cf. Jo 4,34), como sua rocha, alegria, escudo e baluarte (cf. Sal 1817,3). Demonstra assim que cresce na verdade plena de si mesma, quando permanece ligada à fonte da sua existência, e deste modo oferece uma mensagem repleta de consolação: «Gozam de grande paz os que amam a vossa lei, para eles não existe perturbação» (Sal 119118,165).

Cumprir juntos a vontade do Pai

92. Este testemunho das pessoas consagradas assume, na vida religiosa, um significado particular também por causa da dimensão comunitária que a caracteriza. A vida fraterna é o lugar privilegiado para discernir e acolher a vontade de Deus e caminhar juntos em união de mente e coração. A obediência, vivificada pela caridade, unifica os membros de um Instituto no mesmo testemunho e na mesma missão, embora na diversidade dos dons e no respeito da individualidade própria de cada um. Na fraternidade animada pelo Espírito Santo, cada qual estabelece com o outro um diálogo precioso para descobrir a vontade do Pai, e todos reconhecem em quem preside a expressão da paternidade divina e o exercício da autoridade recebida de Deus ao serviço do discernimento e da comunhão.De modo particular, a vida de comunidade é o sinal, para a Igreja e para a sociedade, daquele laço que provém de um chamamento igual e da vontade comum de lhe obedecer, para além de qualquer diversidade de raça e de origem, de língua e de cultura. Contra o espírito de discórdia e de divisão, a autoridade e a obediência resplandecem como um sinal daquela única paternidade que vem de Deus, da fraternidade nascida do Espírito, da liberdade interior de quem se fia de Deus, não obstante os limites humanos daqueles que O representam. Através desta obediência, por alguns assumida como regra de vida, é experimentada e anunciada, em benefício de todos, a bem-aventurança prometida por Jesus a quantos «escutam a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11,28). Além disso, quem obedece tem a garantia de estar verdadeiramente em missão no seguimento do Senhor, e não ao sabor dos desejos pessoais ou das próprias aspirações. E, assim, é possível considerar-se guiado pelo Espírito do Senhor e sustentado, mesmo no meio de grandes dificuldades, pela sua mão segura (cf. Act 20,22s).

Um compromisso decidido de vida espiritual

93. Uma das preocupações mais vezes manifestada no Sínodo foi a de uma vida consagrada que se alimente nas fontes de uma espiritualidade sólida e profunda. Trata-se de uma exigência prioritária, inscrita na própria essência da vida consagrada, uma vez que, como qualquer outro baptizado, antes por motivos ainda mais prementes, quem professa os conselhos evangélicos é obrigado a tender com todas as suas forças à perfeição da caridade.Este é um compromisso intensamente lembrado pelos inumeráveis exemplos de santos fundadores e fundadoras e de tantas pessoas consagradas, que testemunharam a sua fidelidade a Cristo até ao martírio.

