A g n u s D e i

VERITATIS SPLENDOR
João Paulo II
06.08.1993

II
«NÃO VOS CONFORMEIS COM A MENTALIDADE DESTE MUNDO" (RM 12,2)
A Igreja e o discernimento de algumas tendências da teologia moral hodierna

Ensinar o que é conforme à sã doutrina (cf. Tit 2, 1)

28. A meditação do diálogo entre Jesus e o jovem rico permitiu-nos recolher os conteúdos essenciais da Revelação do Antigo e do Novo Testamento sobre o agir moral. Ou sejam: a subordinação do homem e da sua acção a Deus, Aquele que «só é bom»; a relação entre o bem moral dos actos humanos e a vida eterna; o seguimento de Cristo, que abre ao homem a perspectiva do amor perfeito; e, enfim, o dom do Espírito Santo, fonte e auxílio da vida moral da «nova criatura» (cf. 2 Cor 5, 17).

Na sua reflexão moral, a Igreja teve constantemente presente as palavras, que Jesus dirigiu ao jovem rico. A Sagrada Escritura, de facto, permanece a fonte viva e fecunda da doutrina moral da Igreja, como recordou o Concílio Vaticano II: «O Evangelho é (...) fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes».43 Aquela conservou fielmente aquilo que a palavra de Deus ensina, tanto acerca das verdades a acreditar, como sobre o agir moral, isto é, o agir agradável a Deus (cf. 1 Ts 4, 1), realizando um progresso doutrinal análogo ao verificado no âmbito das verdades da fé. Assistida pelo Espírito Santo que a guia para a verdade total (cf. Jo 16, 13), a Igreja nunca cessou, nem poderá cessar, de perscrutar o «mistério do Verbo encarnado», no qual «se esclarece verdadeiramente o mistério do homem».44

29. A reflexão moral da Igreja, sempre realizada à luz de Cristo, o «bom Mestre», desenvolveu-se também na forma específica de ciência teológica, chamada «teologia moral», uma ciência que acolhe e interroga a Revelação divina e, ao mesmo tempo, responde às exigências da razão humana. A teologia moral é uma reflexão que se refere à «moralidade», ou seja, ao bem e ao mal dos actos humanos e da pessoa que os realiza, e neste sentido está aberta a todos os homens; mas é também «teologia», enquanto reconhece o princípio e o fim do agir moral n'Aquele que «só é bom» e que, doando-Se ao homem em Cristo, lhe oferece a bem-aventurança da vida divina.

O Concílio Vaticano II convidou os estudiosos a porem «especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do mundo».45 O mesmo Concílio convidou os teólogos «a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra, o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado».46 Daí o posterior convite, lançado a todos os fiéis, mas dirigido particularmente aos teólogos: «vivam, pois, os fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo, e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura».47

O esforço de muitos teólogos, incentivados pelo encorajamento do Concílio, já deu os seus frutos com interessantes e úteis reflexões sobre as verdades da fé a crer e a aplicar na vida, apresentadas de forma mais adequada à sensibilidade e às questões dos homens do nosso tempo. A Igreja e, em particular, os Bispos, a quem Jesus Cristo confiou primariamente o ministério de ensinar, acolham com gratidão um tal esforço e estimulem os teólogos a prosseguirem o trabalho, animados por um profundo e autêntico temor do Senhor, que é o princípio da sabedoria (cf. Prov 1, 7).

Ao mesmo tempo, porém, no âmbito das discussões teológicas pós-conciliares, foram-se desenvolvendo algumas interpretações da moral cristã que não são compatíveis com a «sã doutrina» (2 Tim 4, 3). Certamente o Magistério da Igreja não pretende impor aos fiéis nenhum sistema teológico particular nem mesmo filosófico, mas para «guardar religiosamente e expor fielmente» a Palavra de Deus,48 ele tem o dever de declarar a incompatibilidade com a verdade revelada de certas orientações do pensamento teológico ou de algumas afirmações filosóficas.49

30. Ao dirigir-me com esta Encíclica a vós, Irmãos no Episcopado, desejo enunciar os princípios necessários para o discernimento daquilo que é contrário à «sã doutrina», apelando para aqueles elementos do ensinamento moral da Igreja, que hoje parecem particularmente expostos ao erro, à ambiguidade ou ao esquecimento. De resto, são os elementos de que depende «a resposta para os enigmas da condição humana que, hoje como ontem, profundamente preocupam os seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos?».50 Estas e outras questões — como: que é a liberdade e qual a sua relação com a verdade contida na lei de Deus? qual é o papel da consciência na formação do perfil moral do homem? como discernir, em conformidade com a verdade sobre o bem, os direitos e os deveres concretos da pessoa humana? — podem-se resumir na pergunta fundamental que o jovem do Evangelho pôs a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Enviada por Jesus a pregar o Evangelho e a «instruir todas as nações (...) ensinando-as a observar tudo» o que Ele mandou (cf. Mt 28, 19-20), a Igreja propõe sempre de novo, hoje também, a resposta do Mestre: esta possui luz e força capazes de resolver inclusive as questões mais discutidas e complexas. Esta mesma luz e força impelem a Igreja a desenvolver constantemente a reflexão não só dogmática mas também moral, num âmbito interdisciplinar, tal como é necessário especialmente para os novos problemas.51

É sempre nessa mesma luz e força que o Magistério da Igreja realiza a sua obra de discernimento, acolhendo e pondo em prática a admoestação que o apóstolo Paulo dirigia a Timóteo: «Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, e em nome da Sua aparição e do Seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina. Porque virá o tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina. Desejosos de ouvir novidades, escolherão para si uma multidão de mestres, ao sabor das paixões, e hão-de afastar os ouvidos da verdade, aplicando-os às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, suporta os trabalhos, evangeliza e consagra-te ao teu ministério» (2 Tim 4, 1-5; cf. Tit 1, 10.13-14).

«Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)

31. Os problemas humanos mais debatidos e diversamente resolvidos na reflexão moral contemporânea, estão ligados, mesmo se de várias maneiras, a um problema crucial: o da liberdade do homem.

Não há dúvida que a nossa época adquiriu uma percepção particularmente viva da liberdade. «Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana», como já constatava a Declaração conciliar Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa.52 Daí a reivindicação de que os homens possam «agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coacção, mas levados pela consciência do dever».53 Em particular, o direito à liberdade religiosa e ao respeito da consciência no seu caminho para a verdade é sentido cada vez mais como fundamento dos direitos da pessoa, considerados no seu conjunto.54

Assim, o sentido mais agudo da dignidade e da unicidade da pessoa humana, bem como do respeito devido ao caminho da consciência, constitui certamente uma conquista positiva da cultura moderna. Esta percepção, em si mesma autêntica, encontrou múltiplas expressões, mais ou menos adequadas, algumas das quais, porém, se afastam da verdade do homem enquanto criatura e imagem de Deus, e requerem, portanto, ser corrigidas ou purificadas à luz da fé.55

32. Em algumas correntes do pensamento moderno, chegou-se a exaltar a liberdade até ao ponto de se tornar um absoluto, que seria a fonte dos valores. Nesta direcção, movem-se as doutrinas que perderam o sentido da transcendência ou as que são explicitamente ateias. Atribuiram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal. À afirmação do dever de seguir a própria consciência foi indevidamente acrescentada aqueloutra de que o juízo moral é verdadeiro pelo próprio facto de provir da consciência. Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de «acordo consigo próprio», a ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjectivista do juízo moral.

Como facilmente se compreende, não é alheia a esta evolução,a crise em torno da verdade. Perdida a ideia de uma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a concepção da consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal e agir em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros. Levado às últimas consequências, o individualismo desemboca na negação da ideia mesma de natureza humana.

Estas diversas concepções estão na origem das orientações de pensamento que sustentam a antinomia entre lei moral e consciência, entre natureza e liberdade.

33. Paralelamente à exaltação da liberdade, e paradoxalmente em contraste com ela, a cultura moderna põe radicalmente em questão a própria liberdade. Um conjunto de disciplinas, agrupadas sob o nome de «ciências humanas», chamou justamente a atenção para os condicionamentos de ordem psicológica e social, que pesam sobre o exercício da liberdade humana. O conhecimento desses condicionalismos e a atenção que lhes é prestada são conquistas importantes, que encontraram aplicação em diversos âmbitos da existência, como, por exemplo, na pedagogia ou na administração da justiça. Mas alguns, ultrapassando as conclusões, que legitimamente se podem tirar destas observações, chegaram ao ponto de pôr em dúvida ou de negar a própria realidade da liberdade humana.

São de lembrar ainda algumas interpretações abusivas da pesquisa científica a nível antropológico. Partindo da grande variedade de tradições, hábitos e instituições existentes na humanidade, concluem, senão sempre pela negação de valores humanos universais, pelo menos com uma concepção relativista da moral.

34. «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». A pergunta moral, à qual responde Cristo, não pode prescindir da questão da liberdade, pelo contrário, coloca-a no centro dela, porque não há moral sem liberdade: «Só na liberdade é que o homem se pode converter ao bem».56 Mas qual liberdade? Perante os nossos contemporâneos que «apreciam grandemente» a liberdade e que a «procuram com ardor», mas que «muitas vezes a fomentam dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade», o Concílio apresenta a «verdadeira » liberdade: «A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis "deixar o homem entregue à sua própria decisão" (cf. Sir 15, 14), para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele».57 Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida.58 Neste sentido, afirmava com decisão o Cardeal J. H. Newman, eminente defensor dos direitos da consciência: «A consciência tem direitos, porque tem deveres».59

Algumas tendências da teologia moral hodierna, sob a influência das correntes subjectivistas e individualistas agora lembradas, interpretam de um modo novo a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e com a consciência, e propõem critérios inovadores de avaliação moral dos actos: são tendências que, em sua variedade, coincidem no facto de atenuar ou mesmo negar a dependência da liberdade da verdade.

Se queremos realizar um discernimento crítico destas tendências, capaz de reconhecer o que nelas existe de legítimo, útil e válido, e indicar, ao mesmo tempo, as suas ambiguidades, perigos e erros, devemos examiná-las à luz da dependência fundamental da liberdade da verdade, dependência que foi expressa do modo mais claro e autorizado pelas palavras de Cristo: «Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32).

I. A liberdade e a lei

«Não comas da árvore da ciência do bem e do mal» (Gn 2, 17)

35. Lemos no livro do Génesis: «O Senhor deu esta ordem ao homem: "Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás"» (Gn 2, 16-17).

Com esta imagem, a Revelação ensina que não pertence ao homem o poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus. O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer «de todas as árvores do jardim». Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da «árvore da ciência do bem e do mal», chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente nesta aceitação. Deus, que «só é bom», conhece perfeitamente o que é bom para o homem, e, devido ao seu mesmo amor, propõe-lo nos mandamentos.

Portanto, a lei de Deus não diminui e muito menos elimina a liberdade do homem, pelo contrário, garante-a e promove-a. Bem distintas se apresentam, porém, algumas tendências culturais hodiernas, que estão na origem de muitas orientações éticas que colocam no centro do seu pensamento um suposto conflito entre a liberdade e a lei. Tais são as doutrinas que atribuem a simples indivíduos ou a grupos sociais a faculdade de decidir o bem e o mal: a liberdade humana poderia «criar os valores», e gozaria de uma primazia sobre a verdade, até ao ponto de a própria verdade ser considerada uma criação da liberdade. Esta, portanto, reivindicaria tal autonomia moral, que, praticamente, significaria a sua soberania absoluta.

