A g n u s D e i

UT UNUM SINT
João Paulo II
25.05.1995

Parte III
QUANTA EST NOBIS VIA?

Continuar e intensificar o diálogo

77. Agora podemos interrogar-nos sobre quanta estrada nos separa ainda daquele dia abençoado, em que será alcançada a plena unidade na fé e poderemos então na concórdia concelebrar a santa Eucaristia do Senhor. O melhor conhecimento recíproco já conseguido entre nós, as convergências doutrinais alcançadas e que tiveram como conseqüência um crescimento afetivo e efetivo de comunhão, não podem bastar para a consciência dos cristãos que professam a Igreja una, santa, católica e apostólica. A finalidade última do movimento ecumênico é o restabelecimento da plena unidade visível de todos os batizados.

Na perspectiva desta meta, todos os resultados conseguidos até agora não passam de uma etapa, embora prometedora e positiva.

78. No movimento ecumênico, não são apenas a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas que possuem esta noção exigente da unidade querida por Deus. A tendência para tal unidade é expressa também por outros129.

O ecumenismo implica que as Comunidades cristãs se ajudem mutuamente, para que esteja verdadeiramente presente nelas todo o conteúdo e todas as exigências "da herança deixada pelos Apóstolos"130. Sem isso, a plena comunhão nunca será possível. Esta ajuda recíproca na busca da verdade é uma forma suprema da caridade evangélica.

A busca da unidade está expressa nos vários documentos das numerosas Comissões mistas internacionais de diálogo. Nesses textos, trata-se do Batismo, da Eucaristia, do Ministério e da Autoridade, partindo de uma certa unidade fundamental de doutrina.

Desta unidade fundamental, mas ainda parcial, deve-se agora passar àquela unidade visível, necessária e suficiente, que se inscreva na realidade concreta, para que as Igrejas realizem verdadeiramente o sinal daquela comunhão plena na Igreja una, santa, católica e apostólica, que se há de exprimir na concelebração eucarística.

Este caminho para a unidade visível necessária e suficiente, na comunhão da única Igreja querida por Cristo, exige ainda um trabalho paciente e corajoso. A fazê-lo, é preciso não impor outras obrigações fora das indispensáveis (cf. At 15,28).

79. Já desde agora, é possível individualizar os argumentos que ocorre aprofundar para se alcançar um verdadeiro consenso de fé: 1) as relações entre Sagrada Escritura, suprema autoridade em matéria de fé, e a Sagrada Tradição, indispensável interpretação da palavra de Deus; 2) a Eucaristia, sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, oferta de louvor ao Pai, memória sacrifical e presença real de Cristo, efusão santificadora do Espírito Santo; 3) a Ordem, como sacramento, para o tríplice ministério do episcopado, do presbiterado e do diaconado; 4) o Magistério da Igreja, confiado ao Papa e aos Bispos em comunhão com ele, concebido como responsabilidade e autoridade em nome de Cristo para o ensino e preservação da fé; 5) a Virgem Maria, Mãe de Deus e Ícone da Igreja, Mãe espiritual que intercede pelos discípulos de Cristo e pela humanidade inteira.

Neste corajoso caminho para a unidade, a lucidez e a prudência da fé impõem-nos evitar o falso irenismo e a negligência pelas normas da Igreja131. Mas, a mesma lucidez e prudência recomendam-nos fugir do desleixo no empenhamento pela unidade e, mais ainda, da oposição preconcebida ou do derrotismo que tende a ver tudo pelo negativo.

Manter uma visão da unidade que tenha em conta todas as exigências da verdade revelada, não significa pôr um freio ao movimento ecumênico132. Pelo contrário, significa evitar que ele se acomode a soluções aparentes, que não chegariam a nada de estável e sólido133. A exigência da verdade deve ser completamente respeitada. E não é, porventura, esta a lei do Evangelho?

