»» Documentos da Igreja

Exortação Apostólica Pós-Sinodal
VITA CONSECRATA

I. CONFESSIO TRINITATIS: NAS FONTES CRISTOLÓGICO-TRINITÁRIAS DA VIDA CONSAGRADA

O ícone de Cristo transfigurado

14. O fundamento evangélico da vida consagrada há-de ser procurado naquela relação especial que Jesus, durante a sua existência terrena, estabeleceu com alguns dos seus discípulos, convidando-os não só a acolherem o Reino de Deus na sua vida, mas também a colocarem a própria existência ao serviço desta causa, deixando tudo e imitando mais de perto a sua forma de vida.

Esta existência «cristiforme», proposta a tantos baptizados ao longo da história, só é possível com base numa vocação especial e por um dom peculiar do Espírito. De facto, numa tal existência, a consagração baptismal é levada a uma resposta radical no seguimento de Cristo pela assunção dos conselhos evangélicos, sendo o vínculo sagrado da castidade pelo Reino dos Céus o primeiro e mais essencial deles.Assim, este especial «seguimento de Cristo», em cuja origem está sempre a iniciativa do Pai, reveste uma conotação essencialmente cristológica e pneumatológica, exprimindo de forma muito viva o carácter trinitário da vida cristã, da qual antecipa de algum modo a realização escatológica, para onde tende a Igreja inteira.o Evangelho, são muitas as palavras e gestos de Cristo, que iluminam o sentido desta vocação especial. No entanto, para se abarcar numa visão de conjunto os seus traços essenciais, revela-se particularmente útil fixar o olhar no rosto resplandecente de Cristo, no mistério da Transfiguração. A este «ícone» faz referência toda a tradição espiritual antiga, quando relaciona a vida contemplativa com a oração de Jesus «no monte».ab ipso Domino familiarissime celebrata, ab eius discipulis ipso praesente concupita: cuius transfigurationis gloriam cum vidissent qui cum eo in monte sancto erant, continuo Petrus (...) optimum sibi iudicavit in hoc semper esse» (Ad fratres de Monte Dei I,1: PL 184, 310).] Mas de algum modo podem-se espelhar lá também as dimensões «activas» da vida consagrada, visto que a Transfiguração não é só revelação da glória de Cristo, mas também preparação para enfrentar a cruz. Implica um «subir ao monte» e um «descer do monte»: os discípulos que gozaram da intimidade do Mestre, envolvidos durante alguns momentos pelo esplendor da vida trinitária e da comunhão dos santos, como que arrebatados até ao limiar da eternidade, são reconduzidos logo a seguir à realidade quotidiana, onde vêem «apenas Jesus» na humildade da sua natureza humana, e são convidados a regressar ao vale para partilharem com Ele o peso do desígnio de Deus e empreender corajosamente o caminho da cruz.

«Transfigurou-Se diante deles»

15. Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os, em particular, a um alto monte. Transfigurou-Se diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. Nisto, apareceram Moisés e Elias a conversar com Ele.

Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus:«Senhor, é bom [nós] estarmos aqui; se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para Elias».Ainda ele estava a falar, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra, e uma voz dizia da nuvem:«Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu enlevo; escutai-O».Ao ouvirem isto, os discípulos caíram por terra, muito assustados.Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes, dizendo:«Levantai-vos e não tenhais medo».E, erguendo os olhos, apenas viram Jesus e mais ninguém.Enquanto desciam do monte, Jesus ordenou-lhes:«Não conteis a ninguém o que acabastes de ver, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos» ( Mt 17,1-9).O episódio da Transfiguração assinala um momento decisivo no ministério de Jesus. É um evento de revelação que consolida a fé no coração dos discípulos, prepara-os para o drama da Cruz, e antecipa a glória da ressurreição. É um episódio misterioso revivido incessantemente pela Igreja, povo a caminho do encontro escatológico com o seu Senhor. Como os três apóstolos escolhidos, a Igreja contempla o rosto transfigurado de Cristo, para se confirmar na fé e não correr o risco de soçobrar ao ver o seu rosto desfigurado na Cruz. Em ambos os casos, ela é a Esposa na presença do Esposo, que participa do seu mistério, envolvida pela sua luz.Esta luz atinge todos os seus filhos, todos igualmente chamados a seguir Cristo, repondo n'Ele o sentido último da sua própria vida podendo dizer com o Apóstolo: «Para mim, o viver é Cristo» (Fil 1,21). Mas uma singular experiência dessa luz que dimana do Verbo encarnado é feita, sem dúvida, pelos que são chamados à vida consagrada. Na verdade, a profissão dos conselhos evangélicos coloca-os como sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo. Por isso, não podem deixar de encontrar neles um eco particular as palavras extasiadas de Pedro: «Senhor, é bom estarmos aqui!» (Mt 17,4). Estas palavras manifestam a tensão cristocêntrica de toda a vida cristã, mas exprimem também, com particular eloquência, o carácter totalizante que constitui o dinamismo profundo da vocação à vida consagrada: «Como é bom estarmos contigo, dedicarmo-nos a Ti, concentrar a nossa existência exclusivamente em Ti!». De facto, quem recebeu a graça desta especial comunhão de amor com Cristo, sente-se de certa forma arrebatado pelo seu fulgor: Ele é o «mais belo entre os filhos do homem» (Sal 4544,3), o Incomparável.

«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O!»

16. Aos três discípulos extasiados chega o apelo do Pai a que se ponham à escuta de Cristo, depositem n'Ele toda a confiança, façam d'Ele o centro da vida. À luz desta palavra que vem do alto, adquire nova profundidade aquele convite que lhes fizera Jesus, ao início da sua vida pública, quando os chamara a segui-Lo, arrancando-os à sua vida normal e acolhendo-os na sua intimidade. É precisamente desta graça especial de intimidade que brota, na vida consagrada, a possibilidade e a exigência do dom total de si mesmo na profissão dos conselhos evangélicos. Estes, antes e mais do que renúncia, são um acolhimento específico do mistério de Cristo, vivido no seio da Igreja.

De facto, na unidade da vida cristã, as diversas vocações são comparáveis a raios da única luz de Cristo, «que resplandece no rosto da Igreja».Os leigos, em virtude da índole secular da sua vocação, reflectem o mistério do Verbo encarnado sobretudo enquanto Ele é Alfa e Ómega do mundo, fundamento e medida do valor de todas as coisas criadas. Os ministros sagrados, por sua vez, são imagens vivas de Cristo, Cabeça e Pastor, que guia o seu povo neste tempo do «já e ainda não», na expectativa da sua vinda gloriosa. À vida consagrada está confiada a missão de indicar o Filho de Deus feito homem como a meta escatológica para onde tudo tende , o esplendor perante o qual qualquer outra luz empalidece, a beleza infinita, a única que pode saciar totalmente o coração do homem. É que na vida consagrada não se trata apenas de seguir Cristo de todo o coração, amando-O «mais do que o pai ou a mãe, mais do que o filho ou a filha» (cf. Mt 10,37), como é pedido a todo o discípulo, mas trata-se de viver e exprimir isso mesmo com uma adesão «conformativa» a Cristo da existência inteira, numa tensão totalizante que antecipa, por quanto possível no tempo e aos vários carismas, a perfeição escatológica.Na verdade, pela profissão dos conselhos, o consagrado não só faz de Cristo o sentido da própria vida, mas preocupa-se por reproduzir em si mesmo, na medida do possível, «aquela forma de vida que o Filho de Deus assumiu ao entrar no mundo».Abraçando a virgindade, ele assume o amor virginal de Cristo e confessa-O ao mundo como Filho unigénito, um só com o Pai (cf. Jo 10,30; 14,11); imitando a sua pobreza, confessa-O como Filho que tudo recebe do Pai e no amor tudo Lhe devolve (cf. Jo 17,7.10); aderindo, com o sacrifício da própria liberdade, ao mistério da sua obediência filial, confessa-O infinitamente amado e amante, como Aquele que Se compraz somente na vontade do Pai (cf. Jo 4,34), ao qual está perfeitamente unido e do qual depende em tudo.Com tal identificação «conformativa» ao mistério de Cristo, a vida consagrada realiza a título especial aquela confessio Trinitatis, que caracteriza toda a vida cristã, reconhecendo extasiada a beleza sublime de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e testemunhando com alegria a sua amorosa magnanimidade com todo o ser humano.