Tender à santidade: eis em síntese o programa de cada vida consagrada, na perspectiva nomeadamente da sua renovação às portas do terceiro milénio. O ponto de partida do programa está no deixar tudo por Cristo (cf. Mt 4,18-22; 19,21.27; Lc 5,1), preferindo a sua Pessoa a tudo mais, para poder participar plenamente no mistério pascal.Bem o compreendera S. Paulo que exclamava: «Tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus (...). Assim poderei conhecê-Lo, a Ele, e conhecer o poder da sua ressurreição» (Fil 3,8.10). É a estrada indicada desde o início pelos Apóstolos, como recorda a tradição cristã tanto do Oriente como do Ocidente: «Aqueles que actualmente seguem Jesus, abandonando tudo por Ele, evocam os Apóstolos que, respondendo ao seu convite, renunciaram a tudo o resto. Por isso, tradicionalmente é costume designá-la como apostolica vivendi forma».A tradição pôs também em evidência, na vida consagrada, a dimensão da sua peculiar aliança com Deus, melhor, da aliança esponsal com Cristo, de que foi mestre S. Paulo, com o seu exemplo (cf. 1 Cor 7,7) e com o seu ensinamento, proposto sob a guia do Espírito (cf. 1 Cor 7,40). Podemos dizer que a vida espiritual, considerada como vida em Cristo, vida segundo o Espírito, se apresenta como um itinerário de crescente fidelidade, onde a pessoa consagrada é guiada pelo Espírito e por Ele configurada com Cristo, em plena comunhão de amor e de serviço na Igreja.Todos estes elementos, inseridos nas várias formas de vida consagrada, geram uma espiritualidade peculiar, isto é, um projecto concreto de relacionamento com Deus e com o meio circundante, caracterizado por modulações espirituais particulares e opções de acção que colocam em evidência e repropõem ora um aspecto ora outro do único mistério de Cristo. Quando a Igreja reconhece uma forma de vida consagrada ou um Instituto, garante que, no seu carisma espiritual e apostólico, se encontram todos os requisitos objectivos para alcançar a perfeição evangélica pessoal e comunitária.Portanto, a vida espiritual deve ocupar o primeiro lugar no programa das Famílias de vida consagrada, de tal modo que cada Instituto e cada comunidade se apresentem como escolas de verdadeira espiritualidade evangélica. Desta opção prioritária, desenvolvida no compromisso pessoal e comunitário, depende a fecundidade apostólica, a generosidade no amor pelos pobres, a própria atracção vocacional sobre as novas gerações. É precisamente a qualidade espiritual da vida consagrada que pode interpelar as pessoas do nosso tempo, também elas sequiosas de valores infinitos, transformando-se assim num testemunho fascinante.

À escuta da Palavra de Deus

94. A Palavra de Deus é a primeira fonte de toda a vida espiritual cristã. Ela sustenta um relacionamento pessoal com o Deus vivo e com a sua vontade salvífica e santificadora. Por isso é que a lectio divina, desde o nascimento dos Institutos de vida consagrada, de modo particular no monaquismo, foi tida na mais alta consideração. Por meio dela, a Palavra de Deus é transferida para a vida, projectando sobre esta a luz da sapiência, que é dom do Espírito. Embora toda a Sagrada Escritura seja «útil para ensinar» (2 Tm 3,16) e «fonte pura e perene da vida espiritual»,merecem particular veneração os escritos do Novo Testamento, sobretudo os Evangelhos, que são «o coração de todas as Escrituras».Por isso, será de grande proveito para as pessoas consagradas fazerem objecto de assídua meditação os textos evangélicos e os outros escritos neo-testamentários, que ilustram as palavras e os exemplos de Cristo e da Virgem Maria, e a apostolica vivendi forma. A eles se referiram constantemente os fundadores e fundadoras, no acolhimento da vocação e no discernimento do carisma e da missão do próprio Instituto.

De grande valor é a meditação comunitária da Bíblia. Realizada na medida das possibilidades e circunstâncias da vida de comunidade, ela leva à partilha feliz das riquezas encontradas na Palavra de Deus, mercê das quais irmãos e irmãs crescem juntos e se ajudam a progredir na vida espiritual. Convém mesmo que tal prática seja proposta aos outros membros do Povo de Deus, sacerdotes e leigos, promovendo, nos moldes adequados ao próprio carisma, escolas de oração, de espiritualidade e de leitura orante da Escritura, na qual Deus «fala aos homens como amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15) e convive com eles (cf. Bar 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele».omo ensina a tradição espiritual, da meditação da Palavra de Deus e, em particular, dos mistérios de Cristo nasce a intensidade da contemplação e o ardor da acção apostólica. Quer na vida religiosa contemplativa quer na apostólica, sempre foram homens e mulheres de oração que realizaram, como intérpretes e executores da vontade de Deus, grandes obras. Da sua convivência com a Palavra de Deus, obtiveram a luz necessária para aquele discernimento individual e comunitário que os ajudou a procurar, nos sinais dos tempos, os caminhos do Senhor. Adquiriram assim uma espécie de instinto sobrenatural, que lhes permitiu não se conformarem com a mentalidade deste mundo, mas renovarem a própria mente para poder discernir a vontade de Deus, aquilo que é bom, o que Lhe é agradável e perfeito (cf. Rm 12,2).

