A g n u s D e i

UT UNUM SINT
João Paulo II
25.05.1995

Parte II
OS FRUTOS DO DIÁLOGO

A fraternidade reencontrada

41. Tudo o que atrás foi dito a propósito do diálogo ecumênico, desde a conclusão do Concílio para diante, leva a dar graças ao Espírito de verdade, prometido por Jesus Cristo aos Apóstolos e à Igreja (cf. Jo 14,26). Foi a primeira vez na história, que a ação em prol da unidade dos cristãos assumiu proporções tão amplas e se estendeu num âmbito tão vasto. Isto já é um dom imenso que Deus concedeu, e que merece toda a nossa gratidão. Da plenitude de Cristo, recebemos "graça sobre graça" (Jo 1,16). Reconhecer o que Deus já concedeu, é a condição que nos predispõe a receber os dons ainda indispensáveis para levar a cabo a obra ecumênica da unidade.

Uma visão de conjunto dos últimos trinta anos ajuda-nos a compreender melhor muitos frutos desta conversão comum ao Evangelho, cujo instrumento usado pelo Espírito de Deus foi o movimento ecumênico.

42. Acontece, por exemplo, que - segundo o espírito mesmo do Sermão da Montanha - os cristãos pertencentes a uma confissão já não consideram os outros cristãos como inimigos ou estranhos, mas vêem neles irmãos e irmãs. Por outro lado, mesmo a expressão irmãos separados, o uso tende hoje a substituí-la por vocábulos mais orientados a ressaltar a profundidade da comunhão - ligada ao caráter batismal - que o Espírito alimenta, não obstante as rupturas históricas e canônicas. Fala-se dos "outros cristãos", dos "outros batizados", dos "cristãos das outras Comunidades". O Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo designa as Comunidades a que pertencem estes cristãos como "Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica"69.

Tal ampliação do léxico traduz uma notável evolução das mentalidades. A consciência da comum pertença a Cristo ganha profundidade. Pude constatá-lo muitas vezes, pessoalmente, durante as celebrações ecumênicas, que são um dos acontecimentos importantes das minhas viagens apostólicas nas diversas partes do mundo, ou nos encontros e nas celebrações ecumênicas que tiveram lugar em Roma. A "fraternidade universal" dos cristãos tornou-se uma firme convicção ecumênica. Deixando para trás as excomunhões do passado, as Comunidades antes rivais hoje, em muitos casos, ajudam-se mutuamente; às vezes os edifícios para o culto são emprestados, oferecem-se bolsas de estudo para a formação dos ministros das Comunidades mais desprovidas de meios, intervém-se junto das autoridades civis em defesa de outros cristãos injustamente incriminados, demonstra-se a falta de fundamento das calúnias de que são vítimas certos grupos.

Numa palavra, os cristãos converteram-se a uma caridade fraterna que abraça todos os discípulos de Cristo. Se, por causa de violentos tumultos políticos, acontece surgir, em situações concretas, certa agressividade ou um espírito de retaliação, as autoridades das partes envolvidas procuram geralmente fazer prevalecer a "Lei nova" do espírito de caridade. Infelizmente, tal espírito não conseguiu transformar todas as situações de conflito sangrento. O empenho ecumênico nestas circunstâncias, não raro, requer a quem o exerce opções de autêntico heroísmo.

Impõe-se reafirmar a este propósito, que o reconhecimento da fraternidade não é a conseqüência de um filantropismo liberal ou de um vago espírito de família; mas está enraizado no reconhecimento do único Batismo e na conseqüente exigência de que Deus seja glorificado na sua obra. O Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo almeja um reconhecimento recíproco e oficial dos Batismos70. Isto está muito para além de um simples ato de cortesia ecumênica e constitui uma afirmação básica de eclesiologia.

É oportuno lembrar aqui que o caráter fundamental do Batismo na obra de edificação da Igreja foi posto claramente em relevo, também graças ao diálogo plurilateral71.

A solidariedade no serviço à humanidade

43. Acontece cada vez mais freqüentemente os responsáveis das Comunidades cristãs assumirem posição conjunta, em nome de Cristo, acerca de problemas importantes que dizem respeito à vocação humana, à liberdade, à justiça, à paz, ao futuro do mundo. Agindo assim, eles "comungam" num dos elementos constitutivos da missão cristã: lembrar à sociedade, de modo realista, a vontade de Deus, alertando as autoridades e os cidadãos para que não sigam pelo declive que os conduziria a espezinhar os direitos humanos. É claro, e a experiência demonstra-o, que em algumas circunstâncias a voz comum dos cristãos tem mais impacto que uma voz isolada.

No entanto, os responsáveis das Comunidades não são os únicos a unirem-se neste empenho pela unidade. Numerosos cristãos de todas as Comunidades, motivados pela sua fé, participam juntos em projetos corajosos que se propõem mudar o mundo no sentido de fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos. Na Carta encíclica "Sollicitudo rei socialis", constatei, com alegria, esta colaboração, ressaltando que a Igreja Católica não se lhe pode subtrair72. De fato, os cristãos, que outrora agiam de modo independente, agora estão empenhados conjuntamente ao serviço desta causa, para que a benevolência de Deus possa triunfar.