1. Em Louvor da Trindade

A Patre ad Patrem: a iniciativa de Deus

17. A contemplação da glória do Senhor Jesus no ícone da Transfiguração revela às pessoas consagradas, antes de mais, o Pai, criador e dador de todo o bem, que atrai a Si (cf. Jo 6,44) uma criatura sua, por um amor de predilecção e em ordem a uma missão especial. «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O!» (Mt 17,5). Correspondendo a este apelo acompanhado por uma atracção interior, a pessoa chamada entrega-se ao amor de Deus, que a quer exclusivamente ao seu serviço, e consagra-se totalmente a Ele e ao seu desígnio de salvação (cf. 1 Cor 7,32-34).Está aqui o sentido da vocação à vida consagrada: uma iniciativa total do Pai (cf. Jo 15,16), que requer daqueles que escolhe uma resposta de dedicação plena e exclusiva.A experiência deste amor gratuito de Deus é tão íntima e forte que a pessoa sente que deve responder com a dedicação incondicional da sua vida, consagrando tudo, presente e futuro, nas suas mãos. Por isso mesmo, como ensina S. Tomás, a identidade da pessoa consagrada pode-se compreender a partir da totalidade da sua oferta, comparável a um autêntico holocausto.

Per Filium: seguindo os passos de Cristo

18. O Filho, caminho que conduz ao Pai (cf. Jo 14,6), chama todos aqueles que o Pai Lhe deu (cf. Jo 17,9) a um seguimento que dá orientação à sua existência. A alguns porém — concretamente às pessoas de vida consagrada —, Cristo pede uma adesão total, que implica o abandono de tudo (cf. Mt 19,27) para viver na intimidade com Elee segui-Lo para onde quer que vá (cf. Ap 14,4).

No olhar de Jesus (cf. Mc 10,21), «imagem do Deus invisível» (Col 1,15), resplendor da glória do Pai (cf. Heb 1,3), constata-se a profundidade de um amor eterno e infinito que atinge as raízes do ser.A pessoa que se deixa seduzir, não pode deixar de abandonar tudo e segui-Lo (cf. Mc 1,16-20; 2,14; 10,21.28). A semelhança de Paulo, considera tudo o resto como «perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus», não hesitando em reputar tudo o mais como «lixo, a fim de ganhar Cristo» (cf. Fil 3,8). A sua aspiração é identificar-se com Ele, assumindo os seus sentimentos e forma de vida. O deixar tudo e seguir o Senhor (cf. Lc 18,28) constitui um programa válido para todas as pessoas chamadas e para todos os tempos.Os conselhos evangélicos, pelos quais Cristo convida alguns a partilharem a sua experiência de pessoa virgem, pobre e obediente, requerem e manifestam, em quem acolhe o convite, o desejo explícito de conformação total com Ele. Vivendo «na obediência, sem nada de seu e na castidade»,os consagrados confessam que Jesus é o Modelo no qual toda a virtude alcança a perfeição. Na verdade, a sua forma de vida casta, pobre e obediente apresenta-se como a maneira mais radical de viver o Evangelho sobre esta terra, um modo — pode-se dizer — divino, porque abraçado por Ele, Homem-Deus, como expressão da sua relação de Filho Unigénito com o Pai e com o Espírito Santo. Este é o motivo por que, na tradição cristã, sempre se falou da objectiva excelência da vida consagrada.Inegável é, ainda, que a prática dos conselhos constitui também uma forma particularmente íntima e fecunda de tomar parte na missão de Cristo seguindo o exemplo de Maria de Nazaré, primeira discípula, que aceitou colocar-se ao serviço do desígnio divino com o dom total de si mesma. Toda a missão inicia com a mesma atitude expressa por Maria, na Anunciação: «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38).

In Spiritu: consagrados pelo Espírito Santo

19. «Uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra» (Mt 17,5). Uma significativa interpretação espiritual da Transfiguração vê nesta nuvem a imagem do Espírito Santo.Como toda a existência cristã, também a vocação à vida consagrada está intimamente relacionada com a obra do Espírito Santo. É Ele que, pelos milénios fora, sempre induz novas pessoas a sentirem atracção por uma opção tão comprometedora. Sob a sua acção, elas revivem, de certo modo, a experiência do profeta Jeremias: «Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me seduzir» (20,7). É o Espírito que suscita o desejo de uma resposta cabal; é Ele que guia o crescimento desse anseio, fazendo amadurecer a resposta positiva e sustentando, depois, a sua fiel realização; é Ele que forma e plasma o espírito dos que são chamados, configurando-os a Cristo casto, pobre e obediente, e impelindo-os a assumirem a sua missão. Deixando-se guiar pelo Espírito num caminho ininterrupto de purificação, tornam-se, dia após dia, pessoas cristiformes, prolongamento na história de uma especial presença do Senhor ressuscitado.Com profunda intuição, os Padres da Igreja qualificaram este caminho espiritual como filocalia, ou seja, amor pela beleza divina, que é irradiação da bondade de Deus. A pessoa que é progressivamente conduzida pelo poder do Espírito Santo até à plena configuração com Cristo, reflecte em si mesma um raio da luz inacessível, e na sua peregrinação terrena caminha até à Fonte inexaurível da luz. Deste modo, a vida consagrada torna-se uma expressão particularmente profunda da Igreja Esposa que, movida pelo Espírito a reproduzir em si mesma os traços do Esposo, aparece na presença d'Ele «gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada» (Ef 5,27).E o Espírito, longe de afastar da história dos homens as pessoas que o Pai chamou, coloca-as ao serviço dos irmãos, segundo as modalidades próprias do seu estado de vida, e encaminha-as para a realização de tarefas específicas, de acordo com as necessidades da Igreja e do mundo, através dos carismas próprios dos vários Institutos. Daí a aparição de múltiplas formas de vida consagrada, através das quais a Igreja é «embelezada com a variedade dos dons dos seus filhos, (...) como esposa adornada para o seu esposo (cf. Ap 21,2)»,e fica enriquecida de todos os meios para cumprir a sua missão no mundo.