Em comunhão com Cristo

95. Meio fundamental para alimentar eficazmente a comunhão com o Senhor é, sem dúvida, a liturgia sagrada , de modo especial a Celebração Eucarística e a Liturgia das Horas.

Em primeiro lugar, a Eucaristia, onde «está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo».Coração da vida eclesial, a Eucaristia é-o também da vida consagrada. A pessoa chamada, pela profissão dos conselhos evangélicos, a escolher Cristo como sentido único da sua existência, como poderia não desejar instaurar com Ele uma comunhão cada vez mais profunda por meio da participação diária no Sacramento que O torna presente, no sacrifício que actualiza o seu dom de amor do Gólgota, no banquete que alimenta e sustenta o Povo de Deus peregrino? A Eucaristia, por sua natureza, está no centro da vida consagrada, pessoal e comunitária. É viático quotidiano e fonte da espiritualidade do indivíduo e do Instituto. Nela, cada consagrado é chamado a viver o mistério pascal de Cristo, unindo-se com Ele na oferta da própria vida ao Pai, por meio do Espírito. A adoração assídua e prolongada de Cristo presente na Eucaristia permite, de algum modo, reviver a experiência de Pedro na Transfiguração: «É bom estarmos aqui!». E na celebração do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor se consolida e incrementa a unidade e a caridade daqueles que consagraram a Deus a sua existência.A par da Eucaristia e em íntima relação com ela, a Liturgia das Horas, celebrada comunitária ou pessoalmente segundo a índole de cada Instituto, em comunhão com a oração da Igreja, exprime a vocação ao louvor e à intercessão, que é própria das pessoas consagradas.Também tem uma relação profunda com a Eucaristia o esforço de conversão contínua e de necessária purificação que as pessoas consagradas realizam no sacramento da Reconciliação. Por meio do encontro frequente com a misericórdia de Deus, elas purificam e renovam o seu coração e, através do humilde reconhecimento dos pecados, tornam transparente a própria ligação com Ele; a experiência feliz do perdão sacramental, no caminho partilhado com os irmãos e as irmãs, torna o coração dócil e estimula o empenho por uma crescente fidelidade.Serve de grande apoio para progredir no caminho evangélico, especialmente no período de formação e em certos momentos da vida, o recurso confiante e humilde à direcção espiritual, graças à qual a pessoa é ajudada a responder às moções do Espírito com generosidade e a orientar-se decididamente para a santidade.Exorto, enfim, todas as pessoas consagradas, segundo as próprias tradições, a renovarem diariamente a sua união espiritual com a Virgem Maria, repassando com Ela os mistérios do Filho, particularmente pela oração do Terço.

3. Alguns Areópagos da Missão

Presença no mundo da educação

96. A Igreja sempre sentiu que a educação é um elemento essencial da sua missão . O seu Mestre interior é o Espírito Santo, que penetra as profundidades mais reconditas do coração de cada homem e conhece o dinamismo secreto da história. Toda a Igreja é animada pelo Espírito e com Ele desempenha a sua acção educativa. No âmbito da Igreja, todavia, uma tarefa específica neste campo compete às pessoas consagradas, que são chamadas a introduzir no horizonte educacional o testemunho radical dos bens do Reino, propostos a todo o homem enquanto aguarda o encontro definitivo com o Senhor da história. Pela sua especial consagração, pela peculiar experiência dos dons do Espírito, pela escuta assídua da Palavra e o exercício do discernimento, pelo rico património de tradições educativas acumulado ao longo da história pelo próprio Instituto, pelo conhecimento profundo da verdade espiritual (cf. Ef 1,17), as pessoas consagradas são capazes de desenvolver uma acção educativa particularmente eficaz, oferecendo uma contribuição específica para as iniciativas dos outros educadores e educadoras.

