A g n u s D e i

DUODECIM SAECULUM
João Paulo II
04.12.1987

III

8. A terrível "controvérsia sobre as imagens", que dilacerou o império bizantino sob os imperadores isáuricos Leão III e Constantino V, entre os anos de 730 e 780, e de novo sob Leão V, de 814 a 843, explica-se principalmente pelo debate teológico que, desde o início, foi o seu fulcro.

Sem ignorar o perigo de um ressurgimento sempre possível das praticas idolátricas do paganismo, a Igreja admitia que o Senhor, a Bem-aventurada Virgem Maria, os Mártires e os Santos fossem representados em formas pictóricas ou plásticas para favorecer a oração e a devoção dos fiéis. Era claro para todos, segundo a fórmula de São Basílio, recordada pelo Concílio Niceno II, que "a honra prestada ao ícone é dirigida ao protótipo"29. No Ocidente, o Papa São Gregório Magno tinha insistido no caráter didático das pinturas nas igrejas, úteis para que os analfabetos, "ao contemplá-las, possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros", e acentuava que esta contemplação devia levar à adoração da "única e onipotente Trindade Santíssima"30. Foi neste contexto que se desenvolveu, de maneira particular em Roma durante o século VIII, o culto das imagens dos Santos, dando lugar a uma produção artística admirável.

O movimento iconoclasta, rompendo com a tradição autêntica da Igreja, considerava a veneração das imagens como um retorno à idolatria. Não sem contradição e ambiguidade, ele proibia a representação de Cristo e as imagens religiosas em geral, enquanto continuava a admitir as imagens profanas, em particular as imagens do imperador, com os sinais de reverência que a elas andavam ligados. A base da argumentação dos iconoclastas era de natureza cristológica. Como pintar Cristo que unia na sua Pessoa, sem as confundir nem as separar, a natureza divina e a natureza humana? Por outro lado, seria impossível representar a sua divindade inapreensível; por outro, representá-l'O na sua humanidade somente seria dívidi-l'O separando n'Ele a divindade da humanidade. Escolher uma ou outra destas duas vias levaria às duas heresias cristológicas opostas do monofisismo e do nestorianismo. Com efeito, quem pretendesse representar Cristo na sua divindade condenar-se-ia a absorver nessa representação a sua humanidade; e quem mostrasse apenas um retrato de homem, acabaria por ocultar que ele é também Deus.

9. O dilema posto pelos iconoclastas envolvia algo que ia muito além da questão da possibilidade de uma arte cristã; punha em causa toda a visão cristã da realidade da Encarnação e, portanto, das relações de Deus com o mundo, e da graça com a natureza, numa palavra, a especificidade da "Nova Aliança", que Deus concluiu com os homens em Jesus Cristo. Os defensores das imagens advertiram muito bem isso: segundo uma expressão do Patriarca de Constantinopla São Germano, ilustre vítima da heresia iconoclasta, era toda "a economia divina segundo a carne"31 que era posta de novo em questão.

Com efeito, ver representado o rosto humano do Filho de Deus, "imagem de Deus invisível" (Cl 1,15), é ver o Verbo feito carne (cf. Jo 1,14), o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. Jo 1,29). Portanto, a arte pode representar a forma, a efígie do rosto humano de Deus e levar aquele que o contempla ao mistério inefável do mesmo Deus feito homem para a nossa salvação. Assim, o Papa Adriano pôde escrever: "Graças a um rosto visível, o nosso espírito será transportado, por um atrativo espiritual, até à majestade invisível da divindade, através da contemplação da imagem em que está representada a carne, que o Filho de Deus se dignou assumir para a nossa salvação. E, sendo assim, nós adoramos e conjuntamente louvamos, glorifificando-o em espírito, este mesmo Redentor, porque, como está escrito, 'Deus éEspírito' e é por isso que nós adoramos espiritualmente a sua divindade"32.

O Concílio Niceno II, portanto, reafirmou solenemente a distinção tradicional entre "a verdadeira adoração (latria)" que, "segundo a nossa fé, é devida somente à natureza divina" e "a prosternação de honra" (timetiké proskynesis), que é prestada aos icones, porque "aquele que se prostra diante do icone, prostra-se diante da pessoa (a hipóstase) daquele que na figuração é representado"33.

A iconografia de Cristo implica, portanto, toda a fé na realidade da Encarnação e no seu significado inexaurível para a Igreja e para o mundo. Se a Igreja costuma pô-la em prática, fá-lo porque está convencida que o Deus revelado em Jesus Cristo resgatou realmente e santificou a carne e o inteiro mundo sensível, ou seja, o homem com os seus cinco sentidos, a fim de lhe permitir renovar-se constantemente ''a imagem d'Aquele que o criou" (Cl 3,10).

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