Os conselhos evangélicos, dom da Trindade

20. Assim os conselhos evangélicos são, primariamente, um dom da Santíssima Trindade. A vida consagrada é anúncio daquilo que o Pai, pelo Filho no Espírito, realiza com o seu amor, a sua bondade, a sua beleza. De facto, «o estado religioso patenteia (...) a elevação do Reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo maravilhosamente actua na Igreja».A primeira tarefa da vida consagrada é tornar visíveis as maravilhas que Deus realiza na frágil humanidade das pessoas chamadas. Mais do que com as palavras, elas testemunham essas maravilhas com a linguagem eloquente de uma existência transfigurada, capaz de suscitar a admiração do mundo. À admiração dos homens respondem com o anúncio dos prodígios da graça que o Senhor realiza naqueles que ama. Na medida em que a pessoa consagrada se deixa conduzir pelo Espírito até aos cumes da perfeição, pode exclamar: «Contemplo a beleza da vossa graça, vejo seu brilho, irradio sua luz; fico cativado pelo seu inefável esplendor; acabo arrebatado longe de mim, sempre que penso ao meu próprio ser; vejo como era e no que me tornei. Ó maravilha! Presto toda a minha atenção, fico cheio de respeito por mim mesmo, de reverência e de temor como se estivesse diante de Vós mesmo; não sei o que fazer, porque a timidez se apoderou de mim; não sei onde sentar-me, donde me aproximar, onde repousar estes membros que Vos pertencem; em que iniciativa, em que obra empregá-las, estas encantadoras maravilhas divinas».Deste modo, a vida consagrada torna-se um dos rastos concretos que a Trindade deixa na história, para que os homens possam sentir o encanto e a saudade da beleza divina.

Nos conselhos, o reflexo da vida trinitária

21. A relação dos conselhos evangélicos com a Trindade santa e santificadora revela o sentido mais profundo deles. Na verdade, são expressão do amor que o Filho nutre pelo Pai na unidade do Espírito Santo. Praticando-os, a pessoa consagrada vive, com particular intensidade, o carácter trinitário e cristológico que caracteriza toda a vida cristã.

A castidade dos celibatários e das virgens, enquanto manifestação da entrega a Deus com um coração indiviso (cf. 1 Cor 7,32-34), constitui um reflexo do amor infinito que une as três Pessoas divinas na profundidade misteriosa da vida trinitária; amor testemunhado pelo Verbo encarnado até ao dom da própria vida; amor «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo» (Rm 5,5), que incita a uma resposta de amor total a Deus e aos irmãos.A pobreza confessa que Deus é a única verdadeira riqueza do homem. Vivida segundo o exemplo de Cristo que, «sendo rico, Se fez pobre» ( 2 Cor 8,9), torna-se expressão do dom total de Si que as três Pessoas divinas reciprocamente se fazem. É dom que transborda para a criação e se manifesta plenamente na Encarnação do Verbo e na sua morte redentora.A obediência, praticada à imitação de Cristo cujo alimento era fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34), manifesta a graça libertadora de uma dependência filial e não servil, rica de sentido de responsabilidade e animada pela confiança recíproca, que é reflexo, na história, da amorosa correspondência das três Pessoas divinas.Assim, a vida consagrada é chamada a aprofundar continuamente o dom dos conselhos evangélicos com um amor cada vez mais sincero e forte na sua dimensão trinitária: amor a Cristo, que chama à sua intimidade; ao Espírito Santo, que predispõe o espírito para acolher as suas inspirações; ao Pai, origem primeira e fim supremo da vida consagrada.Esta torna-se, assim, confissão e sinal da Trindade, cujo mistério é indicado à Igreja como modelo e fonte de toda a forma de vida cristã.Também a vida fraterna, em virtude da qual as pessoas consagradas se esforçam por viver em Cristo com «um só coração e uma só alma» (Act 4,32), se apresenta como uma eloquente confissão trinitária. Confessa o Pai, que quer fazer de todos os homens uma só família; confessa o Filho encarnado, que congrega os redimidos na unidade, apontando o caminho com o seu exemplo, a sua oração, as suas palavras e, sobretudo, com a sua morte, fonte de reconciliação para os homens divididos e dispersos; confessa o Espírito Santo, como princípio de unidade na Igreja, onde não cessa de suscitar famílias espirituais e comunidades fraternas.

Consagrados, como Cristo, para o Reino de Deus

22. Sob o impulso do Espírito Santo, a vida consagrada «imita mais de perto, e perpetuamente representa na Igreja»a forma de vida que Jesus, supremo consagrado e missionário do Pai para o seu Reino, abraçou e propôs aos discípulos que O seguiam (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,10-11; Jo 15,16). À luz da consagração de Jesus, é possível descobrir na iniciativa do Pai, fonte de toda a santidade, a nascente originária da vida consagrada. Na verdade, Jesus é aquele que «Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder» (Act 10,38), «aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo» (Jo 10,36). Recebendo a consagração do Pai, o Filho consagra-Se por sua vez ao Pai pela humanidade (cf. Jo 17,19): a sua vida de virgindade, obediência e pobreza exprime a adesão filial e plena ao desígnio do Pai (cf. Jo 10,30; 14,11). A sua oblação perfeita confere um sentido de consagração a todos os acontecimentos da sua existência terrena.

Jesus é o obediente por excelência, descido do céu não para fazer a sua vontade, mas a d'Aquele que O enviou (cf. Jo 6,38; Heb 10,5.7). Entrega o seu modo de ser e de agir nas mãos do Pai (cf. Lc 2,49). Por obediência filial, assume a forma de servo: «Despojou-Se a Si mesmo tomando a condição de servo (...), feito obediente até à morte e morte de cruz» (Fil 2,7-8). É também nesta atitude de docilidade ao Pai que Cristo, embora aprovando e defendendo a dignidade e a santidade da vida matrimonial, assume a forma de vida virginal, e revela assim o valor sublime e a misteriosa fecundidade espiritual da virgindade . A sua plena adesão ao desígnio do Pai manifesta-se ainda no desapego dos bens terrenos: «Sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela sua pobreza» (2 Cor 8,9). A profundidade da sua pobreza revela-se na perfeita oblação de tudo o que é seu ao Pai.Verdadeiramente a vida consagrada constitui memória viva da forma de existir e actuar de Jesus, como Verbo encarnado face ao Pai e aos irmãos. Aquela é tradição vivente da vida e da mensagem do Salvador.

2. Da Páscoa ao Cumprimento Definitivo

Do Tabor ao Calvário

23. O acontecimento deslumbrante da Transfiguração prepara um outro, trágico mas não menos glorioso, que é o do Calvário. Pedro, Tiago e João contemplam o Senhor Jesus, acompanhado por Moisés e Elias, com os quais — segundo o evangelista Lucas — Ele fala «da sua partida que iria consumar-se em Jerusalém» (9,31). Assim os olhos dos apóstolos fixam-se em Jesus, que pensa na Cruz (cf. Lc 9,43-45). Nesta, o seu amor virginal pelo Pai e por todos os homens atingirá a máxima expressão; a sua pobreza chegará ao despojamento total; a sua obediência irá até ao dom da vida.

Os discípulos e discípulas são convidados a contemplar Jesus exaltado na Cruz, a partir da qual «o Verbo saído do silêncio»,no seu silêncio e solidão, proclama profeticamente a transcendência absoluta de Deus sobre todos os bens criados, vence na sua carne o nosso pecado, e atrai a Si todo o homem e mulher, dando a cada um a nova vida da ressurreição (cf. Jo 12,32; 19, 34.37). Da contemplação de Cristo crucificado, recebem inspiração todas as vocações; da Cruz, com o dom fundamental do Espírito têm origem todos os dons, e em particular o dom da vida consagrada.Depois de Maria, Mãe de Jesus, recebe este dom o discípulo que Jesus amava, João, a testemunha que se encontrava, com Maria, aos pés da Cruz (cf. Jo 19,26-27). A sua decisão de consagração total é fruto do amor divino que o envolve, sustenta e lhe enche o coração. João, ao lado de Maria, conta-se entre os primeiros dessa longa série de homens e mulheres que, desde o início da Igreja até ao fim, tocados pelo amor de Deus, se sentem chamados a seguir o Cordeiro imolado e redivivo, para onde quer que Ele vá (cf. Ap 14,1-5).