Dotadas deste carisma, elas podem dar vida a ambientes educativos permeados pelo espírito evangélico de liberdade e de caridade, onde os jovens sejam ajudados a crescer em humanidade, sob a guia do Espírito.Deste modo, a comunidade educativa torna-se experiência de comunhão e lugar de graça, onde o projecto pedagógico contribui para unir, numa síntese harmoniosa, o divino e o humano, o Evangelho e a cultura, a fé e a vida.A história da Igreja, desde a antiguidade até aos nossos dias, é rica de exemplos admiráveis de pessoas consagradas que viveram e vivem a tensão para a santidade através do empenho pedagógico, propondo contemporaneamente a santidade como meta educativa. De facto, muitas delas, educando, realizaram a perfeição da caridade. Este é um dos dons mais preciosos que as pessoas consagradas podem oferecer também hoje à juventude, fazendo-a objecto de um serviço pedagógico rico de amor, segundo a sábia advertência de S. João Bosco: «Não basta aos jovens serem amados, precisam também de reconhecer que o são».

Necessidade de renovado empenho no campo educativo

97. Os consagrados e consagradas manifestem, com delicado respeito e também com coragem missionária, que a fé em Jesus Cristo ilumina todo o campo da educação, não prejudicando mas antes corroborando e elevando os próprios valores humanos. Deste modo, tornam-se testemunhas e instrumentos do poder da Encarnação e da força do Espírito. Esta sua tarefa é uma das expressões mais significativas daquela maternidade que a Igreja, à imagem de Maria, realiza para com todos os seus filhos.Por isso, é que o Sínodo exortou instantemente as pessoas consagradas a retomarem com novo empenho, nos lugares onde for possível, a missão da educação com escolas de todo o tipo e grau, Universidades e Institutos Superiores.Assumindo esta indicação sinodal, convido calorosamente os membros dos Institutos dedicados à educação a serem fiéis ao seu carisma originário e às suas tradições, cientes de que o amor preferencial pelos pobres encontra uma das suas aplicações particulares na escolha dos meios mais aptos para libertar os homens daquela grave forma de miséria que é a falta de formação cultural e religiosa.Dada a importância que as Universidades e as Faculdades católicas e eclesiásticas assumem no campo da educação e da evangelização, os Institutos que possuem a sua direcção estejam cientes da sua responsabilidade, fazendo com que nelas, ao mesmo tempo que se dialoga activamente com o contexto cultural actual, se conserve a peculiar índole católica, na plena fidelidade ao Magistério da Igreja. Além disso, conforme as circunstâncias, os membros destes Institutos e Sociedades mostrem-se prontos a entrar nas estruturas educativas estatais. A este tipo de intervenção, são particularmente chamados, devido à sua específica vocação, os membros dos Institutos seculares.