36. A exigência moderna de autonomia não deixou de exercer o seu influxo também no âmbito da teologia moral católica. Se é certo que esta nunca pretendeu contrapor a liberdade humana à lei divina, nem pôr em dúvida a existência de um fundamento religioso último das normas morais, foi, porém, incitada a uma profunda revisão do papel da razão e da fé na individuação das normas morais que se referem aos comportamentos específicos «intramundanos», ou seja, relativos ao próprio sujeito, aos outros e ao mundo das coisas.

Deve-se reconhecer que, na origem deste esforço de revisão, acham-se algumas instâncias positivas, que em boa parte, aliás, pertencem à melhor tradição do pensamento católico. Solicitados pelo Concílio Vaticano II,60 quis-se favorecer o diálogo com a cultura moderna, pondo em evidência o carácter racional — e, portanto, universalmente compreensível e comunicável — das normas morais que pertencem ao âmbito da lei moral natural.61 Pretendeu-se, além disso, confirmar o carácter interior das exigências éticas que dela derivam e que só se impõem à vontade como uma obrigação por força do reconhecimento prévio da razão humana e, em concreto, da consciência pessoal.

Esquecendo, porém, a dependência da razão humana da Sabedoria divina e, no actual estado de natureza decaída, a necessidade, mais, a efectiva realidade da Revelação divina para o conhecimento das verdades morais, mesmo de ordem natural,62 alguns chegaram a teorizar uma completa soberania da razão no âmbito das normas morais, relativas à recta ordenação da vida neste mundo: tais normas constituiriam o âmbito de uma moral puramente «humana», isto é, seriam a expressão de uma lei que o homem autonomamente daria a si próprio, com a sua fonte exclusiva na razão humana. Desta lei, Deus não poderia de modo algum ser considerado Autor, salvo no sentido que a razão humana exerceria a sua autonomia legislativa por força de um mandato original e total de Deus ao homem. Ora, estas tendências de pensamento levaram a negar, contra a Sagrada Escritura e a doutrina constante da Igreja, que a lei moral natural tenha Deus como autor e que o homem, mediante a sua razão, participe da lei eterna, dado que não é ele a estabelecê-la.

37. Querendo, porém, manter a vida moral num contexto cristão, foi introduzida por alguns teólogos moralistas uma nítida distinção, contrária à doutrina católica,63 entre uma ordem ética, que teria origem humana e valor apenas temporal, e uma ordem da salvação, para a qual contariam somente algumas intenções e atitudes interiores relativas a Deus e ao próximo. Consequentemente, chegou-se ao ponto de negar, na Revelação divina, a existência de um conteúdo moral específico e determinado, universalmente válido e permanente: a Palavra de Deus limitar-se-ia a propor uma exortação, uma genérica parénese, que depois unicamente a razão autónoma teria a tarefa de preencher com determinações normativas verdadeiramente «objectivas», ou seja, adequadas à situação histórica concreta. Naturalmente, uma autonomia assim concebida comporta também a negação à Igreja e ao seu Magistério de uma competência doutrinal específica sobre normas morais concretas relacionadas com o chamado «bem humano»: elas não pertenceriam ao conteúdo próprio da Revelação, nem seriam em si próprias relevantes para a salvação.

É impossível não ver que uma tal interpretação da autonomia da razão humana comporta teses incompatíveis com a doutrina católica.

Neste contexto, é absolutamente necessário esclarecer, à luz da Palavra de Deus e da tradição viva da Igreja, as noções fundamentais da liberdade humana e da lei moral, como também as suas relações profundas e interiores. Só assim será possível corresponder às justas exigências da racionalidade humana, integrando os elementos válidos de algumas correntes da teologia moral hodierna sem prejudicar o património moral da Igreja com teses derivadas de um conceito erróneo de autonomia.

Deus quis deixar o homem «entregue à sua própria decisão» (Sir 15, 14)

38. Retomando as palavras do Sirácida, o Concílio Vaticano II explica assim a «verdadeira liberdade», que, no homem, é «sinal privilegiado da imagem divina»: «Deus quis "deixar o homem entregue à sua própria decisão", para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele».64 Estas palavras indicam a maravilhosa profundidade da participação na soberania divina, à qual foi chamado o homem: indicam que o poder do homem se estende, de certa maneira, sobre si mesmo. Este é um aspecto constantemente acentuado na reflexão teológica sobre a liberdade humana, interpretada como uma forma de realeza. Escreve, por exemplo, S. Gregório de Nissa: «O espírito manifesta a sua realeza e excelência (...) pelo facto de ser sem dono e livre, governando-se soberanamente pelo seu querer. De quem é próprio isto, senão de um rei? (...) Assim a natureza humana, criada para ser senhora das outras criaturas, pela semelhança com o Soberano do universo, foi estabelecida como uma imagem viva, participante da dignidade e do nome do Arquétipo».65

Já o governar o mundo constitui para o homem uma tarefa grande e cheia de responsabilidade, que compromete a sua liberdade na obediência ao Criador: «Enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). Sob este aspecto, compete ao indivíduo, bem como à comunidade humana, uma justa autonomia, à qual a Constituição conciliar Gaudium et spes dedica uma especial atenção. É a autonomia das realidades terrenas, significando que «as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando».66

39. Não só o mundo, mas o homem mesmo foi confiado ao seu próprio cuidado e responsabilidade. Deus deixou-o «entregue à sua própria decisão» (Sir 15, 14), para que procurasse o seu Criador e alcançasse livremente a perfeição. Alcançar significa edificar pessoalmente em si próprio tal perfeição. Com efeito, do mesmo modo que ao governar o mundo, o homem o forma segundo a sua inteligência e vontade, assim também praticando actos moralmente bons, o homem confirma, desenvolve e consolida em si mesmo a semelhança com Deus.

No entanto, o Concílio pede vigilância perante um falso conceito da autonomia das realidades terrenas, ou seja, o de considerar que «as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador».67 Aplicado depois ao homem, tal conceito de autonomia produz efeitos particularmente danosos, assumindo, em última análise, um carácterateu: «Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece de Deus, a própria criatura se obscurece».68

40. O ensinamento do Concílio sublinha, por um lado, a actividade da razão humana na descoberta e na aplicação da lei moral: a vida moral exige a criatividade e o engenho próprios da pessoa, fonte e causa dos seus actos deliberados. Por outro lado, a razão obtém a sua verdade e autoridade da lei eterna, que não é senão a própria sabedoria divina.69 Na base da vida moral, está, pois, o princípio de uma «justa autonomia»70 do homem, sujeito pessoal dos seus actos. A lei moral provém de Deus e n'Ele encontra sempre a sua fonte: em virtude da razão natural, que deriva da sabedoria divina, ela é simultaneamente a lei própria do homem. De facto, a lei natural, como vimos, «não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus a concedeu na criação».71 A justa autonomia da razão prática significa que o homem possui em si mesmo a própria lei, recebida do Criador. Mas, a autonomia da razão não pode significar a criação, por parte da mesma razão, dos valores e normas morais.72 Se esta autonomia implicasse uma negação da participação da razão prática na sabedoria do divino Criador e Legislador, ou então se sugerisse uma liberdade criadora das normas morais, segundo as contingências da história ou das diversas sociedades e culturas, uma tal suposta autonomia contradiria o ensinamento da Igreja sobre a verdade do homem.73 Seria a morte da verdadeira liberdade: «Mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que comeres, certamente morrerás (Gn 2, 17).

41. A verdadeira autonomia moral do homem de modo algum significa a recusa, mas sim o acolhimento da lei moral, do mandamento de Deus: «O Senhor deu esta ordem ao homem... » (Gn 2, 16). A liberdade do homem e a lei de Deus encontram-se e são chamadas a compenetrar-se entre si, no sentido de uma livre obediência do homem a Deus e da benevolência gratuita de Deus ao homem. E, portanto, a obediência a Deus não é, como pensam alguns, uma heteronomia, de modo que a vida moral estivesse submetida à vontade de uma omnipotência absoluta, externa ao homem e contrária à afirmação da sua liberdade. Na verdade, se heteronomia da moral significasse negação da autodeterminação do homem ou imposição de normas estranhas ao seu bem, estaria em contradição com a revelação da Aliança e da Encarnação redentora. Semelhante heteronomia seria apenas uma forma de alienação, contrária à sabedoria divina e à dignidade da pessoa humana.

Alguns falam, justamente, de teonomia, ou de teonomia participada, porque a livre obediência do homem à lei de Deus implica, de facto, a participação da razão e da vontade humana na sabedoria e providência de Deus. Proibindo ao homem comer da «árvore da ciência do bem e do mal», Deus afirma que o homem não possui originariamente como própria esta «ciência», mas só participa nela através da luz da razão natural e da revelação divina, que lhe manifestam as exigências e os apelos da sabedoria eterna. A lei, portanto, deve entender-se como uma expressão da sabedoria divina: ao submeter-se a ela, a liberdade submete-se à verdade da criação. Por isso, é necessário reconhecer na liberdade da pessoa humana, a imagem e a proximidade de Deus, que Se «encontra em todos» (cf. Ef 4, 6); da mesma forma, impõe-se confessar a majestade do Deus do universo e venerar a santidade da lei de Deus infinitamente transcendente. Deus sempre maior.74

Feliz o homem que põe o seu enlevo na lei do Senhor (cf. Sal 1, 1-2)

42. Modelada sobre a de Deus, a liberdade do homem não só não é negada pela sua obediência à lei divina, mas apenas mediante essa obediência, ela permanece na verdade e é conforme à dignidade do homem, como diz claramente o Concílio: «A dignidade do homem exige que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes».75

Na sua inclinação para Deus, para Aquele que «só é bom», o homem deve livremente fazer o bem e evitar o mal. Mas para isso, o homem deve poder distinguir o bem do mal. Fá-lo, antes de mais, graças à luz da razão natural, reflexo no homem do esplendor da face de Deus. Neste sentido, escreve S. Tomás ao comentar um versículo do Salmo 4: «Depois de ter dito: Oferecei sacrifícios de justiça (Sal 4, 6), como se alguns lhe pedissem quais são as obras da justiça, o Salmista acrescenta: Muitos dizem: quem nos fará ver o bem? E, respondendo à pergunta, diz: A luz da Vossa face, Senhor, foi impressa em nós. Como se quisesse dizer que a luz da razão natural, pela qual distinguimos o bem do mal — naquilo que é da competência da lei natural — nada mais é senão um vestígio da luz divina em nós».76 Disto se deduz também o motivo pelo qual esta lei é chamada lei natural: chama-se assim, não por referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão, que a dita, é própria da natureza humana.77

43. O Concílio Vaticano II lembra que «a suprema norma da vida humana é a própria lei divina, objectiva e universal, com a qual Deus, no desígnio da sua sabedoria e amor, ordena, dirige e governa o universo inteiro e os caminhos da comunidade humana. Desta sua lei, Deus torna o homem participante, de modo que este, segundo a suave disposição da divina providência, possa conhecer cada vez mais a verdade imutável».78

O Concílio remete para a doutrina clássica sobre a lei eterna de Deus. S. Agostinho define-a como «a razão ou a vontade de Deus que manda observar a ordem natural e proibe alterá-la»;79 S. Tomás identifica-a com «a razão da divina sabedoria que conduz tudo ao devido fim».80 E a sabedoria de Deus é providência, amor que cuida com diligência. É o próprio Deus, portanto, que ama e cuida, no sentido mais literal e fundamental, de toda a criação (cf. Sab 7, 22; 8, 11). Mas aos homens, Deus provê de um modo diferente do usado com os seres que não são pessoas: não «de fora», através das leis da natureza física, mas «de dentro», mediante a razão que, conhecendo pela luz natural a lei eterna de Deus, está, por isso mesmo, em condições de indicar ao homem a justa direcção do seu livre agir.81 Deste modo, Deus chama o homem a participar da Sua providência, querendo dirigir o mundo, por meio do próprio homem, ou seja, através do seu cuidado consciencioso e responsável: não só o mundo das coisas, mas também o das pessoas humanas. Neste contexto se situa a lei natural como a expressão humana da lei eterna de Deus: «Em relação às outras criaturas — escreve S. Tomás —, a criatura racional está sujeita de um modo mais excelente à divina providência, enquanto ela também se torna participante da providência ao cuidar de si própria e dos outros. Por isso, ela participa da razão eterna, graças à qual tem uma inclinação natural para o acto e o fim devidos; esta participação da lei eterna na criatura racional é chamada lei natural».82