Dimensão pascal da vida consagrada

24. A pessoa consagrada, nas várias formas de vida suscitadas pelo Espírito ao longo da história, experimenta a verdade de Deus-Amor de modo tanto mais imediato e profundo quanto mais se aproxima da Cruz de Cristo. Na verdade, Aquele que, na sua morte, aparece aos olhos humanos desfigurado e sem beleza, a ponto de obrigar os espectadores a desviar o rosto (cf. Is 53,2-3), manifesta plenamente a beleza e a força do amor de Deus, precisamente na Cruz. Assim o contempla S. Agostinho: «Admirável é Deus, o Verbo junto de Deus. [...] É admirável no céu, admirável na terra; admirável no seio, admirável nos braços dos pais, admirável nos milagres, admirável nos suplícios; admirável quando convida à vida, admirável quando não se preocupa com a morte, admirável ao deixar a vida e admirável ao retomá-la; admirável na Cruz, admirável no sepulcro, admirável no céu. Escutai o cântico com a inteligência, e que a fragilidade da carne não afaste os vossos olhos do esplendor da sua beleza».A vida consagrada reflecte este esplendor do amor, porque confessa, com a sua fidelidade ao mistério da Cruz, que crê e vive do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Deste modo, ela contribui para manter viva na Igreja a consciência de que a Cruz é a superabundância do amor de Deus que transborda sobre este mundo, ela é o grande sinal da presença salvífica de Cristo. E isto, especialmente nas dificuldades e nas provações. É o que testemunha, continuamente e com uma coragem digna de profunda admiração, um grande número de pessoas consagradas que vivem em situações difíceis, por vezes mesmo de perseguição e martírio. A sua fidelidade ao único Amor revela-se e aperfeiçoa-se na humildade de uma vida escondida, na aceitação dos sofrimentos para «completar na própria carne o que falta aos sofrimentos de Cristo» (cf. Col 1,24), no sacrifício silencioso, no abandono à vontade santa de Deus, na serena fidelidade mesmo face ao declínio das próprias forças e importância. Da fidelidade a Deus, brota também a dedicação ao próximo, que as pessoas consagradas vivem, não sem sacrifício, na constante intercessão pelas necessidades dos irmãos, no generoso serviço aos pobres e aos enfermos, na partilha das dificuldades alheias, na solícita participação das preocupações e provas da Igreja.

Testemunhas de Cristo no mundo

25. Do mistério pascal, brota também a missionariedade, que é dimensão qualificativa de toda a vida eclesial; mas encontra uma realização específica na vida consagrada. Para não falar já nos carismas próprios daqueles Institutos que se consagram à missão ad gentes ou se empenham em actividades justamente de tipo apostólico, há que afirmar que a missionariedade está inscrita no coração mesmo de toda a forma de vida consagrada. Na medida em que o consagrado vive uma vida dedicada exclusivamente ao Pai (cf. Lc 2,49; Jo 4,34), cativada por Cristo (cf. Jo 15,16; Gal 1,15-16), animada pelo Espírito Santo (cf. Lc 24,49; Act 1,8; 2,4), ele coopera eficazmente para a missão do Senhor Jesus (cf. Jo 20,21), contribuindo de modo particularmente profundo para a renovação do mundo.

O dever missionário das pessoas consagradas tem a ver primeiro com elas próprias, e cumprem-no abrindo o seu coração à acção do Espírito de Cristo. O seu testemunho ajuda a Igreja inteira a lembrar-se de que em primeiro lugar está o serviço gratuito de Deus, tornado possível pela graça de Cristo, comunicada ao crente pelo dom do Espírito. Deste modo, é anunciada ao mundo a paz que desce do Pai, a dedicação que é testemunhada pelo Filho, a alegria que é fruto do Espírito Santo.As pessoas consagradas serão missionárias, antes de mais, aprofundando continuamente a consciência de terem sido chamadas e escolhidas por Deus, para quem devem, por isso mesmo, orientar toda a sua vida e oferecer tudo o que são e possuem, libertando-se dos obstáculos que poderiam retardar a resposta total de amor. Desta forma, poderão tornar-se um verdadeiro sinal de Cristo no mundo. Também o seu estilo de vida deve fazer transparecer o ideal que professam, propondo-se como sinal vivo de Deus e como persuasiva pregação, ainda que muitas vezes silenciosa, do Evangelho.Sempre, mas especialmente na cultura contemporânea muitas vezes tão secularizada e apesar disso sensível à linguagem dos sinais, a Igreja deve-se preocupar por tornar visível a sua presença na vida quotidiana. Uma contribuição significativa neste sentido, ela tem direito de esperá-la das pessoas consagradas, chamadas a prestar, em cada situação, um testemunho concreto da sua pertença a Cristo. Visto que o hábito é sinal de consagração, de pobreza e de pertença a uma determinada família religiosa, unindo-me aos Padres do Sínodo recomendo vivamente aos religiosos e religiosas que usem o seu hábito, adaptado convenientemente às circunstâncias dos tempos e lugares.Onde válidas exigências apostólicas o aconselharem, poderão, em conformidade com as normas do próprio Instituto, usar um vestuário simples mas digno, com um símbolo apropriado, de modo que seja reconhecível a sua consagração.Os Institutos que, já desde a origem ou por disposição das suas constituições, não prevêem um hábito próprio, cuidem de que o vestuário dos seus membros corresponda, em dignidade e simplicidade, à natureza da sua vocação.

Dimensão escatológica da vida consagrada

26. Dado que hoje as preocupações apostólicas se fazem sentir sempre com maior urgência e o empenhamento nas coisas deste mundo corre o risco de ser cada vez mais absorvente, torna-se particularmente oportuno chamar a atenção para a natureza escatológica da vida consagrada.

«Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração» (Mt 6,21): esse tesouro único, que é o Reino, suscita desejo, expectativa, compromisso e testemunho. Na Igreja primitiva, a expectativa da vinda do Senhor era vivida de modo particularmente intenso. A Igreja não cessou de alimentar esta atitude de esperança, ao longo dos séculos: continuou a convidar os fiéis a levantarem os seus olhos para a salvação pronta a revelar-se, «porque a figura deste mundo passa» (1 Cor 7,31; cf. 1 Ped 1,3-6).(__ste horizonte que melhor se compreende a função de sinal escatológico, própria da vida consagrada. De facto, é constante a doutrina que a apresenta como antecipação do Reino futuro. O Concílio Vaticano II reitera este ensinamento, quando afirma que a consagração «preanuncia a ressurreição futura e a glória do Reino celeste».Fá-lo, antes de mais, pela opção virginal, concebida sempre pela tradição como uma antecipação do mundo definitivo, que já desde agora actua e transforma o homem na sua globalidade.As pessoas que dedicaram a sua vida a Cristo, não podem deixar de viver no desejo de O encontrar, para estarem finalmente e para sempre com Ele. Daí a esperança ardente, daí o desejo de «entrarem na Fornalha de amor que nelas arde, e que outra coisa não é que o Espírito Santo»:esperança e desejo amparados pelos dons que o Senhor livremente concede a quantos aspiram às coisas do alto (cf. Col 3,1).Com o olhar fixo nas coisas do Senhor, a pessoa consagrada lembra que «não temos aqui cidade permanente» (Heb 13,14), porque «somos cidadãos do Céu» (Fil 3,20). A única coisa necessária é buscar «o Reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6,33), implorando sem cessar a vinda do Senhor.