A lógica é a do Evangelho. Por este motivo, reiterando o que escrevera já na minha primeira Carta encíclica, a "Redemptor hominis", tive ocasião "de insistir sobre este ponto e de estimular todo o esforço realizado neste sentido, em todas as situações em que nos encontramos com outros dos nossos irmãos cristãos"73, e agradeci a Deus "por aquilo que já fez nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais e através delas", como também por meio da Igreja Católica74. Hoje constato com satisfação que a rede já ampla de colaboração ecumênica se estende cada vez mais. Também pelo influxo do Conselho Ecumênico das Igrejas se realiza um grande trabalho neste campo.

Convergências na palavra de Deus e no culto divino

44. Os progressos da conversão ecumênica são significativos também noutro setor, o relacionado com a Palavra de Deus. Penso, antes de mais, num fato tão importante para os vários grupos lingüísticos como são as traduções ecumênicas da Bíblia. Depois da promulgação pelo Concílio Vaticano II da Constituição "Dei Verbum", a Igreja Católica não podia deixar de acolher com alegria esta realização75. Tais traduções, obra de especialistas, oferecem geralmente uma base segura para a oração e a atividade pastoral de todos os discípulos de Cristo. Quem recorda como influíram nas divisões, especialmente no Ocidente, os debates em torno da Escritura, pode compreender quanto seja notável o passo em frente representado por tais traduções comuns.

45. À renovação litúrgica realizada pela Igreja Católica correspondeu, em diversas Comunidades eclesiais, a iniciativa de renovar o seu culto. Algumas delas, baseadas num desejo expresso a nível ecumênico76, abandonaram o hábito de celebrar a sua liturgia da Ceia apenas em poucas ocasiões e optaram por uma celebração dominical. Por outro lado, comparando o ciclo das leituras litúrgicas de diversas Comunidades cristãs ocidentais, constata-se que convergem no essencial. Sempre a nível ecumênico77, deu-se um destaque muito especial à liturgia e aos sinais litúrgicos (imagens, ícones, paramentos, luz, incenso, gestos). Além disso, nos Institutos de Teologia onde se formam os futuros ministros, o estudo da história e do significado da liturgia começa a fazer parte dos programas, como uma necessidade que se está a redescobrir.

Trata-se de sinais de convergência que dizem respeito a vários aspectos da vida sacramental. Sem dúvida que, devido a divergências que têm a ver com a fé, ainda não é possível concelebrar a mesma liturgia eucarística. E todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos nos dirigimos ao Pai e fazemo-Lo cada vez mais "com um só coração". Às vezes, parece estar mais perto a possibilidade de finalmente selar esta comunhão "real, embora ainda não plena". Quem teria podido sequer imaginá-lo, há um século?

46. Neste contexto, é motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência, da Unção dos Doentes a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente, e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e para circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos. As condições para tal acolhimento recíproco estão estabelecidas por normas, cuja observância se impõe em vista da promoção ecumênica78.

Apreciar os bens presentes nos outros cristãos

47. O diálogo não se articula exclusivamente à volta da doutrina, mas envolve toda a pessoa: é também um diálogo de amor. O Concílio afirmou: "É mister que os católicos reconheçam com alegria e estimem os bens verdadeiramente cristãos, oriundos de um patrimônio comum, que se encontram nos irmãos de nós separados. É digno e salutar reconhecer as riquezas de Cristo e as obras de virtude na vida dos outros que dão testemunho de Cristo, às vezes até à efusão do sangue. Deus é, com efeito, sempre admirável e digno de admiração em suas obras"79.

48. As relações que os membros da Igreja Católica estabeleceram com os outros cristãos a partir do Concílio para diante, fizeram descobrir aquilo que Deus opera naqueles que pertencem a outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Este contato direto, a vários níveis, entre os pastores e entre os membros das Comunidades, fez-nos tomar consciência do testemunho que os outros cristãos prestam a Deus e a Cristo. Abriu-se assim um espaço muito amplo para toda a experiência ecumênica, que simultaneamente constitui o desafio que se coloca nos nossos tempos. Não é porventura o século XX um tempo de grande testemunho que foi "até à efusão do sangue"? E por acaso este testemunho não diz respeito também às várias Igrejas e Comunidades eclesiais, que tomam o seu nome de Cristo crucificado e ressuscitado?

Este testemunho comum da santidade, como fidelidade ao único Senhor, é um potencial ecumênico extraordinariamente rico de graça. O Concílio Vaticano II ressaltou que os bens presentes nos outros cristãos podem contribuir para a edificação dos católicos: "Nem se passe por alto o fato de que tudo o que a graça do Espírito Santo realiza nos irmãos separados pode também contribuir para a nossa edificação. Tudo o que é verdadeiramente cristão jamais se opõe aos bens genuínos da fé, antes sempre pode fazer com que mais perfeitamente se compreenda o próprio mistério de Cristo e da Igreja"80. O diálogo ecumênico, como verdadeiro diálogo de salvação, não deixará de estimular este processo, em si mesmo já bem encaminhado, para progredir rumo à comunhão plena e verdadeira.