44. A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua lei. Depois de dizer que «a lei natural está escrita e esculpida no coração de todos e de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar», Leão XIII remete para a «razão mais elevada» do divino Legislador: «Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar submetidos». De facto, a força da lei reside na sua autoridade de impor deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: «Ora, nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como legislador supremo, a norma das suas acções». E conclui: «Daí decorre que a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o acto e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo».83

O homem pode reconhecer o bem e o mal, graças àquele discernimento entre o bem e o mal que ele mesmo realiza com a sua razão, em particular com a sua razão iluminada pela Revelação divina e pela fé, em virtude da lei que Deus outorgou ao povo eleito, a começar pelos mandamentos do Sinai. Israel foi chamado a acolher e viver a lei de Deus como particular dom e sinal da eleição e da Aliança divina, e, ao mesmo tempo, como garantia da bênção de Deus. Assim, Moisés podia dirigir-se aos filhos de Israel, perguntando-lhes: «Que povo há tão grande que tenha deuses como o Senhor, nosso Deus, sempre pronto a atender-nos quando O invocamos? Qual é o grande povo, que possua mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que hoje vos apresento? (Dt 4, 7-8). Nos Salmos, encontramos os sentimentos de louvor, gratidão e veneração que o povo eleito é chamado a nutrir pela lei de Deus, a par da exortação a conhecê-la, meditá-la e levá-la à vida: «Feliz do homem que não segue o conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem toma assento na reunião dos enganadores; antes, põe o seu enlevo na lei do Senhor e sobre ela medita, dia e noite» (Sal 1, 1-2); «A lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito; os Seus testemunhos são fiéis, tornam sábio o homem simples. Os Seus mandamentos são rectos, deleitam o coração; os Seus preceitos são puros, iluminam os olhos» (Sal 1819, 8-9).

45. A Igreja acolhe com gratidão e guarda com amor todo o depósito da Revelação, tratando-o com religioso respeito e cumprindo a sua missão de interpretar autenticamente a lei de Deus à luz do Evangelho. Além disso, a Igreja recebe como dom a nova Lei, que é o «cumprimento» da lei de Deus em Jesus Cristo e no Seu Espírito: é uma lei «interior» (cf. Jer 31, 31-33), «escrita, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos nossos corações» (2 Cor 3, 3); uma lei de perfeição e de liberdade (cf. 2 Cor 3, 17); é «a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2). A propósito desta lei, escreve S. Tomás: «Esta pode ser denominada lei num duplo sentido. Primeiramente, lei do espírito é o Espírito Santo (...) que, habitando na alma, não só ensina o que é necessário realizar pela iluminação da inteligência sobre as coisas a serem cumpridas, mas inclina também a agir com rectidão (...) Num segundo sentido, lei do espírito pode designar o efeito próprio do Espírito Santo, ou seja, a fé que actua pela caridade (Gál 5, 6), a qual, portanto, ensina interiormente sobre as coisas que devem ser feitas (...) e inclina o afecto a agir».84

Apesar de habitualmente, na reflexão teológico-moral, se distinguirem a lei de Deus positiva ou revelada da lei natural, e, na economia da salvação, a lei «antiga» da lei «nova», não se pode esquecer que estas e outras distinções úteis referem-se sempre à lei, cujo autor é o mesmo e único Deus e o destinatário é o homem. As diversas maneiras como, na história, Deus cuida do mundo e do homem, não só não se excluem entre si, mas, pelo contrário, apoiam-se e compenetram-se mutuamente. Todas elas derivam e terminam no sábio e amoroso desígnio eterno com que Deus predestina os homens «a serem conformes à imagem do Seu Filho» (Rm 8, 29). Neste desígnio, não há qualquer ameaça à verdadeira liberdade do homem: pelo contrário, o seu acolhimento é o único caminho para a afirmação da liberdade.

«O que a lei ordena está escrito nos seus corações» (Rm 2, 15)

46. O suposto conflito entre liberdade e lei afirma-se hoje com especial intensidade no caso da lei natural, e particularmente no que se refere à natureza. Na verdade, os debates sobre natureza e liberdade acompanharam sempre a história da reflexão moral, subindo de tom no Renascimento e na Reforma, como se pode deduzir dos ensinamentos do Concílio de Trento.85 A época contemporânea está caracterizada por uma tensão análoga, mesmo se num sentido diferente: o gosto pela observação empírica, os processos de objectivação científica, o progresso técnico, algumas formas de liberalismo levaram a contrapor os dois termos, como se a dialéctica — senão mesmo o conflito — entre liberdade e natureza fosse uma característica estrutural da história humana. Noutras épocas, parecia que a «natureza» submetesse totalmente o homem aos seus dinamismos e até aos seus determinismos. Ainda hoje, as coordenadas espaço-temporais do mundo sensível, as constantes físico-químicas, os dinamismos corpóreos, os impulsos psíquicos, os condicionamentos sociais parecem ser, para muitos, os únicos factores realmente decisivos das realidades humanas. Neste contexto, também os factos morais, não obstante a sua especificidade, são com frequência tratados como se fossem dados estatisticamente comprováveis, como comportamentos observáveis ou explicáveis somente com as categorias dos mecanismos psicossociais. E assim alguns estudiosos de ética, obrigados por profissão a examinar os factos e os gestos do homem, podem ser tentados a medir a própria ciência, senão as suas prescrições, baseando-se numa relação estatística dos comportamentos humanos concretos e das opiniões morais da maioria.

Outros moralistas, pelo contrário, preocupados em educar para os valores, mantêm-se sensíveis ao prestígio da liberdade, mas com frequência concebem-na em oposição, ou em contraste, com a natureza material e biológica, sobre a qual deveria progressivamente ir-se afirmando. A propósito disto, diferentes concepções convergem no facto de esquecerem a dimensão de criatura da natureza e desconhecerem a sua totalidade. Para alguns, a natureza fica reduzida a simples material ao dispor do agir humano e do seu poder: ela deveria ser profundamente transformada, antes, superada pela liberdade, dado que constituiria um seu limite e negação. Para outros, é na promoção ilimitada do poder humano ou da sua liberdade, que se constituem os valores económicos, sociais, culturais e até morais: a natureza serviria para significar tudo aquilo que no homem e no mundo se coloca fora da liberdade. Tal natureza compreenderia, em primeiro lugar, o corpo humano, a sua constituição e os seus dinamismos: a este dado físico, opor-se-ia tudo o que é «construído», isto é, a «cultura», como obra e produto da liberdade. A natureza humana, assim entendida, poderia ser reduzida e tratada como mero material biológico ou social, sempre disponível. O que significa, em última análise, definir a liberdade por si mesma, tornando-a uma instância criadora de si própria e dos seus valores. Desta forma, no caso extremo, o homem nem sequer teria natureza, e seria por si mesmo o próprio projecto de existência. O homem nada mais seria que a sua liberdade!

47. Neste contexto, surgiram as objecções de fisicismo e naturalismo contra a concepção tradicional da lei natural: esta apresentaria como leis morais, leis que, em si próprias, seriam somente biológicas. Assim, com grande superficialidade, ter-se-ia atribuído a alguns comportamentos humanos um carácter permanente e imutável e, nesta base, pretender-se-ia formular normas morais válidas universalmente. Segundo alguns teólogos, semelhante «argumentação biologista ou naturalista» estaria também presente em certos documentos do Magistério da Igreja, especialmente naqueles que se referem ao âmbito da ética sexual e matrimonial. Com base numa concepção naturalista do acto sexual, teriam sido condenadas como moralmente inadmissíveis a contracepção, a esterilização directa, a masturbação, as relações pré-matrimoniais, as relações homossexuais, como também a fecundação artificial. Ora, segundo o parecer destes teólogos, a avaliação moralmente negativa de tais actos não teria em suficiente consideração o carácter racional e livre do homem, nem o condicionamento cultural de cada norma moral. Dizem eles que o homem, como ser racional, não só pode, mas até deve decidir livremente o sentido dos seus comportamentos. Este «decidir o sentido» deverá ter em conta, obviamente, as múltiplas limitações do ser humano, que possui uma condição corpórea e histórica.

Deverá, além disso, tomar em consideração os modelos de comportamento e os significados que estes assumem numa determinada cultura. E, sobretudo, deverá respeitar o mandamento fundamental do amor de Deus e do próximo. Mas Deus — afirmam ainda — fez o homem como um ser racionalmente livre, deixou-o «entregue à sua própria decisão», e dele espera uma própria formação racional da sua vida. O amor do próximo significaria sobretudo, ou mesmo exclusivamente, respeito pela livre decisão de si próprio. Os mecanismos dos comportamentos típicos do homem e também das chamadas «inclinações naturais», no máximo, estabeleceriam — como dizem — uma orientação geral do comportamento correcto, mas não poderiam determinar a avaliação moral de cada um dos actos humanos, tão complexos do ponto de vista das situações.

48. Perante uma tal interpretação, ocorre considerar atentamente a recta relação que existe entre a liberdade e a natureza humana, e particularmente o lugar que ocupa o corpo humano nas questões da lei natural.

Uma liberdade, que pretenda ser absoluta, acaba por tratar o corpo humano como um dado bruto, desprovido de significados e de valores morais enquanto aquela não o tiver moldado com o seu projecto. Consequentemente, a natureza humana e o corpo aparecem como pressupostos ou preliminares, materialmente necessários para a opção da liberdade, mas extrínsecos à pessoa, ao sujeito e ao acto humano. Os seus dinamismos não poderiam constituir pontos de referência para a opção moral, uma vez que as finalidades destas inclinações seriam só bens «físicos», chamados por alguns «pré-morais». Fazer-lhes referência, para procurar indicações racionais sobre a ordem da moralidade, deveria ser qualificado como fisicismo ou biologismo. Em semelhante contexto, a tensão entre a liberdade e uma natureza concebida em sentido redutivo, termina numa divisão no mesmo homem.

Esta teoria moral não está de acordo com a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade. Contradiz os ensinamentos da Igreja sobre a unidade do ser humano, cuja alma racional é per se et essentialiter a forma do corpo.86 A alma espiritual e imortal é o princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este existe como um todo — «corpore et anima unus»87 — enquanto pessoa. Estas definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios actos morais. A pessoa, através da luz da razão e do apoio da virtude, descobre no seu corpo os sinais prévios, a expressão e a promessa do dom de si, de acordo com o sábio desígnio do Criador. É à luz da dignidade da pessoa humana — que se afirma por si própria — que a razão depreende o valor moral específico de alguns bens, aos quais a pessoa está naturalmente inclinada. E tendo em vista que a pessoa humana não é redutível a uma liberdade que se autoprojecta, mas comporta uma estrutura espiritual e corpórea determinada, a exigência moral originária de amar e respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples meio, implica também, intrinsecamente, o respeito de alguns bens fundamentais, sem os quais cai-se no relativismo e no arbitrário.