Uma esperança ativa: compromisso e vigilância

27. «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22,20). Esta esperança está bem longe de ser passiva: apesar de apontar para o Reino futuro, ela exprime-se em trabalho e missão, para que o Reino se torne presente já desde agora, através da instauração do espírito das bem-aventuranças, capaz de suscitar anseios eficazes de justiça, paz, solidariedade e perdão, mesmo na sociedade humana.

Isto está amplamente demonstrado na história da vida consagrada, que sempre produziu frutos abundantes mesmo em favor da sociedade. Pelos seus carismas, as pessoas consagradas tornam-se um sinal do Espírito em ordem a um futuro novo, iluminado pela fé e pela esperança cristã. A tensão escatológica transforma-se em missão, para que o Reino se afirme de modo crescente, aqui e agora. À súplica «Vem, Senhor Jesus!», une-se a outra invocação: «Venha a nós o teu Reino!» (cf. Mt 6,10).Aquele que espera, vigilante, o cumprimento das promessas de Cristo, é capaz de infundir também esperança nos seus irmãos e irmãs, frequentemente desanimados e pessimistas relativamente ao futuro. A sua esperança está fundada na promessa de Deus, contida na Palavra revelada: a história dos homens caminha para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21,1), onde o Senhor «enxugará as lágrimas dos seus olhos; não haverá mais morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram» (Ap 21,4).A vida consagrada está ao serviço desta irradiação definitiva da glória divina, quando toda a criatura vir a salvação de Deus (cf. Lc 3,6; Is 40,5). O Oriente cristão sublinha esta dimensão, ao considerar os monges como anjos de Deus sobre a terra, que anunciam a renovação do mundo em Cristo. No Ocidente, o monaquismo é celebração feita de memória e vigília: memória das maravilhas realizadas por Deus, vigília do cumprimento definitivo da esperança. A mensagem do monaquismo e da vida contemplativa repete, sem cessar, que o primado de Deus é plenitude de sentido e de alegria para a vida humana, pois o homem está feito para Deus e vive inquieto até encontrar n'Ele a paz.

A Virgem Maria, modelo de consagração e seguimento

28. Maria é aquela que, desde a sua imaculada conceição, reflecte mais perfeitamente a beleza divina. «Toda sois formosa»: com estas palavras, A invoca a Igreja. «A relação com Maria Santíssima, que todo o fiel tem em consequência da sua união com Cristo, resulta ainda mais acentuada na vida das pessoas consagradas.(...) Em todos [os Institutos de vida consagrada], existe a convicção de que a presença de Maria tem uma importância fundamental, quer para a vida espiritual de cada uma das almas consagradas, quer para a consistência, unidade e progresso da inteira comunidade».Maria é, de facto, exemplo sublime de perfeita consagração, pela sua pertença plena e dedicação total a Deus. Escolhida pelo Senhor, que n'Ela quis cumprir o mistério da Encarnação, lembra aos consagrados o primado da iniciativa de Deus. Ao mesmo tempo, dando o seu consentimento à Palavra divina que n'Ela Se fez carne, Maria aparece como modelo de acolhimento da graça por parte da criatura humana.Unida a Cristo, juntamente com José, na vida escondida de Nazaré, presente junto do Filho em momentos cruciais da sua vida pública, a Virgem é mestra de seguimento incondicional e de assíduo serviço. Assim n'Ela, «templo do Espírito Santo»,brilha todo o esplendor da nova criatura. A vida consagrada contempla-A como modelo sublime de consagração ao Pai, de união com o Filho e de docilidade ao Espírito, na certeza de que aderir «ao género de vida virginal e pobre»de Cristo significa assumir também o género de vida de Maria.Mas na Virgem, a pessoa consagrada encontra ainda uma Mãe por um título absolutamente especial. De facto, se a nova maternidade conferida a Maria no Calvário é um dom feito a todos os cristãos, tem um valor específico para quem consagrou plenamente a própria vida a Cristo. «Eis aí a tua Mãe» (Jo 19,27): estas palavras de Jesus, dirigidas ao discípulo «que Ele amava» (Jo 19,26), assumem uma profundidade particular na vida da pessoa consagrada. De facto, esta é chamada, como João, a tomar consigo Maria Santíssima (cf. Jo 19,27), amando-A e imitando-A com a radicalidade própria da sua vocação, e experimentando da parte d'Ela, em contrapartida, uma especial ternura materna. A Virgem comunica-lhe aquele amor que lhe permite oferecer todos os dias a vida por Cristo, cooperando com Ele na salvação do mundo. Por isso, a relação filial com Maria constitui o caminho privilegiado para a fidelidade à vocação recebida e uma ajuda muito eficaz para nela progredir e vivê-la em plenitude.

3. Na Igreja e para a Igreja

«É bom estarmos aqui»: a vida consagrada no mistério da Igreja

29. Na cena da Transfiguração, Pedro fala em nome dos outros apóstolos: «É bom [nós] estarmos aqui» (Mt 17,4). A experiência da glória de Cristo, apesar de lhe inebriar a mente e o coração, não o isola, antes pelo contrário liga-o mais profundamente ao «nós» que sao os discípulos.

Esta dimensão do «nós» leva-nos a considerar o lugar que a vida consagrada ocupa no mistério da Igreja. Nestes anos, a reflexão teológica acerca da natureza da vida consagrada aprofundou as novas perspectivas derivadas da doutrina do Concílio Vaticano II. À sua luz, constatou-se que a profissão dos conselhos evangélicos pertence indiscutivelmente à vida e à santidade da Igreja.Isto significa que a vida consagrada, presente na Igreja desde os primeiros tempos, nunca poderá faltar nela, enquanto seu elemento imprescindível e qualificativo, expressão da sua própria natureza.Isto resulta evidente do facto de a profissão dos conselhos evangélicos estar intimamente ligada com o mistério de Cristo, já que tem a função de tornar de algum modo presente a forma de vida que Ele escolheu, apontando-a como valor absoluto e escatológico. O próprio Jesus, ao chamar algumas pessoas a deixarem tudo para O seguirem, inaugurou este género de vida que, sob a acção do Espírito, se desenvolverá gradualmente, ao longo dos séculos, nas várias formas de vida consagrada. Portanto, a concepção de uma Igreja composta unicamente por ministros sagrados e por leigos não corresponde às intenções do seu divino Fundador, tais como no-las apresentam os Evangelhos e outros escritos neo-testamentários.