Evangelizar a cultura

98. Os Institutos de vida consagrada tiveram sempre uma grande influência na formação e na transmissão da cultura. Aconteceu isto na Idade Média, quando os mosteiros se tornaram lugares de acesso às riquezas culturais do passado e de elaboração de uma nova cultura humanista e cristã. Isso verificou-se todas as vezes que a luz do Evangelho alcançou novos povos. Muitas pessoas consagradas promoveram a cultura, e frequentemente examinaram e defenderam as culturas autóctones. A necessidade de contribuir para a promoção da cultura, para o diálogo entre a cultura e a fé, é hoje sentida, na Igreja, de modo absolutamente particular.Os consagrados não podem deixar de se sentirem interpelados por esta urgência. Também eles são chamados, no anúncio da Palavra de Deus, a individuar métodos mais apropriados às exigências dos diversos grupos humanos e dos vários âmbitos profissionais, para que a luz de Cristo penetre em cada sector humano e o fermento da salvação transforme a partir de dentro a vida social, favorecendo a consolidação de uma cultura permeada pelos valores evangélicos.Também através de tal empenho, no limiar do terceiro milénio cristão, a vida consagrada poderá renovar a sua conformidade com os desígnios de Deus, que vem ao encontro de todas as pessoas que andam, consciente ou inconscientemente, por assim dizer, tacteando à procura da Verdade e da Vida (cf. Act 17,27).Mas para além do serviço prestado aos outros, também no seio da vida consagrada há necessidade de um renovado amor pelo empenho cultural , de dedicação ao estudo como meio para a formação integral e como percurso ascético, extraordinariamente actual, frente à diversidade das culturas. A diminuição do empenho pelo estudo pode ter pesadas consequências mesmo no apostolado, gerando um sentido de marginalização e de inferioridade ou favorecendo superficialidade e imprudência nas iniciativas.Na diversidade dos carismas e das reais possibilidades dos diversos Institutos, o empenho do estudo não se pode reduzir à formação inicial ou à consecução de títulos académicos e de habilitações profissionais. Mas é sobretudo expressão do desejo insaciável de conhecer mais profundamente a Deus, abismo de luz e fonte de toda a verdade humana. Por isso, tal empenho não isola a pessoa consagrada num intelectualismo abstracto, nem a fecha nas espirais de um narcisismo sufocante; pelo contrário, é incitamento ao diálogo e à partilha, é formação da capacidade de discernimento, é estímulo à contemplação e à oração, na busca incessante de Deus e da sua acção na complexa realidade do mundo contemporâneo.A pessoa consagrada, deixando-se transformar pelo Espírito Santo, torna-se capaz de ampliar os horizontes dos limitados desejos humanos e, ao mesmo tempo, captar as dimensões profundas de cada indivíduo e sua história por detrás dos aspectos mais vistosos mas tantas vezes marginais. Inumeráveis são hoje os campos donde emergem desafios nas várias culturas: âmbitos novos ou já tradicionalmente palmilhados pela vida consagrada, com os quais é urgente manter fecundas relações, numa atitude de prudente sentido crítico mas também de atenção e confiança para com aquele que enfrenta as dificuldades típicas do trabalho intelectual, especialmente quando, em presença de problemas inéditos do nosso tempo, é preciso tentar análises e sínteses novas.Uma evangelização séria e válida dos novos âmbitos, onde se elabora e transmite a cultura, não pode ser operada sem uma activa colaboração com os leigos lá empenhados.

Presença no mundo da comunicação social

99. Assim como no passado as pessoas consagradas souberam, com os meios mais diversos, pôr-se ao serviço da evangelização, enfrentando genialmente as dificuldades, também hoje são interpeladas novamente pela exigência de testemunhar o Evangelho, através dos meios de comunicação social. Estes meios alcançaram uma capacidade de irradiação mundial, graças a tecnologias potentíssimas capazes de atingir qualquer ângulo da terra. As pessoas consagradas, sobretudo quando operam neste campo por carisma institucional, devem adquirir um conhecimento sério da linguagem própria destes meios, para falar eficazmente de Cristo ao homem de hoje, interpretando «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias»dele, e contribuir assim para a edificação de uma sociedade onde todos se sintam irmãos e irmãs a caminho de Deus.

Impõe-se, todavia, estar vigilantes contra o uso deformado destes meios, devido ao poder extraordinário de persuasão de que dispõem. Não se devem ignorar os problemas que daí podem derivar para a própria vida consagrada, mas sim enfrentá-los com um lúcido discernimento.A resposta da Igreja é sobretudo de ordem educativa: visa promover um comportamento de justa compreensão dos dinamismos subjacentes, uma cuidadosa avaliação ética dos programas, e ainda a adopção de hábitos sadios no seu desfrutamento.Neste âmbito educativo tendente a formar receptores sensatos e comunicadores especializados, as pessoas consagradas são chamadas a oferecer o seu particular testemunho sobre a relatividade de todas as realidades visíveis, ajudando os irmãos a valorizá-las segundo o desígnio de Deus, mas também a libertarem-se da dependência obsessiva da figura deste mundo que passa (cf. 1 Cor 7,31).Todo o esforço neste novo e importante campo apostólico há-de ser encorajado, para que o Evangelho de Cristo ressoe também através destes meios modernos. Os vários Institutos estejam prontos a colaborar, com a contribuição de forças — meios e pessoas —, para realizar projectos comuns nos vários sectores da comunicação social. Além disso, quando surgirem oportunidades pastorais, as pessoas consagradas, especialmente os membros dos Institutos seculares, prestem de boa vontade o seu serviço para a formação religiosa dos responsáveis e operadores da comunicação social, pública ou privada, a fim de que, por um lado, se evitem os danos provocados pelo uso viciado de tais meios e, por outro, seja promovida uma qualidade superior das transmissões, com mensagens respeitadoras da lei moral e ricas de valores humanos e cristãos.