Recepção dos resultados conseguidos

80. Enquanto prossegue o diálogo sobre novas temáticas ou se desenvolve a níveis mais profundos, temos uma tarefa nova a realizar: como receber os resultados conseguidos até agora. Estes não podem permanecer como simples afirmações das Comissões bilaterais, mas devem tornar-se patrimônio comum. Para que isto se verifique, reforçando assim os laços de comunhão, é preciso um sério exame que, segundo modos, formas e competências diversas, há de envolver todo o povo de Deus. De fato, trata-se de questões que, freqüentemente, dizem respeito à fé e, como tais, requerem o consenso universal, que se estende dos Bispos aos fiéis leigos, pois todos receberam a unção do Espírito Santo134. É o mesmo Espírito que assiste o Magistério e suscita o sensus fidei.

Para receber os resultados do diálogo impõe-se, portanto, um amplo e cuidadoso processo crítico que analise e verifique com rigor a sua coerência com a Tradição de fé, recebida dos Apóstolos e vivida na comunidade dos crentes reunida ao redor do Bispo, seu legítimo Pastor.

81. Este processo, que se há de efetuar com prudência e em atitude de fé, terá a assistência do Espírito Santo. Para que tenha êxito favorável, é necessário que os seus resultados sejam oportunamente divulgados por pessoas competentes. Para semelhante objetivo, é de grande importância o contributo que os teólogos e Faculdades de Teologia estão chamados a oferecer, no cumprimento do seu carisma na Igreja. Claro está que as comissões ecumênicas têm, a este respeito, responsabilidades e funções totalmente singulares.

Todo o processo é seguido e ajudado pelos Bispos e pela Santa Sé. A autoridade docente tem a responsabilidade de exprimir o juízo definitivo.

Em tudo isto, será de grande ajuda ater-se metodologicamente à distinção entre o depósito da fé e a formulação em que ele é expresso, como recomendava o Papa João XXIII no discurso pronunciado na abertura do Concílio Vaticano II135.

Continuar o ecumenismo espiritual e testemunhar a santidade

82. Compreende-se como a gravidade do compromisso ecumênico interpele profundamente os fiéis católicos. O Espírito convida-os a um sério exame de consciência. A Igreja Católica deve entrar naquilo que se poderia chamar "diálogo da conversão", no qual está posto o fundamento interior do diálogo ecumênico. Em tal diálogo, que se realiza diante de Deus, cada um deve procurar os próprios erros, confessar as suas culpas, e colocar-se nas mãos d'Aquele que é o Intercessor junto do Pai, Jesus Cristo.

Certamente, é nesta relação de conversão à vontade do Pai e, ao mesmo tempo, de penitência e de absoluta confiança no poder reconciliador da verdade que é Cristo, que se acha a força para levar a bom termo a longa e árdua peregrinação ecumênica. O "diálogo da conversão" de cada comunidade com o Pai, sem indulgência por si própria, é o fundamento de relações fraternas que sejam algo diverso de mero entendimento cordial ou de uma convivência simplesmente exterior. Os laços da koinônia fraterna hão de ser tecidos diante de Deus e em Cristo Jesus.

Somente o colocar-se diante de Deus pode oferecer uma base sólida para aquela conversão dos indivíduos cristãos e para aquela contínua reforma da Igreja, enquanto instituição também humana e terrena136, que constituem as condições preliminares de todo o empenho ecumênico. Um dos procedimentos fundamentais do diálogo ecumênico é o esforço de envolver as Comunidades cristãs neste espaço espiritual, completamente interior, onde Cristo, pelo poder do Espírito, as induz a todas, sem excepção, a examinarem-se diante do Pai e a interrogarem-se se foram fiéis ao seu desígnio sobre a Igreja.

83. Falei da vontade do Pai, do espaço espiritual onde cada comunidade escuta o apelo a superar os obstáculos à unidade. Pois bem, todas as Comunidades cristãs sabem que semelhante exigência e um tal superamento, graças à força que o Espírito dá, não estão fora do seu alcance. Com efeito, todas têm mártires da fé cristã137. Não obstante o drama da divisão, estes irmãos conservaram em si mesmos uma união a Cristo e a seu Pai tão radical que pôde chegar até ao derramamento do sangue. Mas não é, porventura, essa mesma união que é chamada em causa naquilo que classifiquei como "diálogo da conversão"? Não é, por acaso, este diálogo que sublinha a necessidade de seguir em toda a sua profundidade a experiência da verdade para a plena comunhão?