A nova e especial consagração

30. Na tradição da Igreja, a profissão religiosa é considerada como um singular e fecundo aprofundamento da consagração baptismal, visto que nela a união íntima com Cristo, já inaugurada no Baptismo, evolui para o dom de uma conformação expressa e realizada mais perfeitamente, através da profissão dos conselhos evangélicos.Todavia esta nova consagração reveste uma sua peculiaridade relativamente à primeira, da qual não é uma consequência necessária.Na verdade, todo aquele que foi regenerado em Cristo é chamado a viver, pela força que lhe vem do dom do Espírito, a castidade própria do seu estado de vida, a obediência a Deus e à Igreja, e um razoável desapego dos bens materiais, porque todos são chamados à santidade, que consiste na perfeição da caridade.Mas o Baptismo, por si mesmo, não comporta o chamamento ao celibato ou à virgindade, a renúncia à posse dos bens, e a obediência a um superior, na forma exigida pelos conselhos evangélicos. Portanto, a profissão destes últimos supõe um dom particular de Deus não concedido a todos, como Jesus mesmo sublinha no caso do celibato voluntário (cf. Mt 19, 10-12). A este chamamento especial corresponde, de resto, um dom específico do Espírito Santo, para que a pessoa consagrada possa responder à sua vocação e missão. Por isso, como testemunham as liturgias do Oriente e do Ocidente no rito da profissão monástica ou religiosa e na consagração das virgens, a Igreja invoca sobre as pessoas escolhidas o dom do Espírito Santo, e associa a sua oblação ao sacrifício de Cristo. profissão dos conselhos evangélicos é um desenvolvimento também da graça do sacramento da Confirmação, mas ultrapassa as exigências normais da consagração crismal em virtude de um dom particular do Espírito, que predispõe para novas possibilidades e novos frutos de santidade e de apostolado, como demonstra a história da vida consagrada.Quanto aos sacerdotes que fazem a profissão dos conselhos evangélicos, a experiência demonstra que o sacramento da Ordem encontra uma fecundidade peculiar em tal consagração, visto que esta requer e favorece a exigência de uma pertença mais íntima ao Senhor. O sacerdote que faz a profissão dos conselhos evangélicos fica particularmente habilitado para reviver em si próprio a plenitude do mistério de Cristo, graças inclusivamente à espiritualidade peculiar do próprio Instituto e à dimensão apostólica do respectivo carisma. No presbítero, com efeito, a vocação ao sacerdócio e à vida consagrada convergem numa unidade profunda e dinâmica.Valor incalculável tem também a contribuição dada à vida da Igreja pelos religiosos sacerdotes, dedicados integralmente à contemplação. Especialmente na Celebração Eucarística, eles cumprem um acto da Igreja e para a Igreja, ao qual unem a oferta de si próprios, em comunhão com Cristo que Se oferece ao Pai pela salvação de todo o mundo.

As relações entre os vários estados de vida do cristão

31. As diversas formas de vida, em que, segundo o desígnio de Cristo Senhor, se articula a vida eclesial, apresentam recíprocas relações, sobre as quais convém deter-se.

Todos os fiéis, em virtude da sua regeneração em Cristo, compartilham a mesma dignidade; todos são chamados à santidade; todos cooperam para a edificação do único Corpo de Cristo, cada qual segundo a própria vocação e o dom recebido do Espírito (cf. Rm 12,3-8).A dignidade igual entre todos os membros da Igreja é obra do Espírito, está fundada no Baptismo e na Confirmação, e é corroborada pela Eucaristia. Mas é também obra do Espírito a multiplicidade de formas. É Ele que faz da Igreja uma comunhão orgânica na sua diversidade de vocações, carismas e ministérios.s vocações à vida laical, ao ministério ordenado e à vida consagrada podem-se considerar paradigmáticas, uma vez que todas as vocações particulares, sob um aspecto ou outro, se inspiram ou conduzem àquelas, assumidas separada ou conjuntamente, segundo a riqueza do dom de Deus. Além disso, elas estão ao serviço umas das outras, em ordem ao crescimento do Corpo de Cristo na história e à sua missão no mundo. Todos, na Igreja, são consagrados no Baptismo e na Confirmação, mas o ministério ordenado e a vida consagrada supõem, cada qual, uma distinta vocação e uma forma específica de consagração, com vista a uma missão peculiar.Para a missão dos leigos — aos quais compete «procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus»—, é fundamento adequado a consagração baptismal e crismal, comum a todos os membros do Povo de Deus. Os ministros ordenados, além dessa consagração fundamental, recebem também a da Ordenação, para continuar no tempo o ministério apostólico. As pessoas consagradas , que abraçam os conselhos evangélicos, recebem uma nova e especial consagração que, apesar de não ser sacramental, as compromete a assumirem — no celibato, na pobreza e na obediência — a forma de vida praticada pessoalmente por Jesus, e por Ele proposta aos discípulos. Embora estas diversas categorias sejam manifestaçao do único mistério de Cristo, os leigos têm como característica peculiar, embora não exclusiva, a secularidade, os pastores a «ministerialidade», os consagrados a conformação especial a Cristo virgem, pobre e obediente.

O valor especial da vida consagrada

32. Neste conjunto harmonioso de dons, está confiado a cada um dos estados de vida fundamentais o encargo de exprimir, ao próprio nível, ora uma ora outra das dimensões do único mistério de Cristo. Se, para fazer ressoar o anúncio evangélico no âmbito das realidades temporais, tem uma missão particular a vida laical, no âmbito da comunhão eclesial um ministério insubstituível é desempenhado por aqueles que estão constituídos na Ordem sagrada, de modo especial pelos Bispos. Estes têm a tarefa de guiar o Povo de Deus, mediante o ensinamento da Palavra, a administração dos Sacramentos e o exercício do poder sagrado ao serviço da comunhão eclesial, que é comunhão orgânica e hierarquicamente ordenada.Na manifestação da santidade da Igreja, há que reconhecer uma objectiva primazia à vida consagrada , que reflecte o próprio modo de viver de Cristo. Por isso mesmo, nela se encontra uma manifestação particularmente rica dos valores evangélicos e uma actuação mais completa do objectivo da Igreja que é a santificação da humanidade. A vida consagrada anuncia e de certo modo antecipa o tempo futuro, quando, alcançada a plenitude daquele Reino dos céus que agora está presente apenas em gérmen e no mistério,os filhos da ressurreição não tomarão esposa nem marido, mas serão como anjos de Deus (cf. Mt 22,30).De facto, a primazia da castidade perfeita pelo Reino,justamente considerada a «porta» de toda a vida consagrada,é objecto do ensinamento constante da Igreja. De resto, esta tributa grande estima também à vocação para o matrimónio, que torna os esposos «testemunhas e cooperadores da fecundidade da Igreja, nossa mãe, em sinal e participação daquele amor, com que Cristo amou a sua Esposa e por ela Se entregou».este horizonte comum a toda a vida consagrada, articulam-se caminhos distintos entre si, mas complementares. Os religiosos e religiosas dedicados integralmente à contemplação são, de modo especial, imagem de Cristo em oração sobre o monte.As pessoas consagradas de vida activa manifestam Jesus «anunciando às multidões o Reino de Deus, curando os doentes e feridos, trazendo os pecadores à conversão, abençoando as criancinhas e fazendo bem a todos».Um particular serviço ao advento do Reino de Deus, prestam-no as pessoas consagradas nos Institutos Seculares, que unem, numa síntese específica, o valor da consagração com o da secularidade. Vivendo a sua consagração no século e a partir do século,elas «esforçam-se, à maneira de fermento, por impregnar todas as coisas do espírito do Evangelho para robustecimento e incremento do Corpo de Cristo».Com vista a tal fim, participam na função evangelizadora da Igreja, mediante o testemunho pessoal de vida cristã, o empenho de que as realidades temporais sejam ordenadas segundo Deus, a colaboração no serviço da comunidade eclesial, segundo o estilo de vida secular que lhes é próprio.

Testemunhar o Evangelho das bem-aventuranças

33. Missão peculiar da vida consagrada é manter viva nos baptizados a consciência dos valores fundamentais do Evangelho, graças ao seu «magnífico e privilegiado testemunho de que não se pode transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças».Deste modo, a vida consagrada suscita continuamente, na consciência do Povo de Deus, a exigência de responder com a santidade de vida ao amor de Deus derramado nos corações pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5), reflectindo na conduta a consagração sacramental realizada por acção de Deus no Baptismo, na Confirmação, ou na Ordem. Na verdade, é preciso que da santidade comunicada nos sacramentos se passe à santidade da vida quotidiana. A vida consagrada existe na Igreja precisamente para se pôr ao serviço da consagração da vida de todo o fiel, leigo ou clérigo.