4. Empenhados no Diálogo com Todos

Ao serviço da unidade dos cristãos

100. A oração dirigida por Cristo ao Pai, antes da Paixão, para que os seus discípulos permanecessem na unidade (cf. Jo 17,21-23), perdura na oração e na acção da Igreja. Como poderiam deixar de se sentir implicados nela os chamados à vida consagrada? A ferida da desunião, ainda existente entre os crentes em Cristo, e a urgência de rezar e trabalhar para promover a unidade de todos os cristãos foram particularmente sentidas no Sínodo. A sensibilidade ecuménica dos consagrados e consagradas é reavivada também pela certeza de que noutras Igrejas e Comunidades eclesiais se conserva e floresce o monaquismo, como no caso das Igrejas orientais, ou se renova a profissão dos conselhos evangélicos, como na Comunhão anglicana e nas Comunidades da Reforma.

O Sínodo pôs em evidência o laço profundo da vida consagrada com a causa do ecumenismo e a urgência de um testemunho mais intenso neste campo. Na verdade, se a alma do ecumenismo é a oração e a conversão,não há dúvida que os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica têm uma particular obrigação de cultivar este empenho. Por isso, é urgente abrir, na vida das pessoas consagradas, espaços maiores à oração ecuménica e a um testemunho autenticamente evangélico, para que se possam abater, com a força do Espírito Santo, os muros das divisões e dos preconceitos entre os cristãos.

Formas de diálogo ecuménico

101. A partilha da lectio divina na busca da verdade, a participação na oração comum, na qual o Senhor garante a sua presença (cf. Mt 18,20), o diálogo da amizade e da caridade que faz sentir como é agradável viverem unidos os irmãos (cf. Sal 133132), a hospitalidade cordial praticada para com os irmãos e irmãs das diversas confissões cristãs, o conhecimento recíproco e a permuta dos dons, a colaboração em iniciativas comuns de serviço e de testemunho, são diversas formas de diálogo ecuménico, expressões agradáveis ao Pai comum e sinais da vontade de caminhar juntos para a unidade perfeita, pela senda da verdade e do amor.Igualmente o conhecimento da história, doutrina, liturgia, actividade caritativa e apostólica dos outros cristãos, não deixará de ser útil para uma acção ecuménica cada vez mais incisiva.Quero encorajar aqueles Institutos que, por índole original ou por vocação sucessiva, se dedicam à promoção da unidade dos cristãos e, para a consecução da mesma, cultivam iniciativas de estudo e de acção concreta. Na realidade, nenhum Instituto de vida consagrada se deve sentir dispensado de trabalhar por esta causa. Dirijo ainda o meu pensamento às Igrejas orientais católicas, almejando que elas possam, nomeadamente através do monaquismo masculino e feminino, cuja graça do florescimento há-de ser implorada constantemente, colaborar para a unidade com as Igrejas ortodoxas, mercê do diálogo da caridade e da partilha da espiritualidade comum, património da Igreja indivisa do primeiro milénio.Confio de modo particular o ecumenismo espiritual da oração, da conversão do coração, e da caridade aos mosteiros de vida contemplativa. Com esta finalidade, encorajo a sua presença nos lugares onde vivem comunidades cristãs de várias confissões, a fim de que a sua dedicação total à «única coisa necessária» (cf. Lc 10,42), ao culto de Deus e à intercessão pela salvação do mundo, juntamente com o seu testemunho de vida evangélica, segundo os próprios carismas, seja para todos um estímulo a viverem, à imagem da Trindade, naquela unidade que Jesus quis e pediu ao Pai para todos os seus discípulos.