84. Numa visão teocêntrica, nós, cristãos, já temos um Martirológio comum. Este inclui também os mártires do nosso século, mais numerosos do que se pensa, e mostra como, a um nível profundo, Deus manteve entre os batizados a comunhão na exigência suprema da fé, manifestada com o sacrifício da vida138. Se se pode morrer pela fé, isso demonstra que se pode alcançar a meta, quando se trata de outras formas da mesma exigência. Já constatei, e com alegria, como a comunhão, imperfeita mas real, é mantida e cresce a muitos níveis da vida eclesial. Considero agora que ela seja já perfeita naquilo que todos nós consideramos o ápice da vida de graça, o martyria até à morte, a comunhão mais verdadeira que possa existir com Cristo que derrama o seu Sangue e, neste sacrifício, aproxima aqueles que outrora estavam longe (cf. Ef 2,13).

Se para todas as Comunidades cristãs os mártires são a prova do poder da graça, estes contudo não são os únicos que testemunham tal poder. Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão na comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação.

Quando se fala de um patrimônio comum, devem-se inserir nele não só as instituições, os ritos, os meios de salvação, as tradições que todas as Comunidades conservaram e pelas quais elas estão plasmadas, mas também, e em primeiro lugar, esta realidade da santidade139.

Na irradiação que dimana do "patrimônio dos santos" pertencentes a todas as Comunidades, o "diálogo da conversão" para a unidade plena e visível apresenta-se, então, sob uma luz de esperança. Esta presença universal dos santos dá, de fato, a prova da transcendência do poder do Espírito. Ela é sinal e prova da vitória de Deus sobre as forças do mal que dividem a humanidade. Justamente canta a liturgia essa intervenção vitoriosa de Deus nos santos: "ao coroar os seus méritos, coroais os vossos próprios dons"140.

Onde existe a vontade sincera de seguir Cristo, muitas vezes o Espírito consegue derramar a sua graça por sendas diversas daquelas ordinárias. A experiência ecumênica permitiu-nos compreendê-lo melhor. Se, no espaço espiritual interior que descrevi, as Comunidades souberem "converter-se" verdadeiramente à busca da comunhão plena e visível, Deus fará por elas aquilo que fez pelos seus santos. Ele saberá superar os obstáculos herdados do passado e conduzi-las-á, pelos seus caminhos, onde Ele quer: à koinônia visível que é, simultaneamente, louvor da sua glória e serviço ao seu desígnio de salvação.

85. Visto que, na sua infinita misericórdia, Deus pode tirar o bem até mesmo das situações que ofendem o seu desígnio, podemos então descobrir que o Espírito fez com que as oposições servissem, em algumas circunstâncias, para explicitar aspectos da vocação cristã, como sucede na vida dos santos. Apesar da divisão, que é um mal de que nos devemos curar, todavia realizou-se como que uma comunicação da riqueza da graça, que está destinada a embelezar a koinônia: a graça de Deus estará com todos aqueles que, seguindo o exemplo dos santos, se esforçam por favorecer as suas exigências. Como podemos nós hesitar em converter-nos aos anseios do Pai? Ele está conosco.

Contributo da Igreja Católica na busca da unidade dos cristãos

86. A Constituição Lumen gentium, numa afirmação fundamental que ressoa depois no Decreto Unitatis redintegratio141, escreve que a única Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica142. O Decreto sobre o ecumenismo sublinha a presença nela da plenitude (plenitudo) dos instrumentos de salvação143. A plena unidade realizar-se-á quando todos participarem da plenitude dos meios de salvação que Cristo confiou à sua Igreja.