49. Uma doutrina que separe o acto moral das dimensões corpóreas do seu exercício, é contrária aos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição: essa doutrina faz reviver, sob novas formas, alguns velhos erros sempre combatidos pela Igreja, porquanto reduzem a pessoa humana a uma liberdade «espiritual», puramente formal. Esta redução desconhece o significado moral do corpo e dos comportamentos que a ele se referem (cf. 1 Cor 6, 19). O apóstolo Paulo declara excluídos do Reino dos céus os «imorais, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e salteadores» (cf. 1 Cor 6, 9-10). Tal condenação — assumida pelo Concílio de Trento 88 — enumera como «pecados mortais», ou «práticas infames», alguns comportamentos específicos, cuja aceitação voluntária impede os crentes de terem parte na herança prometida. De facto, corpo e alma são inseparáveis: na pessoa, no agente voluntário e no acto deliberado, eles salvam-se ou perdem-se juntos.

50. Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à «natureza da pessoa humana»,89 que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. «A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus actos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo».90 Por exemplo, a origem e o fundamento do dever de respeitar absolutamente a vida humana devem-se encontrar na dignidade própria da pessoa, e não simplesmente na inclinação natural para conservar a própria vida física. Assim, a vida humana, mesmo sendo um bem fundamental do homem, ganha um significado moral pela referência ao bem da pessoa, que deve ser sempre afirmada por si própria: enquanto é sempre moralmente ilícito matar um ser humano inocente, pode ser lícito, louvável ou até mesmo obrigatório dar a própria vida (cf. Jo 15, 13) por amor do próximo ou em testemunho da verdade. Na realidade, só fazendo referência à pessoa humana na sua «totalidade unificada», ou seja, «alma que se exprime no corpo e corpo informado por um espírito imortal»,91 pode ser lido o significado especificamente humano do corpo. Com efeito, as inclinações naturais adquirem dimensão moral, apenas enquanto se referem à pessoa humana e à sua autêntica realização, a qual, por seu lado, pode acontecer sempre e somente na natureza humana. Rejeitando as manipulações da corporeidade que alteram o seu significado humano, a Igreja serve o homem indicando-lhe o caminho do verdadeiro amor, o único onde ele pode encontrar o verdadeiro Deus.

A lei natural, assim entendida, não deixa espaço à divisão entre liberdade e natureza. De facto, estas estão harmonicamente ligadas entre si, e intimamente aliadas uma à outra.

«Mas ao princípio não foi assim» (Mt 19, 8)

51. O suposto conflito entre liberdade e natureza repercute-se também sobre a interpretação de alguns aspectos específicos da lei natural, sobretudo da sua universalidade e imutabilidade. «Onde estão, pois, escritas estas regras — perguntava-se S. Agostinho — a não ser no livro daquela luz que se chama verdade? Daqui, portanto, é ditada toda a lei justa e se transfere directamente ao coração do homem que pratica a justiça, não vivendo aí como estrangeira, mas quase que imprimindo-se nele, à semelhança da imagem que passa do anel à cera, sem abandonar todavia o anel».92

Graças precisamente a esta «verdade», a lei natural implica a universalidade. Aquela, enquanto inscrita na natureza racional da pessoa, impõe-se a todo o ser dotado de razão e presente na história. Para se aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve fazer o bem e evitar o mal, deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro, praticar o bem, contemplar a beleza.93

A cisão criada por alguns entre a liberdade dos indivíduos e a natureza comum a todos, como emerge de certas teorias filosóficas de grande repercussão na cultura contemporânea, obscurece a percepção da universalidade da lei moral por parte da razão. Mas, enquanto exprime a dignidade da pessoa humana e põe a base dos seus direitos e deveres fundamentais, a lei natural é universal nos seus preceitos e a sua autoridade estende-se a todos os homens. Esta universalidade não prescinde da individualidade dos seres humanos, nem se opõe à unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa: pelo contrário, abraça pela raiz cada um dos seus actos livres, que devem atestar a universalidade do verdadeiro bem. Submetendo-se à lei comum, os nossos actos edificam a verdadeira comunhão das pessoas e, pela graça de Deus, exercem a caridade, «vínculo da perfeição» (Col 3, 14). Quando, pelo contrário, desconhecem ou simplesmente ignoram a lei, de forma imputável ou não, os nossos actos ferem a comunhão das pessoas, com prejuízo para todos.

52. É justo e bom, sempre e para todos, servir a Deus, prestar-Lhe o culto devido e honrar verdadeiramente os pais. Tais preceitos positivos, que prescrevem cumprir certas acções e promover determinadas atitudes, obrigam universalmente; são imutáveis;94 congregam no mesmo bem comum todos os homens de cada época da história, criados para «a mesma vocação e o mesmo destino divino».95 Estas leis universais e permanentes correspondem a conhecimentos da razão prática e são aplicadas aos actos particulares através do juízo da consciência. O sujeito agente assimila pessoalmente a verdade contida na lei: apropria- -se, faz sua esta verdade do seu ser, mediante os actos e as correlativas virtudes. Os preceitos negativos da lei natural são universalmente válidos: obrigam a todos e cada um, sempre e em qualquer circunstância. Trata-se, com efeito, de proibições que vetam uma determinada acção semper et pro semper, sem excepções, porque a escolha de um tal comportamento nunca é compatível com a bondade da vontade da pessoa que age, com a sua vocação para a vida com Deus e para a comunhão com o próximo. É proibido a cada um e sempre infringir preceitos que vinculam, todos e a qualquer preço, a não ofender em ninguém e, antes de mais, em si próprio, a dignidade pessoal e comum a todos.

Por outro lado, o facto de que apenas os mandamentos negativos obrigam sempre e em qualquer circunstância, não significa que na vida moral as proibições sejam mais importantes que o compromisso de praticar o bem indicado pelos mandamentos positivos. O motivo é sobretudo o seguinte: o mandamento do amor de Deus e do próximo não tem, na sua dinâmica positiva, qualquer limite superior, mas possui limite inferior, abaixo do qual se viola o mandamento. Além disso, o que deve ser feito numa determinada situação depende das circunstâncias, que não se podem prever todas de antemão; pelo contrário, há comportamentos que em nenhuma situação e jamais podem ser uma resposta adequada — isto é, conforme à dignidade da pessoa. Enfim, é sempre possível que o homem, por coacção ou por outras circunstâncias, seja impedido de levar a cabo determinadas acções boas; porém, nunca pode ser impedido de não fazer certas acções, sobretudo se ele está disposto a morrer antes que fazer o mal.

A Igreja sempre ensinou que nunca se devem escolher comportamentos proibidos pelos mandamentos morais, expressos de forma negativa no Antigo e no Novo Testamento. Como vimos, Jesus mesmo reitera a irrevogabilidade destas proibições: «Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos (...): não matarás; não cometerás adultério; não roubarás, não levantarás falso testemunho» (Mt 19, 17-18).

53. A grande sensibilidade, que o homem contemporâneo testemunha pela historicidade e pela cultura, leva alguns a duvidar da imutabilidade da mesma lei natural, e consequentemente, da existência de «normas objectivas de moralidade» 96, válidas para todos os homens do presente e do futuro, como o foram já para os do passado: será possível afirmar como válidas universalmente para todos e sempre permanentes certas determinações racionais estabelecidas no passado, quando se ignorava o progresso que a humanidade haveria de fazer posteriormente?

Não se pode negar que o homem sempre existe dentro de uma cultura particular, mas também não se pode negar que o homem não se esgota nesta mesma cultura. De resto, o próprio progresso das culturas demonstra que, no homem, existe algo que transcende as culturas. Este «algo» é precisamente a natureza do homem: esta natureza é exactamente a medida da cultura, e constitui a condição para que o homem não seja prisioneiro de nenhuma das suas culturas, mas afirme a sua dignidade pessoal pelo viver conforme à verdade profunda do seu ser. Pôr em discussão os elementos estruturais permanentes do homem, conexos também com a própria dimensão corpórea, não só estaria em conflito com a experiência comum, mas tornaria incompreensível a referência que Jesus fez ao «princípio», precisamente onde o contexto social e cultural da época tinha deformado o sentido original e o papel de algumas normas morais (cf. Mt 19, 1-9). Neste sentido, a Igreja afirma que «subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre».97 É Ele o «Princípio» que, tendo assumido a natureza humana, a ilumina definitivamente nos seus elementos constitutivos e no seu dinamismo de caridade para com Deus e o próximo.98

Ocorre, sem dúvida, procurar e encontrar, para as normas morais universais e permanentes, a formulação mais adequada aos diversos contextos culturais, mais capaz de lhes exprimir incessantemente a actualidade histórica, de fazer compreender e interpretar autenticamente a sua verdade. Esta verdade da lei moral — como a do «depósito da fé» — explicita-se ao longo dos séculos: as normas que a exprimem, permanecem válidas em sua substância, mas devem ser precisadas e determinadas «eodem sensu eademque sententia » 99 conforme as circunstâncias históricas do Magistério da Igreja, cuja decisão é precedida e acompanhada pelo esforço de leitura e de formulação próprio da razão dos crentes e da reflexão teológica.100

II. A consciência e a verdade

O santuário do homem

54. A relação que existe entre a liberdade do homem e a lei de Deus tem a sua sede viva no «coração» da pessoa, ou seja, na sua consciência moral: «No fundo da própria consciência — escreve o Concílio Vaticano II — o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus: a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado (cf. Rm 2, 14-16)».101p> Por isso, o modo como se concebe a relação entre a liberdade e a lei está ligado intimamente com a interpretação que se atribui à consciência moral. Neste sentido, as tendências culturais acima indicadas, que contrapõem e separam entre si a liberdade e a lei, e exaltam idolatricamente a liberdade, conduzem a uma interpretação «criativa» da consciência moral, que se afasta da posição da tradição da Igreja e do seu Magistério.

55. Segundo a opinião de vários teólogos, a função da consciência teria sido reduzida, pelo menos num certo período do passado, a uma simples aplicação de normas morais gerais aos casos individuais da vida da pessoa. Mas, tais normas — dizem — não podem ser capazes de acolher e respeitar toda a irrepetível especificidade de cada um dos actos concretos das pessoas; podem, de algum modo, contribuir para uma justa avaliação da situação, mas não podem substituir as pessoas quando tomam uma decisão pessoal sobre o modo como comportar-se nos determinados casos particulares. Mais, a crítica acima indicada à interpretação tradicional da natureza humana e da sua importância para a vida moral induz alguns autores a afirmarem que estas normas não são tanto um critério objectivo vinculante para os juízos da consciência, como sobretudo uma perspectiva geral que ajuda o homem, numa primeira estimativa, a ordenar a sua vida pessoal e social. Além disso, eles põem em relevo a complexidade típica do fenómeno da consciência: esta relaciona-se profundamente com toda a esfera psicológica e afectiva e com os múltiplos influxos do ambiente social e cultural da pessoa. Por outro lado, exalta-se ao máximo o valor da consciência, que o próprio Concílio definiu «o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser».102 Esta voz — diz-se — induz o homem não tanto a uma observância meticulosa das normas universais, como sobretudo a uma assunção criativa e responsável das tarefas pessoais que Deus lhe confia.

Ao querer pôr em evidência o carácter «criativo» da consciência, alguns autores já não chamam os seus actos com o nome de «juízos», mas «decisões»: só assumindo «autonomamente» estas decisões é que o homem poderia alcançar a sua maturidade moral. Não falta mesmo quem considere que este processo de amadurecimento seria dificultado pela posição demasiado categórica, que, em muitas questões morais, assume o Magistério da Igreja, cujas intervenções seriam causa do despertar de inúteis conflitos de consciência nos fiéis.