Por outro lado, não se deve esquecer que também os consagrados recebem, do testemunho próprio das outras vocações, uma ajuda para viver integralmente a adesão ao mistério de Cristo e da Igreja, nas suas múltiplas dimensões. Graças a este enriquecimento recíproco, torna-se mais eloquente e eficaz a missão da vida consagrada: mantendo fixo o seu olhar na paz futura, indica como meta aos irmãos e irmãs a Bem-aventurança definitiva junto de Deus.

Imagem viva da Igreja-Esposa

34. Particular relevo tem o significado esponsal da vida consagrada, que reflecte a exigência de a Igreja viver em doação plena e exclusiva para seu Esposo, do qual recebe todo o bem. Nesta dimensão esponsal característica de toda a vida consagrada, é sobretudo a mulher que se reconhece de modo singular em sua própria identidade, de certa forma descobrindo aí a índole especial do seu relacionamento com o Senhor.

A tal propósito, é sugestivo o texto neo-testamentário que apresenta Maria reunida com os Apóstolos, no Cenáculo, aguardando em oração a vinda do Espírito Santo (cf. Act 1,13-14). Pode-se ver aqui uma expressiva imagem da Igreja-Esposa, atenta aos sinais do Esposo e pronta a acolher o seu dom. Na figura de Pedro e demais apóstolos, ressalta sobretudo a dimensão da fecundidade operada pelo ministério eclesial, que se faz instrumento do Espírito para a geração de novos filhos através da proclamação da Palavra, da celebração dos Sacramentos e pela solicitude pastoral. Já em Maria, é particularmente viva a dimensão do acolhimento esponsal com que a Igreja faz frutificar em si mesma a vida divina, através da totalidade do seu amor virginal.A vida consagrada sempre foi identificada prevalentemente com esta parte de Maria, a Virgem Esposa. Deste amor virginal, provém uma particular fecundidade que contribui para o nascimento e crescimento da vida divina nos corações. A pessoa consagrada, seguindo o exemplo de Maria, nova Eva, exprime a sua fecundidade espiritual, tornando-se acolhedora da Palavra, para colaborar na construção da nova humanidade com a sua dedicação incondicional e o seu testemunho vivo. Desta forma, a Igreja manifesta plenamente a sua maternidade, quer mediante a comunicação da acção divina confiada a Pedro, quer através do acolhimento responsável do dom divino, típico de Maria.O povo cristão, por seu lado, encontra no ministério ordenado os meios de salvação, e na vida consagrada o estímulo para uma resposta cabal de amor em cada uma das várias formas de diaconia.

4. Guiados pelo Espírito de Santidade

Existência «transfigurada»: a vocação à santidade

35. «Ao ouvirem isto, os discípulos caíram por terra, muito assustados» (Mt 17,6). No episódio da Transfiguração, os sinópticos põem em evidência, embora com acentuações diferentes, a sensação de temor que se apodera dos discípulos. O fascínio do rosto transfigurado de Cristo não os impede de se sentirem assustados diante da Majestade divina que os ultrapassa. Sempre que o homem vislumbra a glória de Deus, faz também a experiência da sua pequenez, provocando nele uma sensação de medo. Este temor é salutar. Recorda ao homem a perfeição divina, e ao mesmo tempo incita-o com um premente apelo à «santidade».

Todos os filhos da Igreja, chamados pelo Pai a «escutar» Cristo, não podem deixar de sentir uma profunda exigência de conversão e de santidade. Mas, como se salientou no Sínodo, esta exigência chama em causa, em primeiro lugar, a vida consagrada. Na verdade, a vocação recebida pelas pessoas consagradas para procurarem acima de tudo o Reino de Deus é, antes de mais nada, um chamamento à conversão plena, renunciando a si próprias para viverem totalmente do Senhor, a fim de que Deus seja tudo em todos. Chamados a contemplar e a testemunhar o rosto «transfigurado» de Cristo, os consagrados são chamados também a uma existência transfigurada.A respeito disto, é significativo o que se diz na Relação final da II Assembleia Extraordinária do Sínodo: «Os santos e as santas sempre foram fonte e origem de renovação nas circunstâncias mais difíceis, ao longo de toda a história da Igreja. Hoje, temos muita necessidade de santos, graça esta que devemos implorar continuamente a Deus. Os Institutos de vida consagrada, mediante a profissão dos conselhos evangélicos, devem estar conscientes da sua especial missão na Igreja de hoje, e nós devemos encorajá-los nessa sua missão».Estas considerações encontraram eco nos Padres desta IX Assembleia sinodal, quando afirmam: «A vida consagrada foi, através da história da Igreja, uma presença viva desta acção do Espírito, como um espaço privilegiado de amor absoluto a Deus e ao próximo, testemunho do projecto divino de fazer de toda a humanidade, dentro da civilização do amor, a grande família dos filhos de Deus». Igreja sempre viu na profissão dos conselhos evangélicos um caminho privilegiado para a santidade. As próprias expressões com que é designada — escola do serviço do Senhor, escola de amor e de santidade, caminho ou estado de perfeição — já manifestam quer a eficácia e a riqueza dos meios próprios desta forma de vida evangélica, quer o especial empenho requerido àqueles que a abraçam.Não foi por acaso que, no decorrer dos séculos, tantos consagrados deixaram eloquentes testemunhos de santidade e realizaram façanhas de evangelização e de serviço, particularmente generosas e árduas.

Fidelidade ao carisma

36. No seguimento de Cristo e no amor pela sua Pessoa, existem alguns pontos referentes ao crescimento da santidade na vida consagrada, que actualmente merecem ser colocados em particular evidência.

Antes de mais, exige-se a fidelidade ao carisma de fundação e sucessivo património espiritual de cada Instituto. Precisamente nessa fidelidade à inspiração dos fundadores e fundadoras, dom do Espírito Santo, se descobrem mais facilmente e se revivem com maior fervor os elementos essenciais da vida consagrada.Na verdade, cada carisma tem, na sua origem, um tríplice encaminhamento: primeiro, encaminhamento para o Pai , no desejo de procurar filialmente a sua vontade através de um processo contínuo de conversão, no qual a obediência é fonte de verdadeira liberdade, a castidade exprime a tensão de um coração insatisfeito com todo o amor finito, a pobreza alimenta aquela fome e sede de justiça que Deus prometeu saciar (cf. Mt 5,6). Nesta perspectiva, o carisma de cada Instituto impelirá a pessoa consagrada a ser toda de Deus, a falar com Deus ou de Deus — como se diz de S. Domingos—, para saborear como o Senhor é bom (cf. Sal 3433,9), em todas as situações.Os carismas de vida consagrada implicam também um encaminhamento para o Filho, com quem induzem a cultivar uma íntima e feliz comunhão de vida, na escola do seu serviço generoso a Deus e aos irmãos. Deste modo, «o olhar, progressivamente cristificado, aprende a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito»,e permite assim partir em missão com Cristo, trabalhando e sofrendo com Ele na difusão do seu Reino.Todo o carisma comporta, enfim, um encaminhamento para o Espírito Santo, enquanto dispõe a pessoa a deixar-se guiar e sustentar por Ele, tanto no próprio caminho espiritual como na vida de comunhão e na acção apostólica, para viver naquela atitude de serviço que deve inspirar toda a opção de um autêntico cristão.Com efeito, é sempre esta tríplice relação que transparece em cada carisma de fundação, naturalmente com os traços específicos dos vários modelos de vida, precisamente pelo facto de predominar naquele «um profundo ardor do espírito de se configurar com Cristo, para testemunhar algum aspecto do seu mistério»,aspecto esse que se há-de encarnar e desenvolver na mais genuína tradição do Instituto, segundo as Regras, as Constituições e os Estatutos.