87. Ao longo do caminho que leva à plena unidade, o diálogo ecumênico esforça-se por suscitar uma recíproca ajuda fraterna, por meio da qual as Comunidades se dedicam a dar mutuamente aquilo de que cada uma tem necessidade para crescer segundo o desígnio de Deus que leva à plenitude definitiva (cf. Ef 4,11-13). Como disse, nós, enquanto Igreja Católica, estamos conscientes de ter recebido muito do testemunho, da procura e mesmo até da maneira como foram sublinhados e vividos pelas outras Igrejas e Comunidades eclesiais certos bens cristãos comuns. Entre os progressos realizados durante os últimos trinta anos, há que atribuir um lugar de destaque a essa recíproca influência fraterna. Na etapa a que chegamos144, tal dinamismo de mútuo enriquecimento deve ser tomado seriamente em consideração. Baseado sobre a comunhão que já existe, graças aos elementos eclesiais presentes nas Comunidades cristãs, tal dinamismo não deixará de impelir para a comunhão plena e visível, meta suspirada do caminho que estamos realizando. É a forma ecumênica da lei evangélica da partilha. Isto me incita a repetir: "É preciso em tudo demonstrar o cuidado de ir ao encontro daquilo que os nossos irmãos cristãos, legitimamente, desejam e esperam de nós, conhecendo o seu modo de pensar e a sua sensibilidade (...). É necessário que os dons de cada um se desenvolvam para a utilidade e proveito de todos"145.

O ministério de unidade do Bispo de Roma

88. Entre todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o ministério do Sucessor do apóstolo Pedro, o Bispo de Roma, que Deus constituiu como "perpétuo e visível fundamento da unidade"146, e que o Espírito ampara para que torne participantes deste bem essencial todos os outros. Segundo a feliz expressão do Papa Gregório Magno, o meu ministério é o de servus servorum Dei. Esta definição preserva o melhor possível do risco de separar a potestade (e particularmente o primado) do ministério, o que estaria em contradição com o significado de potestade dado pelo Evangelho: "Eu estou no meio de vós como aquele que serve" (Lc 22,27), diz o Senhor nosso Jesus Cristo, Chefe da Igreja. Por outra parte, como pude afirmar por ocasião do encontro no Conselho Ecumênico das Igrejas, em Genebra, a 12 de Junho de 1984, a convicção da Igreja Católica de, na fidelidade à Tradição apostólica e à fé dos Padres, ter conservado, no ministério do Bispo de Roma, o sinal visível e o garante da unidade, constitui uma dificuldade para a maior parte dos outros cristãos, cuja memória está marcada por certas recordações dolorosas. Por quanto sejamos disso responsáveis, com o meu Predecessor Paulo VI imploro perdão147.

89. Todavia, é significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de Roma se tenha tornado atualmente objeto de estudo, imediato ou em perspectiva, e igualmente significativo e encorajador é que uma tal questão esteja presente como tema essencial não apenas nos diálogos teológicos que a Igreja Católica mantém com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico no conjunto do movimento ecumênico. Recentemente, os participantes na Vª Assembléia Mundial da Comissão "Fé e Constituição" do Conselho Ecumênico das Igrejas, realizada em Santiago de Compostela, recomendaram que ela "desse início a um novo estudo sobre a questão de um ministério universal da unidade cristã"148. Após séculos de duras polêmicas, as outras Igrejas e Comunidades eclesiais cada vez mais perscrutam com um novo olhar tal ministério de unidade149.

90. O Bispo de Roma é o Bispo da Igreja que conserva o testemunho do martírio de Pedro e de Paulo: "Por um misterioso desígnio da Providência, é em Roma que ele conclui o seu caminho de seguimento de Jesus, como é em Roma que dá esta máxima prova de amor e de fidelidade. Em Roma, Paulo, o Apóstolo dos Gentios, dá também o seu testemunho supremo. A Igreja de Roma tornava-se assim a Igreja de Pedro e de Paulo"150.

No Novo Testamento, a pessoa de Pedro ocupa um lugar proeminente. Na primeira parte dos Atos dos Apóstolos, aparece como chefe e porta-voz do colégio apostólico, designado como "Pedro (...) com os Onze" (2,14; cf. também 2,37; 5,29). O lugar atribuído a Pedro está fundado sobre as próprias palavras de Cristo, tal como são recordadas nas tradições evangélicas.