56. Para justificar semelhantes posições, alguns propuseram uma espécie de duplo estatuto da verdade moral. Para além do nível doutrinal e abstracto, seria necessário reconhecer a originalidade de uma certa consideração existencial mais concreta. Esta, tendo em conta as circunstâncias e a situação, poderia legitimamente estabelecer excepções à regra geral permitindo desta forma cumprir praticamente, em boa consciência, aquilo que a lei moral qualifica como intrinsecamente mau. Deste modo, instala-se, em alguns casos, uma separação, ou até oposição entre a doutrina do preceito válido em geral e a norma da consciência individual, que decidiria, de facto, em última instância, o bem e o mal. Sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de soluções chamadas «pastorais», contrárias aos ensinamentos do Magistério, e justificar uma hermenêutica «criadora», segundo a qual a consciência moral não estaria de modo algum obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo particular.

É impossível não ver como, nestas posições, é posta em questão a identidade mesma da consciência moral, face à liberdade do homem e à lei de Deus. Apenas o esclarecimento precedente sobre a relação entre liberdade e lei, apoiada na verdade, torna possível o discernimento acerca desta interpretação «criativa» da consciência.

O juízo da consciência

57. O mesmo texto da Carta aos Romanos, que nos fez ver a essência da lei natural, também indica o sentido bíblico da consciência, especialmente na sua conexão específica com a lei: «Porque, quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente os preceitos da lei, não tendo eles lei, a si mesmos servem de lei. Deste modo, demonstram que o que a lei ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes testemunho disso a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os» (Rm 2, 14-15).

De acordo com as palavras de S. Paulo, a consciência, de certo modo, põe o homem perante a lei, tornando-se ela mesma «testemunha» para o homem: testemunha da sua fidelidade ou infidelidade relativamente à lei, ou seja, da sua essencial rectidão ou maldade moral. A consciência é a única testemunha: o que acontece na intimidade da pessoa fica velado aos olhos de quem vê de fora. Ela dirige o seu testemunho somente à própria pessoa. E, por sua vez, só esta conhece a própria resposta à voz da consciência.

58. Jamais se apreciará adequadamente a importância deste íntimo diálogo do homem consigo mesmo. Mas, na verdade, este é o diálogo do homem com Deus, autor da lei, modelo primeiro e fim último do homem. «A consciência — escreve S. Boaventura — é como o arauto de Deus e o seu mensageiro, e o que diz não o ordena de si própria mas como proveniente de Deus, à semelhança de um arauto quando proclama o édito do rei. E disto deriva o facto de a consciência ter a força de obrigar».103 Portanto, pode-se dizer que a consciência dá ao próprio homem o testemunho da sua rectidão ou da sua maldade, mas conjuntamente, e antes mesmo, é testemunho do próprio Deus, cuja voz e juízo penetram no íntimo do homem até às raízes da sua alma, chamando-o fortiter et suaviter à obediência: «A consciência moral não encerra o homem dentro de uma solidão intransponível e impenetrável, mas abre-o à chamada, à voz de Deus. Nisto, e em nada mais, se encontra todo o mistério e dignidade da consciência moral: em ser o lugar, o espaço santo no qual Deus fala ao homem».104

59. S. Paulo não se limita a reconhecer que a consciência faz de «testemunha», mas revela também o modo como ela cumpre uma tal função. Trata-se de «pensamentos», que acusam ou defendem os gentios relativamente aos seus comportamentos (cf. Rm 2, 15). O termo «pensamentos» põe em evidência o carácter próprio da consciência, o de ser um juízo moral sobre o homem e sobre os seus actos: é um juízo de absolvição ou de condenação, segundo os actos humanos são ou não conformes com a lei de Deus inscrita no coração. E é precisamente acerca do julgamento dos actos e, simultaneamente, do seu autor e do momento da sua definitiva actuação que fala o Apóstolo, no mesmo texto: «Como se verá no dia em que Deus julgar, por Jesus Cristo, as acções secretas dos homens, segundo o meu Evangelho» (Rm 2, 16).

O juízo da consciência é um juízo prático, ou seja, um juízo que dita aquilo que o homem deve fazer ou evitar, ou então avalia um acto já realizado por ele. É um juízo que aplica a uma situação concreta a convicção racional de que se deve amar e fazer o bem e evitar o mal. Este primeiro princípio da razão prática pertence à lei natural, mais, constitui o seu próprio fundamento, enquanto exprime aquela luz originária sobre o bem e o mal, reflexo da sabedoria criadora de Deus, que, como uma centelha indelével (scintilla animae), brilha no coração de cada homem. Mas, enquanto a lei natural põe em evidência as exigências objectivas e universais do bem moral, a consciência é a aplicação da lei ao caso particular, a qual se torna assim para o homem um ditame interior, uma chamada a realizar o bem na realidade concreta da situação. A consciência formula assim a obrigação moral à luz da lei natural: é a obrigação de fazer aquilo que o homem, mediante o acto da sua consciência, conhece como um bem que lhe é imposto aqui e agora. O carácter universal da lei e da obrigação não é anulado, antes fica reconhecido, quando a razão determina as suas aplicações na realidade concreta. O juízo da consciência afirma por último a conformidade de um certo comportamento concreto com a lei; ele formula a norma próxima da moralidade de um acto voluntário, realizando «a aplicação da lei objectiva a um caso particular».105

60. Tal como a mesma lei natural e cada conhecimento prático, também o juízo da consciência tem carácter imperativo: o homem deve agir de acordo com ele. Se o homem age contra esse juízo, ou realiza um determinado acto ainda sem a certeza da sua rectidão e bondade, é condenado pela própria consciência, norma próxima da moralidade pessoal. A dignidade desta instância racional e a autoridade da sua voz e dos seus juízos derivam da verdade sobre o bem e o mal moral, que aquela é chamada a escutar e a exprimir.

Esta verdade é indicada pela «lei divina», norma universal e objectiva da moralidade. O juízo da consciência não estabelece a lei, mas atesta a autoridade da lei natural e da razão prática face ao bem supremo, do qual a pessoa humana se sente atraída e acolhe os mandamentos: «A consciência não é uma fonte autónoma e exclusiva para decidir o que é bom e o que é mau; pelo contrário, nela está inscrito profundamente um princípio de obediência relacionado com a norma objectiva, que fundamenta e condiciona a conformidade das suas decisões com os mandamentos e as proibições que estão na base do comportamento humano».106

61. A verdade sobre o bem moral, declarada na lei da razão, é reconhecida prática e concretamente pelo juízo da consciência, o qual leva a assumir a responsabilidade do bem realizado e do mal cometido: se o homem comete o mal, o recto juízo da sua consciência permanece nele testemunha da verdade universal do bem, como também da malícia da sua escolha particular. Mas o veredicto da consciência permanece nele ainda como um penhor de esperança e de misericórdia: enquanto atesta o mal cometido, lembra também o perdão a pedir, o bem a praticar e a virtude a cultivar sempre, com a graça de Deus.

Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe à pessoa a obrigação de cumprir um determinado acto, revela-se o vínculo da liberdade com a verdade. Precisamente por isso a consciência se exprime com actos de «juízo» que reflectem a verdade do bem, e não com «decisões» arbitrárias. E a maturidade e responsabilidade daqueles juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu sujeito — medem-se, não pela libertação da consciência da verdade objectiva em favor de uma suposta autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por uma procura insistente da verdade deixando-se guiar por ela no agir.

Procurar a verdade e o bem

62. A consciência, como juízo de um acto, não está isenta da possibilidade de erro. «Não raro porém acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem, e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado».107 Com estas breves palavras, o Concílio oferece uma síntese da doutrina que a Igreja, ao longo dos séculos, elaborou sobre a consciência errónea.

Sem dúvida, o homem, para ter uma «boa consciência» (1 Tim 1, 5), deve procurar a verdade e julgar segundo esta mesma verdade. Como diz o apóstolo Paulo, a consciência deve ser iluminada pelo Espírito Santo (cf. Rm 9, 1), deve ser «pura» (2 Tim 1, 3), não deve com astúcia adulterar a palavra de Deus, mas manifestar claramente a verdade (cf. 2 Cor 4, 2). Por outro lado, o mesmo Apóstolo adverte os cristãos, dizendo: «Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12, 2).

O aviso de Paulo convida-nos à vigilância, advertindo-nos de que, nos juízos da nossa consciência, sempre se esconde a possibilidade do erro. Ela não é um juiz infalível: pode errar. Todavia o erro da consciência pode ser fruto de uma ignorância invencível, isto é, de uma ignorância de que o sujeito não é consciente e donde não pode sair sozinho.

Quando essa ignorância invencível não é culpável, lembra-nos o Concílio, a consciência não perde a sua dignidade, porque ela, mesmo orientando-nos efectivamente de um modo discordante com a ordem moral objectiva, não deixa de falar em nome daquela verdade do bem que o sujeito é chamado a procurar sinceramente.

63. De qualquer forma, é sempre da verdade que deriva a dignidade da consciência: no caso da consciência recta, trata-se da verdade objectiva acolhida pelo homem; no da consciência errónea, trata-se daquilo que o homem errando considera subjectivamente verdadeiro. Nunca é aceitável confundir um erro «subjectivo» acerca do bem moral com a verdade «objectiva», racionalmente proposta ao homem em virtude do seu fim, nem equiparar o valor moral do acto cumprido com uma consciência verdadeira e recta, àquele realizado seguindo o juízo de uma consciência errónea.108 O mal cometido por causa de uma ignorância invencível ou de um erro de juízo não culpável, pode não ser imputado à pessoa que o realiza; mas, também neste caso, aquele não deixa de ser um mal, uma desordem face à verdade do bem. Além disso, o bem não reconhecido não contribui para o crescimento moral da pessoa que o cumpre: não a aperfeiçoa nem serve para encaminhá-la ao supremo bem. Assim, antes de nos sentirmos facilmente justificados em nome da nossa consciência, deveríamos meditar nas palavras do Salmo: «Quem poderá discernir todos os erros? Purificai-me das faltas escondidas» (Sal 19, 13). Existem faltas que não conseguimos ver e que, não obstante, permanecem culpáveis, porque nos recusamos a caminhar para a luz (cf. Jo 9, 39-41).

A consciência, como juízo último concreto, compromete a sua dignidade quando é culpavelmente errónea, ou seja, «quando o homem não se preocupa de buscar a verdade e o bem, e quando a consciência se torna quase cega em consequência do hábito ao pecado».109 Jesus alude aos perigos da deformação da consciência, quando admoesta: «A lâmpada do corpo é o olho; se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará iluminado. Se, porém, o teu olho for mau, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!» (Mt 6, 22-23).

64. Nas palavras de Jesus agora referidas, encontramos também o apelo para formar a consciência, fazendo-a objecto de contínua conversão à verdade e ao bem. Análoga é a exortação do Apóstolo a não se conformar com a mentalidade deste mundo, mas a transformar-se pela renovação da própria mente (cf. Rm 12, 2). Na verdade, o «coração» convertido ao Senhor e ao amor do bem é a fonte dos juízos verdadeiros da consciência. Com efeito, «para poder conhecer a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (Rm 12, 2), é necessário o conhecimento da lei de Deus em geral, mas aquele não é suficiente: é indispensável uma espécie de «conaturalidade» entre o homem e o verdadeiro bem.110 Esta conaturalidade fundamenta-se e desenvolve-se nos comportamentos virtuosos do mesmo homem: a prudência e as outras virtudes cardeais, e, antes ainda as virtudes teologais da fé, esperança e caridade. Neste sentido, disse Jesus: «Quem pratica a verdade aproxima- -se da luz» (Jo 3, 21).