Fidelidade criativa

37. Deste modo, os Institutos são convidados a repropor corajosamente o espírito de iniciativa, a criatividade e a santidade dos fundadores e fundadoras, como resposta aos sinais dos tempos visíveis no mundo de hoje.Este convite é, primariamente, um apelo à perseverança no caminho da santidade, através das dificuldades materiais e espirituais que marcam as vicissitudes diárias. Mas é, também, um apelo a conseguir a competência no próprio trabalho e a cultivar uma fidelidade dinâmica à própria missão, adaptando, quando for necessário, as suas formas às novas situações e às várias necessidades, com plena docilidade à inspiração divina e ao discernimento eclesial. Contudo, há que manter viva a convicção de que a garantia de toda a renovação, que pretenda permanecer fiel à inspiração originária, está na busca de uma conformidade cada vez mais plena com o Senhor.Neste espírito, torna-se hoje premente em cada Instituto a necessidade de um renovado referimento à Regra, pois, nela e nas Constituições, se encerra um itinerário de seguimento, qualificado por um carisma específico e autenticado pela Igreja. Uma maior consideração pela Regra não deixará de proporcionar às pessoas consagradas um critério seguro para procurar as formas adequadas para um testemunho capaz de responder às exigências actuais, sem se afastar da inspiração inicial.

Oração e ascese: o combate espiritual

38. A vocação à santidade só pode ser acolhida e cultivada no silêncio da adoração na presença da transcendência infinita de Deus: «Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante ao ponto de sermos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. Ex 34,33) [...]; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. [...] Todos, crentes e não crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra».Isto exige, concretamente, uma grande fidelidade à oração litúrgica e pessoal, aos tempos dedicados à oração mental e à contemplação, à adoração eucarística, às recolecções mensais e aos retiros espirituais.

É preciso redescobrir também os meios ascéticos , típicos da tradição espiritual da Igreja e do próprio Instituto. Eles foram, e continuam a sêlo, um auxílio poderoso para um autêntico caminho de santidade. Ajudando a dominar e a corrigir as tendências da natureza humana ferida pelo pecado, a ascese é verdadeiramente indispensável para a pessoa consagrada permanecer fiel à própria vocação e seguir Jesus pelo caminho da Cruz.Também se torna necessário identificar e vencer algumas tentações que às vezes se apresentam, por insídia diabólica, sob a falsa aparência de bem. Assim, por exemplo, a exigência legítima de conhecer a sociedade actual, para responder aos seus desafios, pode induzir a ceder a modas efémeras, com a diminuição do fervor espiritual ou com atitudes de desânimo. A possibilidade de uma formação espiritual mais elevada poderá levar as pessoas consagradas a um certo sentimento de superioridade relativamente aos outros fiéis, enquanto a urgência de uma legítima e indispensável habilitação se pode transformar numa busca exacerbada de eficiência como se o serviço apostólico dependesse prevalentemente dos meios humanos, e não de Deus. O desejo louvável de solidarizar-se com os homens e mulheres do nosso tempo, crentes e não crentes, pobres e ricos, pode levar à adopção de um estilo de vida secularizado ou a uma promoção dos valores humanos em sentido puramente horizontal. A partilha das instâncias legítimas da própria nação ou cultura poderá induzir a abraçar formas de nacionalismo ou a acolher elementos da tradição, que, ao contrário, precisam de ser purificados e elevados à luz do Evangelho.O caminho que conduz à santidade comporta, pois, a adopção do combate espiritual. É um dado exigente, ao qual hoje nem sempre se dedica a necessária atenção. Muitas vezes a tradição viu representado este combate espiritual na luta de Jacob a contas com o mistério de Deus, que ele afronta para ter acesso à sua bênção e à sua visão (cf. Gn 32,23-31). Neste episódio dos primórdios da história bíblica, as pessoas consagradas podem ler o símbolo do empenhamento ascético de que têm necessidade para dilatar o coração e abri-lo ao acolhimento do Senhor e dos irmãos.

Promover a santidade

39. Um renovado empenho de santidade das pessoas consagradas é hoje mais necessário do que nunca para favorecer e apoiar a tensão de todo o cristão para a perfeição . «É necessário, por conseguinte, suscitar em cada fiel um verdadeiro anseio de santidade, um forte desejo de conversão e renovamento pessoal num clima de oração cada vez mais intensa e de solidário acolhimento do próximo, especialmente do mais necessitado».As pessoas consagradas, na medida em que aprofundam a sua própria amizade com Deus, ficam em condições de ajudar os irmãos e irmãs com válidas iniciativas espirituais, como escolas de oração, retiros e recolecções espirituais, jornadas de deserto, escuta e direcção espiritual. Deste modo, é facilitado o progresso na oração a pessoas que poderão, depois, realizar um melhor discernimento da vontade de Deus sobre elas próprias, e decidir-se por opções corajosas, às vezes heróicas, exigidas pela fé. De facto, as pessoas consagradas, «pelo mais profundo do seu ser, situam-se no dinamismo da Igreja, sequiosa do Absoluto, que é Deus, e chamada à santidade. É desta santidade que dão testemunho».O facto de todos serem chamados a tornar-se santos, não pode senão estimular ainda mais aqueles que, pela própria opção de vida que fizeram, têm a missão de o recordar aos outros.

«Levantai-vos e não tenhais medo»: uma renovada confiança

40. «Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes, dizendo: "Levantai-vos e não tenhais medo"» (Mt 17,7). Como os três apóstolos no episódio da Transfiguração, as pessoas consagradas sabem por experiência que a sua vida nem sempre é iluminada por aquele fervor sensível que faz exclamar: «É bom estarmos aqui» (Mt 17,4). Porém, é sempre uma vida «tocada» pela mão de Cristo, abrangida pela sua voz, sustentada pela sua graça.

«Levantai-vos e não tenhais medo». Este encorajamento do Mestre é dirigido obviamente a todo o cristão. Mas, por maior força de razão, vale para quem foi chamado a «deixar tudo» e, portanto, a «arriscar tudo» por Cristo. Isto vale, de modo particular, quando, com o Mestre, se desce do «monte» para tomar a estrada que do Tabor leva ao Calvário.Ao referir que Moisés e Elias falavam com Cristo do seu mistério pascal, Lucas significativamente usa o termo «partida» [éxodos ]: «falavam da sua partida que iria consumar-se em Jerusalém» (Lc 9,31). «Êxodo»: palavra fundamental da revelação à qual toda a história da salvação faz referência e que exprime o sentido profundo do mistério pascal. Tema particularmente grato à espiritualidade da vida consagrada e que manifesta bem o seu significado. Nele, está inevitavelmente incluído o que pertence ao mysterium Crucis. Mas este difícil «caminho exodal», visto da perspectiva do Tabor, aparece colocado entre duas luzes: a luz preanunciadora da Transfiguração e a luz definitiva da Ressurreição.A vocação à vida consagrada — no horizonte de toda a vida cristã —, não obstante as suas renúncias e provas, antes em virtude delas, é um caminho «de luz», sobre o qual vela o olhar do Redentor: «Levantai-vos e não tenhais medo».