91. O Evangelho de Mateus traça e especifica a missão pastoral de Pedro na Igreja: "És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem te revelou, mas o meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos Céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos Céus" (16,17-19). Lucas põe em evidência que Cristo recomenda a Pedro de confirmar os irmãos, mas, ao mesmo tempo, faz-lhe conhecer a sua fraqueza humana e necessidade de conversão (cf. 22,31-32). É como se, sobre o horizonte da fraqueza humana de Pedro, se manifestasse plenamente que o seu particular ministério na Igreja provém totalmente da graça; é como se o Mestre se dedicasse de modo especial à sua conversão, a fim de o preparar para a tarefa que está para lhe confiar na sua Igreja, e fosse muito exigente com ele. A mesma função de Pedro, sempre ligada a uma realista afirmação da sua fraqueza, encontra-se no quarto Evangelho: "Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes? (...) Apascenta as minhas ovelhas" (cf. 21,15-19). Significativo é ainda que, segundo a primeira Carta de Paulo aos Coríntios, Cristo ressuscitado tenha aparecido a Cefas e em seguida aos doze (cf. 15,5).

É importante destacar como a fraqueza de Pedro e de Paulo manifeste que a Igreja se funda sobre o poder infinito da graça (cf. Mt 16,17; 2Cor 12,7-10). Pedro, logo a seguir à sua investidura, é repreendido, com rara severidade, por Cristo que lhe diz: "Tu és para Mim um estorvo" (Mt 16,23). Como não ver na misericórdia de que Pedro tem necessidade, uma relação com o ministério daquela misericórdia que ele primeiro entre todos experimentou? Igualmente, por três vezes ele negará Jesus. Também o Evangelho de João sublinha que Pedro recebe o encargo de apascentar o rebanho com uma tríplice profissão de amor (cf. 21,15-17), que corresponde à sua tríplice negação (cf. 13,38). Lucas, por sua vez, na palavra de Cristo já citada e à qual aderirá a primeira tradição com o intuito de delinear a missão de Pedro, insiste sobre o fato de que este deverá « confirmar os seus irmãos, uma vez convertido" (cf. Lc 22,31).

92. Quanto a Paulo, ele conclui a descrição do seu ministério com a surpreendente afirmação que lhe foi concedido ouvir dos lábios do Senhor: "Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela totalmente", podendo em seguida exclamar: "Quando me sinto fraco, então é que sou forte" (2Cor 12,9-10). Esta é uma característica fundamental da experiência cristã.

Herdeiro da missão de Pedro, na Igreja fecundada pelo sangue dos Príncipes dos Apóstolos, o Bispo de Roma exerce um ministério que tem a sua origem na misericórdia multiforme de Deus, a qual converte os corações e infunde a força da graça onde o discípulo sente o sabor amargo da sua fraqueza e miséria. A autoridade própria deste ministério está posta totalmente ao serviço do desígnio misericordioso de Deus e há de ser vista sempre nesta perspectiva. É que nela se explica o seu poder.

93. Ligado como está à tríplice profissão de amor de Pedro que corresponde à tríplice negação, o seu sucessor sabe que deve ser sinal de misericórdia. O seu ministério é um ministério de misericórdia, nascido de um ato de misericórdia de Cristo. Toda esta lição do Evangelho deve ser constantemente relida, para que o exercício do ministério petrino nada perca da sua autenticidade e transparência.

A Igreja de Deus é chamada por Cristo a manifestar a um mundo fechado no emaranhado das suas culpas e dos seus sinistros propósitos, que, apesar de tudo, Deus, na sua misericórdia, pode converter os corações à unidade, fazendo-os aceder à sua própria comunhão.