Uma grande ajuda para a formação da consciência têm-na os cristãos, na Igreja e no seu Magistério, como afirma o Concílio: «Os fiéis, por sua vez, para formarem a sua própria consciência, devem atender diligentemente à doutrina sagrada e certa da Igreja. Pois, por vontade de Cristo, a Igreja Católica é mestra da verdade, e tem por encargo dar a conhecer e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declara e confirma, com a sua autoridade, os princípios de ordem moral que dimanam da natureza humana».111 Portanto, a autoridade da Igreja, que se pronuncia sobre as questões morais, não lesa de modo algum a liberdade de consciência dos cristãos: não apenas porque a liberdade da consciência nunca é liberdade «da» verdade, mas sempre e só «na» verdade; mas também porque o Magistério não apresenta à consciência cristã verdades que lhe são estranhas, antes manifesta as verdades que deveria já possuir, desenvolvendo-as a partir do acto originário da fé. A Igreja põe-se sempre e só ao serviço da consciência, ajudando-a a não se deixar levar cá e lá por qualquer sopro de doutrina, ao sabor da maldade dos homens (cf. Ef 4, 14), a não se desviar da verdade sobre o bem do homem, mas, especialmente nas questões mais difíceis, a alcançar com segurança a verdade e a permanecer nela.

III. A opção fundamental e os comportamentos concretos

«Não tomeis, porém, a liberdade, como pretexto para servir a carne» (Gál 5, 13)

65. O interesse pela liberdade, hoje particularmente sentido, induz muitos estudiosos de ciências, quer humanas quer teológicas, a desenvolver uma análise mais profunda da sua natureza e dos seus dinamismos. Salienta-se acertadamente que a liberdade não é só a escolha desta ou daquela acção particular; mas é também, dentro duma tal escolha, decisão sobre si mesmo e determinação da própria vida a favor ou contra o Bem, a favor ou contra a Verdade, em última análise, a favor ou contra Deus. Justamente se destaca a elevada importância de algumas opções, que dão «forma» a toda a vida moral de um homem, configurando-se como o sulco dentro do qual poderão encontrar espaço e incremento as demais escolhas quotidianas particulares.

Alguns autores, porém, propõem uma revisão bem mais radical da relação entre pessoa e actos. Falam de uma «liberdade fundamental», mais profunda e diversa da liberdade de escolha, fora da qual não se poderiam compreender nem julgar correctamente os actos humanos. De acordo com esses autores, o papel chave na vida moral deveria ser atribuído a uma «opção fundamental», actuada por aquela liberdade fundamental, com que a pessoa decide globalmente de si própria, não através de uma escolha determinada e consciente a nível reflexo, mas de maneira «transcendental» e «atemática». Os actos particulares, derivados desta opção, constituiriam somente tentativas parciais e nunca decisivas de exprimi-la, seriam apenas «sinais» ou sintomas dela. Objecto imediato destes actos — diz-se — não é o Bem absoluto (diante do qual se exprimiria, a nível transcendental, a liberdade da pessoa), mas são os bens particulares (também chamados «categoriais»). Ora, segundo a opinião de alguns teólogos, nenhum destes bens, por sua natureza parciais, poderia determinar a liberdade do homem como pessoa na sua totalidade, mesmo que o homem só pudesse exprimir a própria opção fundamental, mediante a sua realização ou a sua recusa.

Deste modo, chega-se a introduzir uma distinção entre a opção fundamental e as escolhas deliberadas de um comportamento concreto, uma distinção que, nalguns autores, assume a forma de uma separação, já que eles restringem expressamente o «bem» e o «mal» moral à dimensão transcendental própria da opção fundamental, qualificando como «justas» ou «erradas» as escolhas de comportamentos particulares «intramundanos», isto é, referentes às relações do homem consigo próprio, com os outros e com o mundo das coisas. Parece assim delinear-se, no interior do agir humano, uma cisão entre dois níveis de moralidade: por um lado, a ordem do bem e do mal que depende da vontade, e, por outro, os comportamentos determinados, que são julgados como moralmente justos ou errados, somente em função de um cálculo técnico da proporção entre bens e males «pré-morais» ou «físicos», que efectivamente resultam da acção. E isto até ao ponto de um comportamento concreto, mesmo escolhido livremente, ser considerado como um processo simplesmente físico, e não segundo os critérios próprios de um acto humano. O resultado a que se chega, é reservar a qualificação propriamente moral da pessoa à opção fundamental, subtraindo-a total ou parcialmente à escolha dos actos particulares, dos comportamentos concretos.

66. Não há dúvida que a doutrina moral cristã, em suas mesmas raízes bíblicas, reconhece a importância específica de uma opção fundamental que qualifica a vida moral e que compromete radicalmente a liberdade diante de Deus. Trata-se da escolha da fé, da obediência da fé (cf. Rm 16, 26), pela qual «o homem entrega-se total e livremente a Deus prestando "a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade"».112 Esta fé, que opera mediante a caridade (cf. Gál 5, 6), provém do mais íntimo do homem, do seu «coração» (cf. Rm 10, 10), e daí é chamada a frutificar nas obras (cf. Mt 12, 33-35; Lc 6, 43-45; Rm 8, 5-8; Gál 5, 22). No Decálogo ao início dos diversos mandamentos, aparece a cláusula fundamental: «Eu sou o Senhor, teu Deus...» (Êx 20, 2), a qual, imprimindo o sentido original às múltiplas e variadas prescrições particulares, assegura à moral da Aliança uma fisionomia de globalidade, unidade e profundidade. A opção fundamental de Israel refere-se então ao mandamento fundamental (cf. Jos 24, 14-25; Êx 19, 3-8; Miq 6, 8). Também a moral da Nova Aliança está dominada pelo apelo fundamental de Jesus para O «seguir» — assim diz Ele ao jovem: «Se queres ser perfeito (...) vem e segue-me» (Mt 19, 21) —: a este apelo, o discípulo responde com uma decisão e escolha radical. As parábolas evangélicas do tesouro e da pérola preciosa, pela qual se vende tudo o que se possui, são imagens eloquentes e efectivas do carácter radical e incondicionado da opção exigida pelo Reino de Deus. A radicalidade da escolha de seguir Jesus está maravilhosamente expressa nas suas palavras: «O que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á» (Mc 8, 35).

O apelo de Jesus «vem e segue-Me» indica a máxima exaltação possível da liberdade do homem e, ao mesmo tempo, atesta a verdade e a obrigação de actos de fé e de decisões que se podem designar como opção fundamental. Uma análoga exaltação da liberdade humana, encontramo-la nas palavras de S. Paulo: «Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade» (Gál 5, 13). Mas o Apóstolo acrescenta imediatamente uma grave admoestação: «Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne». Nesta advertência, ressoam as suas palavras precedentes: «Cristo nos libertou, para que permaneçamos livres. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão» (Gál 5, 1).

O apóstolo Paulo convida-nos à vigilância: a liberdade está sempre ameaçada pela insídia da escravidão. E é precisamente este o caso de um acto de fé — no sentido de uma opção fundamental — que seja separado da escolha dos actos particulares, conforme opinavam as tendências acima recordadas.

67. Estas tendências são, pois, contrárias ao ensinamento bíblico, que concebe a opção fundamental como uma verdadeira e própria escolha da liberdade e une profundamente uma tal escolha com os actos particulares. Pela opção fundamental, o homem é capaz de orientar a sua vida e tender, com a ajuda da graça, para o seu fim, seguindo o apelo divino. Mas esta capacidade exercita-se, de facto, nas escolhas particulares de actos determinados, pelos quais o homem se conforma deliberadamente com a vontade, a sabedoria e a lei de Deus. Portanto, deve-se afirmar que a chamada opção fundamental, na medida em que se diferencia de uma intenção genérica e, por conseguinte, ainda não determinada numa forma vinculante da liberdade, realiza-se sempre através de escolhas conscientes e livres. Precisamente por isso, ela fica revogada quando o homem compromete a sua liberdade em escolhas conscientes de sentido contrário, relativas a matéria moral grave.

Separar a opção fundamental dos comportamentos concretos, significa contradizer a integridade substancial ou a unidade pessoal do agente moral no seu corpo e alma. Uma opção fundamental, que não considere explicitamente as potencialidades que põe em acto e as determinações que a exprimem, não se ajusta à finalidade racional imanente ao agir do homem e a cada uma das suas escolhas deliberadas. Na verdade, a moralidade dos actos humanos não se deduz somente da intenção, da orientação ou opção fundamental, interpretada no sentido de uma intenção vazia de conteúdos vinculantes bem determinados ou de uma intenção à qual não corresponda um esforço real nas distintas obrigações da vida moral. A moralidade não pode ser julgada, se se prescinde da conformidade ou oposição da escolha deliberada de um comportamento concreto relativamente à dignidade e à vocação integral da pessoa humana. Cada escolha implica sempre uma referência da vontade deliberada aos bens e aos males, indicados pela lei natural como bens a praticar e males a evitar. No caso dos preceitos morais positivos, a prudência tem sempre a função de verificar a sua oportunidade numa determinada situação, por exemplo tendo em conta outros deveres quem sabe mais importantes ou urgentes. Mas os preceitos morais negativos, ou seja, os que proibem alguns actos ou comportamentos concretos como intrinsecamente maus, não admitem qualquer legítima excepção; eles não deixam nenhum espaço moralmente aceitável para a «criatividade» de qualquer determinação contrária. Uma vez reconhecida, em concreto, a espécie moral de uma acção proibida por uma regra universal, o único acto moralmente bom é o de obedecer à lei moral e abster-se da acção que ela proibe.

68. Deve-se acrescentar aqui uma importante consideração pastoral. Pela lógica das posições acima descritas, o homem poderia, em virtude de uma opção fundamental, permanecer fiel a Deus, independentemente da conformidade ou não de algumas das suas escolhas e dos seus actos determinados com as normas ou regras morais específicas. Devido a uma opção originária pela caridade, o homem poderia manter-se moralmente bom, perseverar na graça de Deus, alcançar a própria salvação, mesmo se alguns dos seus comportamentos concretos fossem deliberada e gravemente contrários aos mandamentos de Deus, reafirmados pela Igreja.

Na verdade, o homem não se perde só pela infidelidade àquela opção fundamental, pela qual ele se entregou «total e deliberadamente a Deus».113 Em cada pecado mortal cometido deliberadamente, ele ofende a Deus que deu a lei e torna-se, portanto, culpável perante toda a lei (cf. Tg 2, 8-11); mesmo conservando- -se na fé, ele perde a «graça santificante», a «caridade» e a «bem-aventurança eterna».114 «A graça da justificação — ensina o Concílio de Trento —, uma vez recebida, pode ser perdida não só pela infidelidade que faz perder a mesma fé, mas também por qualquer outro pecado mortal».115

Pecado mortal e venial

69. As considerações em torno da opção fundamental induziram, como acabamos de ver, alguns teólogos a submeterem também a profunda revisão a distinção tradicional entre pecados mortais e pecados veniais. Eles sublinham que a oposição à lei de Deus, que causa a perda da graça santificante — e, no caso de morte neste estado de pecado, a eterna condenação — pode ser somente o fruto de um acto que empenhe a pessoa na sua totalidade, isto é, um acto de opção fundamental. Segundo esses teólogos, o pecado mortal, que separa o homem de Deus, verificar-se-ia somente na rejeição de Deus, feita a um nível da liberdade que não é identificável com um acto de escolha, nem alcançável com consciência reflexa. Neste sentido — acrescentam —, é difícil, pelos menos psicologicamente, aceitar o facto de que um cristão, que quer permanecer unido a Jesus Cristo e à Sua Igreja, possa cometer pecados mortais tão fácil e repetidamente, como indicaria, às vezes, a mesma «matéria» dos seus actos. Seria igualmente difícil aceitar que o homem é capaz, num breve espaço de tempo, de romper radicalmente o ligame de comunhão com Deus e, sucessivamente, converter-se a Ele por uma sincera penitência. É necessário, portanto, — dizem — medir a gravidade do pecado mais pelo grau de empenho da liberdade da pessoa que realiza um acto do que pela matéria de tal acto.