O diálogo inter-religioso

102. Uma vez que «o diálogo inter-religioso faz parte da missão evangelizadora da Igreja»,os Institutos de vida consagrada não podem eximir-se de se empenharem também neste campo, cada qual segundo o próprio carisma e seguindo as indicações da autoridade eclesiástica. A primeira forma de evangelização junto dos irmãos e irmãs de outra religião há-de ser o próprio testemunho de uma vida pobre, humilde e casta, permeada de amor fraterno por todos. Ao mesmo tempo, a liberdade de espírito que é própria da vida consagrada favorecerá aquele «diálogo da vida»,no qual se realiza um modelo fundamental de missão e anúncio do Evangelho de Cristo. Para propiciar o conhecimento mútuo, o respeito e a caridade recíproca, os Institutos religiosos poderão ainda cultivar oportunas formas de diálogo, caracterizadas por amizade cordial e recíproca sinceridade, com os ambientes monásticos de outras religiões.

Outro âmbito de colaboração com homens e mulheres de tradição religiosa diversa é a solicitude pela vida humana, que se estende da compaixão pelo sofrimento físico e espiritual até ao compromisso pela justiça, a paz e a salvaguarda da criação. Nestes sectores, hão-de ser sobretudo os Institutos de vida activa a procurarem o consenso com os membros de outras religiões, naquele «diálogo das obras»,que prepara o caminho para uma partilha mais profunda.Um campo especial de operoso encontro com pessoas de outras tradições religiosas é a procura e promoção da dignidade da mulher. Na perspectiva da igualdade e da recta reciprocidade entre o homem e a mulher, um precioso serviço pode ser prestado principalmente pelas mulheres consagradas.stes e outros compromissos das pessoas consagradas ao serviço do diálogo inter-religioso exigem uma preparação adequada na formação inicial e na formação permanente, como também no estudo e na pesquisa,uma vez que, neste sector não fácil, é preciso um conhecimento profundo do cristianismo e das outras religiões, acompanhado de fé sólida e de maturidade espiritual e humana.

Uma resposta de espiritualidade à busca do sagrado e à nostalgia de Deus

103. Aqueles que abraçam a vida consagrada, homens e mulheres, colocam-se, pela natureza mesma da sua opção, como interlocutores privilegiados daquela procura de Deus que desde sempre inquieta o coração do homem e o conduz a múltiplas formas de ascese e de espiritualidade. Hoje, em muitas regiões, uma tal procura emerge insistente como resposta a culturas que tendem claramente a marginalizar, se não mesmo a negar, a dimensão religiosa da existência.

As pessoas consagradas, vivendo com coerência e em plenitude os compromissos livremente assumidos, podem oferecer uma resposta aos anseios dos seus contemporâneos, que por eles são descartados com soluções a maior parte das vezes ilusórias e frequentemente negadoras da encarnação salvadora de Cristo (cf. 1 Jo 4,2-3), como as que são propostas, por exemplo, pelas seitas. Praticando uma ascese pessoal e comunitária que purifica e transfigura toda a sua existência, as pessoas consagradas testemunham, contra a tentação do egocentrismo e da sensualidade, as características da busca autêntica de Deus, e chamam a atenção para não a confundir com uma subtil busca de si próprios ou com a fuga para a gnose. Cada pessoa consagrada assume a obrigação de cultivar o homem interior, que não se alheia da história nem se fecha sobre si mesmo. Vivendo na escuta obediente da Palavra, de que a Igreja é guardiã e intérprete, ela aponta Cristo sumamente amado e o Mistério Trinitário como o objecto do anseio profundo do coração humano e a meta de todo o itinerário religioso sinceramente aberto à transcendência.Por isso, as pessoas consagradas têm o dever de oferecer generosamente acolhimento e acompanhamento espiritual a quantos, movidos pela sede de Deus e desejosos de viverem as exigências profundas da sua fé, se lhes dirigem.