94. Este serviço da unidade, radicado na obra da misericórdia divina, está confiado, no seio mesmo do colégio dos Bispos, a um daqueles que receberam do Espírito o encargo, não de exercer o poder sobre o povo - como fazem os chefes das nações e os grandes (cf. Mt 20,25; Mc 10,42) -, mas de o guiar para que possa encontrar-se em pastagens tranqüilas. Tal encargo pode exigir a oferta da própria vida (cf. Jo 10,11-18). Depois de ter mostrado como Cristo é "o único Pastor, na unidade do qual todos são um só", Santo Agostinho exorta: "Estejam todos os pastores no único Pastor e proclamem a voz única do Pastor; oiçam as ovelhas esta voz e sigam o seu Pastor: não este ou aquele, mas o único Pastor. Apregoem todos com Ele uma só voz e não haja vozes diversas. (...) Oiçam as ovelhas esta voz, purificada de toda a divisão, livre de toda a heresia"151. A missão do Bispo de Roma no grupo de todos os Pastores consiste precisamente em "vigiar" (episkopein) como uma sentinela, de modo que, graças aos Pastores, se ouça em todas as Igrejas particulares a verdadeira voz de Cristo-Pastor. Assim, em cada uma das Igrejas particulares a eles confiadas, realiza-se a una, sancta, catholica et apostolica Ecclesia. Todas as Igrejas estão em comunhão plena e visível, porque todos os Pastores estão em comunhão com Pedro, e, desse modo, na unidade de Cristo.

Com o poder e autoridade sem os quais tal função seria ilusória, o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título, ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina, e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-lo em função dos próprios interesses. Tem o dever de advertir, premunir e, às vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquela opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda - em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio Vaticano I - declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé152. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve a unidade.

95. Mas tudo isto deve realizar-se sempre na comunhão. Quando a Igreja Católica afirma que a função do Bispo de Roma corresponde à vontade de Cristo, ela não separa esta função da missão confiada ao conjunto dos Bispos, também eles "vicários e legados de Cristo"153. O Bispo de Roma pertence ao seu "colégio", e eles são os seus irmãos no ministério.

Aquilo que diz respeito à unidade de todas as Comunidades cristãs, entra obviamente no âmbito das preocupações do primado. Como Bispo de Roma, sei bem - e confirmei-o na presente Carta encíclica - que a comunhão plena e visível de todas as Comunidades, nas quais em virtude da fidelidade de Deus habita o seu Espírito, é o desejo ardente de Cristo. Estou convicto de ter a este propósito uma responsabilidade particular, sobretudo quando constato a aspiração ecumênica da maior parte das Comunidades cristãs, e quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova. Durante um milênio, os cristãos estiveram unidos pela "fraterna comunhão da fé e da vida sacramental. Quando entre eles surgiam dissensões acerca da fé ou da disciplina, era a Sé de Roma quem, de comum acordo, as resolvia"154.

Desse modo, o primado exercia a sua função de unidade. Dirigindo-me ao Patriarca Ecumênico, Sua Santidade Dimítrios I, disse estar consciente de que, "por razões muito diferentes, e contra a vontade de uns e outros, o que era um serviço pôde manifestar-se sob uma luz bastante diversa. Mas (...) é com o desejo de obedecer verdadeiramente à vontade de Cristo que eu me reconheço chamado, como Bispo de Roma, a exercer este ministério (...). O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros"155.

96. Tarefa imensa, que não podemos recusar, mas que sozinho não posso levar a bom termo. A comunhão real, embora imperfeita, que existe entre todos nós, não poderia induzir os responsáveis eclesiais e os teólogos a instaurarem comigo, sobre este argumento, um diálogo fraterno, paciente, no qual nos pudéssemos ouvir, pondo de lado estéreis polêmicas, tendo em mente apenas a vontade de Cristo para a sua Igreja, deixando-nos penetrar do seu grito: "Que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste" (Jo 17,21)?

A comunhão de todas as Igrejas particulares com a Igreja de Roma: condição necessária para a unidade

97. A Igreja Católica, tanto na sua praxis como nos textos oficiais, sustenta que a comunhão das Igrejas particulares com a Igreja de Roma, e dos seus Bispos com o Bispo de Roma, é um requisito essencial - no desígnio de Deus - para a comunhão plena e visível. De fato, é necessário que a plena comunhão, de que a Eucaristia é a suprema manifestação sacramental, tenha a sua expressão visível num ministério em que todos os Bispos se reconheçam unidos em Cristo, e todos os fiéis encontrem a confirmação da própria fé. A primeira parte dos Atos dos Apóstolos apresenta Pedro como aquele que fala em nome do grupo apostólico e serve a unidade da comunidade - e isto no respeito da autoridade de Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém. Esta função de Pedro deve permanecer na Igreja para que, sob o seu único Chefe que é Cristo Jesus, ela seja no mundo, visivelmente, a comunhão de todos os seus discípulos.