70. A Exortação Apostólica pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia reiterou a importância e a permanente actualidade da distinção entre pecados mortais e veniais, conforme a tradição da Igreja. E o Sínodo dos Bispos de 1983, donde procedia tal Exortação, «não só reafirmou tudo o que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado».116

A afirmação do Concílio de Trento não considera só a «matéria grave» do pecado mortal, mas lembra também, como sua condição necessária, «a plena advertência e o consentimento deliberado». De resto, quer na teologia moral quer na prática pastoral, são bem conhecidos os casos onde um acto grave, por causa da sua matéria, não constitui pecado mortal devido à falta de plena advertência ou do consentimento deliberado de quem o realiza. Por outro lado, «há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de"opção fundamental" — como hoje em dia se costuma dizer — contra Deus», entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo, quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. «Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida, verificar- -se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas, da consideração da esfera psicológica, não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da "opção fundamental", entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional de pecado mortal».117

Deste modo, a separação entre opção fundamental e escolhas deliberadas de determinados comportamentos — desordenados em si próprios ou nas circunstâncias — que não a poriam em causa, supõe o desconhecimento da doutrina católica sobre o pecado mortal: «Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado mortal a este acto, pelo qual o homem, com liberdade e advertência rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo; ou de modo equivalente, como em qualquer desobediência aos mandamentos de Deus em matéria grave».118

IV. O acto moral

Teleologia e teleologismo

71. A relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus, que encontra a sua sede íntima e viva na consciência moral, manifesta-se e realiza-se nos actos humanos. É precisamente através dos seus actos que o homem se aperfeiçoa como homem, como homem chamado a procurar espontaneamente o seu Criador e a chegar livremente, pela adesão a Ele, à perfeição total e beatífica.119

Os actos humanos são actos morais, porque exprimem e decidem a bondade ou malícia do homem que realiza aqueles actos.120 Eles não produzem apenas uma mudança do estado das coisas externas ao homem, mas, enquanto escolhas deliberadas, qualificam moralmente a pessoa que os faz e determinam a sua profunda fisionomia espiritual, como sublinha sugestivamente S. Gregório de Nissa: «Todos os seres sujeitos a transformação nunca ficam idênticos a si próprios, mas passam continuamente de um estado a outro por uma mudança que sempre se dá, para o bem ou para o mal (...) Ora, estar sujeito a mudança é nascer continuamente (...) Mas aqui o nascimento não acontece por uma intervenção alheia, como se dá nos seres corpóreos (...) Aquele é o resultado de uma livre escolha e nós somos assim, de certo modo, os nossos próprios pais, ao criarmo-nos como queremos, e, pela nossa escolha, dotarmo-nos da forma que queremos».121

72. A moralidade dos actos é definida pela relação da liberdade do homem com o bem autêntico. Um tal bem é estabelecido como lei eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei eterna é conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é «lei natural»), como — de modo integral e perfeito — através da revelação sobrenatural de Deus (sendo assim chamada «lei divina»). O agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no Qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita. A pergunta inicial da conversa do jovem com Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» (Mt 19, 16), põe imediatamente em evidência o nexo essencial entre o valor moral de um acto e o fim último do homem. Na sua resposta, Jesus confirma a convicção do seu interlocutor: a realização de actos bons, mandados por Aquele que «só é bom», constitui a condição indispensável e o caminho para a bem-aventurança eterna: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17). A resposta de Jesus com o apelo aos mandamentos manifesta também que o caminho para o fim último está assinalado pelo respeito das leis divinas que tutelam o bem humano. Só o acto conforme ao bem pode ser caminho que conduz à vida.

A ordenação racional do acto humano para o bem na sua verdade e a procura voluntária deste bem, conhecido pela razão, constituem a moralidade. Portanto, o agir humano não pode ser considerado como moralmente bom só porque destinado a alcançar este ou aquele objectivo que persegue, ou simplesmente porque a intenção do sujeito é boa.122 O agir é moralmente bom, quando atesta e exprime a ordenação voluntária da pessoa para o fim último e a conformidade da acção concreta com o bem humano, tal como é reconhecido na sua verdade pela razão. Se o objecto da acção concreta não está em sintonia com o verdadeiro bem da pessoa, a escolha de tal acção torna a nossa vontade e nós próprios moralmente maus e, portanto, põe-nos em contraste com o nosso fim último, o bem supremo, isto é, o próprio Deus.

73. O cristão, pela Revelação de Deus e pela fé, conhece a «novidade» que caracteriza a moralidade dos seus actos; estes são chamados a exprimir a coerência ou a sua falta relativamente àquela dignidade e vocação, que lhe foram dadas pela graça: em Jesus Cristo e no Seu Espírito, o cristão é «criatura nova», filho de Deus, e, mediante os seus actos, manifesta a sua conformidade ou discordância com a imagem do Filho que é o primogénito entre muitos irmãos (cf. Rm 8, 29), vive a sua fidelidade ou infidelidade ao dom do Espírito e abre-se ou fecha-se à vida eterna, à comunhão de visão, de amor e de bem-aventurança com Deus Pai, Filho e Espírito Santo.123 Cristo «forma-nos à sua imagem — escreve S. Cirilo de Alexandria —, de modo a fazer brilhar em nós os traços da sua natureza divina mediante a santificação, a justiça, e a rectidão de uma vida conforme à virtude (...) Assim, a beleza desta imagem incomparável resplandece em nós, que estamos em Cristo, e nos revelamos pessoas de bem pelas nossas obras».124

Neste sentido, a vida moral possui um essencial carácter «teleológico», visto que consiste na ordenação deliberada dos actos humanos para Deus, sumo bem e fim (telos) último do homem. Comprova-o, mais uma vez, a pergunta do jovem a Jesus: «Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?». Mas esta ordenação ao fim último não é uma dimensão subjectivista, que depende só da intenção. Ela pressupõe que aqueles actos sejam em si próprios ordenáveis a um tal fim, enquanto conformes ao autêntico bem moral do homem, tutelado pelos mandamentos. É o que lembra Jesus na resposta ao jovem: «Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos» (Mt 19, 17).

Evidentemente deve ser uma ordenação racional e livre, consciente e deliberada, baseado na qual o homem é «responsável» dos seus actos e está sujeito ao juízo de Deus, juiz justo e bom, que premeia o bem e castiga o mal, como nos lembra o apóstolo Paulo: «Todos, com efeito, havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo» (2 Cor 5, 10).

74. Mas de que depende a qualificação moral do livre agir do homem? Esta ordenação a Deus dos actos humanos, por que é assegurada? Pela intenção do sujeito que age, pelascircunstâncias — e, em particular, pelas consequências — do seu agir, pelo próprio objecto do seu acto?

Este é o problema tradicionalmente chamado das «fontes da moralidade». Precisamente a respeito de tal problema, nestes decénios manifestaram-se — ou reconstituiram-se — novas tendências culturais e teológicas que exigem um cuidadoso discernimento por parte do Magistério da Igreja.

Algumas teorias éticas, denominadas «teleológicas», mostram-se atentas à conformidade dos actos humanos com os fins procurados pelo agente e com os valores que ele tem em vista. Os critérios para avaliar a rectidão moral de uma acção são deduzidos da ponderação dos bens não morais ou pré-morais a conseguir e dos correspondentes valores não morais ou pré-morais a respeitar. Para alguns, o comportamento concreto seria justo ou errado, segundo pudesse ou não produzir um melhor estado de coisas para todas as pessoas interessadas: seria justo o comportamento em grau de «maximizar» os bens e «minimizar» os males.

Muitos dos moralistas católicos, que seguem esta orientação, procuram distanciar-se do utilitarismo e do pragmatismo, que avaliam a moralidade dos actos humanos sem fazer referência ao verdadeiro fim último do homem. Aqueles sentem justamente a necessidade de encontrar argumentações racionais, sempre mais consistentes, para justificar as exigências e fundamentar as normas da vida moral. Tal pesquisa é legítima e necessária, visto que a ordem moral, estabelecida pela lei natural, é, em princípio, acessível à razão humana. Além disso, é uma pesquisa que corresponde às exigências do diálogo e colaboração com os não-católicos e os não-crentes, especialmente nas sociedades pluralistas.

75. Mas, no âmbito do esforço de elaborar essa moral racional — por isso mesmo, às vezes, chamada «moral autónoma» —, existem falsas soluções, ligadas em particular a uma inadequada compreensão do objecto do agir moral. Alguns não têm em suficiente consideração o facto de que a vontade fica comprometida com as escolhas concretas que realiza: estas são condição da sua bondade moral e da sua ordenação para o fim último da pessoa. Outros, ainda, inspiram-se num conceito da liberdade que prescinde das condições efectivas do seu exercício, da sua referência objectiva à verdade sobre o bem, da sua determinação através de escolhas de comportamentos concretos. Assim, segundo estas teorias, a vontade livre não estaria moralmente sujeita a obrigações determinadas, nem modelada pelas suas opções, embora permanecesse responsável pelos próprios actos e pelas suas consequências. Este «teleologismo», como método para a descoberta da norma moral, pode então ser chamado — segundo as terminologias e perspectivas adoptadas pelas distintas correntes de pensamento — «consequencialismo» ou «proporcionalismo». O primeiro pretende deduzir os critérios da rectidão de um determinado agir somente a partir do cálculo das consequências que se prevêem derivar da execução de uma opção. O segundo, ponderando entre si valores e bens procurados, centra-se mais na proporção reconhecida entre os efeitos bons e maus, em vista do «maior bem» ou do «menor mal» efectivamente possível numa situação particular.

As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo), apesar de reconhecerem que os valores morais são indicados pela razão e pela Revelação, consideram que nunca se poderá formular uma proibição absoluta de comportamentos determinados que estariam em contradição com aqueles valores, em toda e qualquer circunstância e cultura. O sujeito que age seria certamente responsável pela obtenção dos valores pretendidos, mas segundo um duplo aspecto: de facto, os valores ou bens implicados num acto humano seriam, por um lado, de ordem moral (relativamente a valores propriamente morais, como o amor de Deus, a benevolência para com o próximo, a justiça, etc.) e, por outro, de ordem pré-moral, também chamada não moral, física ou ôntica (relativamente às vantagens e desvantagens ocasionadas seja a quem age, seja a qualquer pessoa neles implicada antes ou depois, como por exemplo, a saúde ou a sua lesão, a integridade física, a vida, a morte, a perda de bens materiais, etc.). Num mundo onde o bem sempre estaria misturado com o mal e cada efeito bom ligado a outros efeitos maus, a moralidade do acto seria julgada de maneira diferenciada: a sua «bondade» moral, com base na intenção do sujeito referida aos bens morais, e a sua «rectidão», com base na consideração dos efeitos ou consequências previsíveis e da sua proporção. Consequentemente, os comportamentos concretos seriam qualificados como «rectos» ou «errados», sem que, por isso, fosse possível avaliar como moralmente «boa» ou «má» a vontade da pessoa que os escolhe. Deste modo, um acto, que, pondo-se em contradição com uma norma universal negativa, viola directamente bens considerados como «pré-morais», poderia ser qualificado como moralmente aceitável se a intenção do sujeito se concentrasse, graças a uma ponderação «responsável» dos bens implicados na acção concreta, sobre o valor moral considerado decisivo naquela circunstância.

A avaliação das consequências da acção, com base na proporção do acto com os seus efeitos e dos efeitos entre si, referir-se-ia apenas à ordem pré-moral. Quanto à especificidade moral dos actos, ou seja, quanto à sua bondade ou malícia, decidiria exclusivamente a fidelidade da pessoa aos valores mais altos da caridade e da prudência, sem que esta fidelidade fosse necessariamente incompatível com opções contrárias a certos preceitos morais particulares. Mesmo em matéria grave, estes últimos deveriam ser considerados como normas operativas, sempre relativas e susceptíveis de excepções.

Nesta perspectiva, o consentimento deliberado a certos comportamentos, declarados ilícitos pela moral tradicional, não implicaria uma malícia moral objectiva.

O objecto do acto deliberado

76. Estas teorias podem adquirir uma certa força persuasiva pela sua afinidade com a mentalidade científica, justamente preocupada em ordenar as actividades técnicas e económicas, baseada no cálculo dos recursos e lucros, dos processos e efeitos. Aquelas querem libertar das pressões de uma moral da obrigação, voluntarista e arbitrária, que se revelaria desumana.

Porém, tais teorias não são fiéis à doutrina da Igreja, já que crêem poder justificar como moralmente boas, escolhas deliberadas de comportamentos contrários aos mandamentos da lei divina e natural. Estas teorias não podem apelar à tradição moral católica: se é verdade que nesta última se desenvolveu uma casuística atenta a ponderar em algumas situações concretas as possibilidades maiores de bem, também é certo que isso se confinava apenas aos casos onde a lei era incerta, e portanto, não punha em discussão a validade absoluta dos preceitos morais negativos que obrigam sem excepções. Os fiéis hão-de reconhecer e respeitar os preceitos morais específicos, declarados e ensinados pela Igreja em nome de Deus, Criador e Senhor.125 Quando o apóstolo Paulo recapitula o cumprimento da lei no preceito de amar o próximo como a si mesmo (cf. Rm 13, 8-10), não atenua os mandamentos, mas antes, os confirma, dado que revela as suas exigências e gravidade. O amor de Deus e o amor do próximo são inseparáveis da observância dos mandamentos da Aliança, renovada no sangue de Jesus Cristo e no dom do Espírito. Os cristãos têm por própria honra obedecer a Deus antes que aos homens (cf. Act 4, 19; 5, 29) e, por isso, aceitar inclusive o martírio, como fizeram os santos e santas do Antigo e do Novo Testamento, assim reconhecidos por terem dado a sua vida antes que fazerem este ou aquele gesto particular contrário à fé ou à virtude.

77. Para oferecer os critérios racionais de uma justa decisão moral, as mencionadas teorias têm em conta a intenção e as consequências da acção humana. Certamente, num acto particular, há que tomar em grande consideração tanto a intenção — como insiste, com particular vigor, Jesus, em clara contraposição aos escribas e fariseus que prescreviam minuciosamente certas obras exteriores, sem atenderem ao coração (cf. Mc 7, 20-21; Mt 15, 19) — como os bens obtidos e os males evitados, em decorrência de um acto particular. Trata-se de uma exigência de responsabilidade. Mas a consideração destas consequências — como também das intenções — não é suficiente para avaliar a qualidade moral de uma opção concreta. A ponderação dos bens e dos males, previsíveis como consequência de uma acção, não é um método adequado para determinar se a escolha daquele comportamento concreto é «segundo a sua espécie», ou «em si mesma», moralmente boa ou má, lícita ou ilícita. As consequências previsíveis pertencem àquelas circunstâncias do acto, que, embora podendo modificar a gravidade de um acto mau, não podem, porém, mudar a sua espécie moral.

Aliás, cada um conhece as dificuldades — ou melhor, a impossibilidade — de avaliar todas as consequências e todos os efeitos bons ou maus — definidos pré-morais — dos próprios actos: não é possível um cálculo racional exaustivo. Então, como fazer para estabelecer proporções que dependem de uma avaliação, cujos critérios permanecem obscuros? De que modo se poderá justificar uma obrigação absoluta sobre cálculos tão discutíveis?

78. A moralidade do acto humano depende primária e fundamentalmente do objecto razoavelmente escolhido pela vontade deliberada, como prova também a profunda análise, ainda hoje válida, de S. Tomás.126 Para poder identificar o objecto de um acto que o especifica moralmente, ocorre, pois, colocar-se na perspectiva da pessoa que age. De facto, o objecto do acto da vontade é um comportamento livremente escolhido. Enquanto conforme à ordem da razão, ele é causa da bondade da vontade, aperfeiçoa-nos moralmente e dispõe-nos a reconhecer o nosso fim último no bem perfeito, o amor original. Portanto, não se pode considerar como objecto de um determinado acto moral, um processo ou um acontecimento de ordem meramente física, a avaliar enquanto provoca um determinado estado de coisas no mundo exterior. Aquele é o fim próximo de uma escolha deliberada, que determina o acto do querer da pessoa que age. Neste sentido, como ensina o Catecismo da Igreja Católica, «há comportamentos concretos pelos quais é sempre errado optar, porque tal opção inclui uma desordem da vontade, isto é, um mal moral».127 «De facto, é frequente — escreve o Aquinate — que alguém aja com recta intenção mas inutilmente, porque lhe falta a boa vontade: como no caso de alguém que roubasse para alimentar um pobre, a intenção é certamente boa, mas falta a devida rectidão da vontade. Consequentemente nenhum mal, mesmo realizado com recta intenção, pode ser desculpado: "Como aqueles que dizem: Façamos o mal, para vir o bem. Desses, é justa a condenação" (Rm 3, 8)».128

A razão pela qual não basta a recta intenção, mas ocorre também a recta escolha das obras, está no facto de que o acto humano depende do seu objecto, quer dizer, se este é ou não ordenável a Deus, Aquele que «só é bom», realizando assim a perfeição da pessoa. Portanto, o acto é bom, se o seu objecto é conforme ao bem da pessoa, no respeito dos bens moralmente significativos para ela. Assim, a ética cristã, que privilegia a atenção ao objecto moral, não recusa considerar a «teleologia» interior do agir, enquanto visa promover o verdadeiro bem da pessoa, mas reconhece que este só é realmente procurado quando se respeitam os elementos essenciais da natureza humana. O acto humano, bom segundo o seu objecto, é também ordenável ao fim último. O mesmo acto alcança, depois, a sua perfeição última e decisiva, quando a vontade o ordena efectivamente para Deus mediante a caridade. Neste sentido, ensina o Patrono dos moralistas e dos confessores: «Não basta fazer boas obras, é preciso fazê-las bem. Para que as nossas obras sejam boas e perfeitas, é necessário fazê-las com o mero fim de agradar a Deus».129

O «mal intrínseco»: não é lícito praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8)

79. Deve-se, portanto, rejeitar a tese, própria das teorias teleológicas e proporcionalistas, de que seria impossível qualificar como moralmente má segundo a sua espécie — o seu «objecto» —, a escolha deliberada de alguns comportamentos ou actos determinados, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas.

O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objecto do acto humano, o qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último que é Deus. Este ordenamento é identificado pela razão no mesmo ser do homem, considerado na sua verdade integral, e portanto, nas suas inclinações naturais, nos seus dinamismos e nas suas finalidades que têm sempre também uma dimensão espiritual: são exactamente estes os conteúdos da lei natural, e consequentemente o conjunto ordenado dos «bens para a pessoa» que se põem ao serviço do «bem da pessoa», daquele bem que é ela mesma e a sua perfeição. São estes os bens tutelados pelos mandamentos, os quais, segundo S. Tomás, contêm toda a lei natural.130

80. Ora, a razão atesta que há objectos do acto humano que se configuram como «não ordenáveis» a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à Sua imagem. São os actos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados «intrinsecamente maus» (intrinsece malum): são-no sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias. Por isso, sem querer minimamente negar o influxo que têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja ensina que «existem actos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto».131 O mesmo Concílio Vaticano II, no quadro do devido respeito pela pessoa humana, oferece uma ampla exemplificação de tais actos: «Tudo quanto se opõe à vida, como são todas as espécies de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador».132

Sobre os actos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas quais o acto conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: «Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8), ou seja, fazer objecto de um acto positivo de vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais».133

81. Ao ensinar a existência de actos intrinsecamente maus, a Igreja cinge-se à doutrina da Sagrada Escritura. O apóstolo Paulo afirma categoricamente: «Não vos enganeis: Nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem maldizentes, nem os que se dão à embriaguez, nem salteadores possuirão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9-10).

Se os actos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou circunstâncias particulares podem atenuar a sua malícia, mas não suprimi-la: são actos «irremediavelmente» maus, que por si e em si mesmos não são ordenáveis a Deus e ao bem da pessoa: «Quanto aos actos que, por si mesmos, são pecados (cum iam opera ipsa peccata sunt) — escreve S. Agostinho — como o furto, a fornicação, a blasfémia ou outros actos semelhantes, quem ousaria afirmar que, realizando-os por boas razões (causis bonis), já não seriam pecados ou, conclusão ainda mais absurda, que seriam pecados justificados?».134

Por isso, as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto «subjectivamente» honesto ou defensível como opção.

82. De resto, a intenção é boa quando visa o verdadeiro bem da pessoa na perspectiva do seu fim último. Mas os actos, cujo objecto é «não ordenável» a Deus e «indigno da pessoa humana», opõem-se sempre e em qualquer caso a este bem. Neste sentido, o respeito das normas que proibem tais actos e que obrigam semper et pro semper, ou seja, sem nenhuma excepção, não só não limita a boa intenção, mas constitui mesmo a sua expressão fundamental.

A doutrina do objecto como fonte da moralidade constitui uma explicitação autêntica da moral bíblica da Aliança e dos mandamentos, da caridade e das virtudes. A qualidade moral do agir humano depende desta fidelidade aos mandamentos, expressão de obediência e amor. É por isso — repetimo-lo — que se deve rejeitar como errónea a opinião que considera impossível qualificar moralmente como má segundo a sua espécie, a opção deliberada de alguns comportamentos ou de certos actos, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as pessoas interessadas. Sem esta determinação racional da moralidade do agir humano, seria impossível afirmar uma «ordem moral objectiva» 135 e estabelecer qualquer norma determinada, do ponto de vista do conteúdo, que obrigasse sem excepção; e isto reverteria em dano da fraternidade humana e da verdade sobre o bem, e em prejuízo também da comunhão eclesial.

83. Como se vê, na questão da moralidade dos actos humanos, e particularmente na da existência dos actos intrinsecamente maus, concentra-se, de certo modo, a própria questão do homem, da sua verdade e das consequências morais que daí derivam. Ao reconhecer e ensinar a existência do mal intrínseco em determinados actos humanos, a Igreja permanece fiel à verdade integral do homem, e, portanto, respeita-o e promove-o na sua dignidade e vocação. Consequentemente, ela deve recusar as teorias expostas acima, que estão em contraste com esta verdade.

Porém, é preciso que nós, Irmãos no Episcopado, não nos detenhamos só a admoestar os fiéis sobre os erros e os perigos de algumas teorias éticas. Devemos, antes de mais, mostrar o esplendor fascinante daquela verdade, que é Jesus Cristo. N'Ele, que é a Verdade (cf. Jo 14, 6), o homem pode compreender plenamente e viver perfeitamente, mediante os actos bons, a sua vocação à liberdade na obediência à lei divina, que se resume no mandamento do amor de Deus e do próximo. É o que acontece com o dom do Espírito Santo, Espírito de verdade, de liberdade e de amor: n'Ele, é- -nos concedido interiorizar a lei, percebê-la e vivê-la como o dinamismo da verdadeira liberdade pessoal: «a lei perfeita é a lei da liberdade» (Tg 1, 25).