Porventura não é um ministério deste gênero que muitos dos que estão empenhados no ecumenismo exprimem hoje a necessidade? Presidir na verdade e no amor, para que a barca - belo símbolo que o Conselho Ecumênico das Igrejas escolheu como seu emblema - não seja despedaçada pelas tempestades e possa chegar um dia ao porto desejado.

Plena unidade e evangelização

98. O movimento ecumênico do nosso século, mais do que as iniciativas ecumênicas dos séculos passados de que importa, contudo, não subestimar a importância, foi caracterizado por uma perspectiva missionária. No versículo joanino que serve de inspiração e motivo condutor - "que todos sejam um (...), para que o mundo creia que Tu Me enviaste" (Jo 17, 21)- foi sublinhada a frase para que o mundo creia com tal vigor que se corre o risco de esquecer, às vezes, que, no pensamento do evangelista, a unidade é sobretudo para a glória do Pai. De qualquer modo, é claro que a divisão dos cristãos está em contradição com a Verdade que têm a missão de difundir, comprometendo gravemente o seu testemunho. Bem o compreendera e afirmara o meu Predecessor, o Papa Paulo VI, na sua Exortação apostólica Evangelii nuntiandi: "Como evangelizadores, nós devemos apresentar aos fiéis de Cristo, não já a imagem de homens divididos e separados por litígios que nada edificam, mas sim a imagem de pessoas amadurecidas na fé, capazes de se encontrar para além de tensões que se verifiquem, graças à procura comum, sincera e desinteressada da verdade. Sim, a sorte da evangelização anda sem dúvida ligada ao testemunho de unidade dado pela Igreja (...). Nisto há de ser vista uma fonte de responsabilidade, como também de conforto. Quanto a este ponto, nós quereríamos insistir sobre o sinal da unidade entre todos os cristãos, como caminho e instrumento da evangelização. A divisão dos cristãos entre si é um estado de fato grave, que chega a afetar a própria obra de Cristo"156.

Na verdade, como anunciar o Evangelho da reconciliação, sem contemporaneamente se empenhar a agir pela reconciliação dos cristãos? Se é certo que a Igreja, pelo impulso do Espírito Santo e com a promessa da indefectibilidade, pregou e prega o Evangelho a todas as nações, é verdade também que ela tem de enfrentar as dificuldades provenientes das divisões. Perante missionários que estão em desacordo entre si, embora todos façam apelo a Cristo, saberão os incrédulos acolher a verdadeira mensagem? Não pensarão que o Evangelho é fator de divisão, ainda que seja apresentado como a lei fundamental da caridade?

99.` Quando afirmo que para mim, Bispo de Roma, o empenhamento ecumênico constitui "uma das prioridades pastorais" do meu pontificado157, é por ter no pensamento o grave obstáculo que a divisão representa para o anúncio do Evangelho. Uma Comunidade cristã que crê em Cristo e deseja, com o ardor do Evangelho, a salvação da humanidade, não pode de forma alguma fechar-se ao apelo do Espírito que orienta todos os cristãos para a unidade plena e visível. Trata-se de um dos imperativos da caridade que deve ser acolhido sem hesitações. O ecumenismo não é apenas uma questão interna das Comunidades cristãs, mas diz respeito ao amor que Deus, em Cristo Jesus, destina ao conjunto da humanidade; e obstaculizar este amor é uma ofensa a Ele e ao seu desígnio de reunir todos em Cristo. O Papa Paulo VI escrevia ao Patriarca Ecumênico Atenágoras I: "Possa o Espírito Santo guiar-nos no caminho da reconciliação, para que a unidade das nossas Igrejas se torne um sinal cada vez mais luminoso de esperança e de conforto para toda a humanidade"158.

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