Crescimento da comunhão

49. Fruto precioso das relações entre os cristãos e do diálogo teológico que eles realizam, é o crescimento da comunhão. De fato, tais iniciativas tornaram conscientes os cristãos dos elementos de fé que têm em comum. E isto serviu para cimentar ainda mais o seu empenho pela unidade plena. Em tudo isso, o Concílio Vaticano II continua sendo um forte centro de propulsão e orientamento.

A Constituição dogmática "Lumen gentium" liga a doutrina sobre a Igreja Católica ao reconhecimento dos elementos salvíficos que se encontram nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais81. Não se trata de uma tomada de consciência de elementos estáticos, presentes passivamente em tais Igrejas e Comunidades. Como bens da Igreja de Cristo, por sua natureza impelem para a restauração da unidade. Daí resulta que a procura da unidade dos cristãos não é um ato facultativo ou oportunista, mas uma exigência que dimana do próprio ser da comunidade cristã.

Da mesma forma, os diálogos teológicos bilaterais com as maiores Comunidades cristãs partem do reconhecimento do grau de comunhão que já existe, para depois discutir progressivamente as divergências existentes com cada uma. O Senhor concedeu aos cristãos do nosso tempo a possibilidade de reduzir o contencioso tradicional.

O diálogo com as Igrejas do Oriente

50. A este propósito e antes de mais, deve-se constatar, com especial gratidão à Providência divina, que a ligação com as Igrejas do Oriente, deteriorada ao longo dos séculos, foi revigorada com o Concílio Vaticano II. Os observadores destas Igrejas, presentes no Concílio ao lado de representantes das Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente, manifestaram publicamente, num momento tão solene para a Igreja Católica, a vontade comum de procurar a comunhão.

Por sua vez, o Concílio testemunhou, com objetividade e profundo afeto, a sua consideração pelas Igrejas do Oriente, pondo em relevo o seu caráter eclesial e os vínculos objetivos de comunhão que as unem à Igreja Católica. Afirma o Decreto sobre o ecumenismo: "Pela celebração da Eucaristia do Senhor, em cada uma dessas Igrejas, a Igreja de Deus é edificada e cresce", acrescentando, como conseqüência, que essas Igrejas "embora separadas, têm verdadeiros sacramentos, e principalmente em virtude da sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia, ainda se unem muito intimamente conosco"82.

Nas Igrejas do Oriente, sobressai a sua grande tradição litúrgica e espiritual, o caráter específico do seu desenvolvimento histórico, os ordenamentos seguidos por elas desde os primeiros tempos e sancionados pelos Santos Padres e pelos Concílios ecumênicos, o seu modo próprio de enunciar a doutrina. Tudo isto na convicção de que a legítima diversidade não se opõe de forma alguma à unidade da Igreja, antes aumenta o seu decoro e contribui significativamente para o cumprimento da sua missão.

O Concílio Ecumênico Vaticano II, querendo basear o diálogo sobre a comunhão existente, chama a atenção precisamente para a rica realidade das Igrejas do Oriente: "Em vista disto, o Sagrado Concílio exorta a todos, mormente aos que pretendem dedicar-se à restauração da plena comunhão desejada entre as Igrejas Orientais e a Igreja Católica, a que tenham na devida consideração esta peculiar condição da origem e do crescimento das Igrejas do Oriente e da índole das relações que vigoravam entre elas e a Sé Romana antes da separação. Procurem apreciar retamente todos estes fatores"83.

51. Esta indicação conciliar foi fecunda quer para as relações de fraternidade, que se foram desenvolvendo através do diálogo da caridade, quer para a discussão doutrinal no âmbito da Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa no seu conjunto. Aquela indicação foi igualmente rica de frutos nas relações com as antigas Igrejas do Oriente.

Tratou-se de um processo lento e trabalhoso, mas que se tornou fonte de muita alegria; e foi também apaixonante, porque permitiu reencontrar progressivamente a fraternidade.

O restabelecimento dos contatos

52. Relativamente à Igreja de Roma e ao Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, o processo a que acabamos de aludir teve início graças à recíproca abertura manifestada pelos Papas João XXIII e Paulo VI, de um lado, e pelo Patriarca Ecumênico Atenágoras I e seus sucessores, do outro. A mudança operada teve a sua expressão histórica no ato eclesial com que "se tirou da memória e do meio das Igrejas"84 a recordação das excomunhões que novecentos anos antes, em 1054, se tinham tornado símbolo do cisma entre Roma e Constantinopla. Aquele evento eclesial, tão denso de empenho ecumênico, verificou-se nos últimos dias do Concílio, a 7 de Dezembro de 1965. A Assembléia Conciliar concluía-se assim com um ato solene, que era simultaneamente purificação da memória histórica, perdão recíproco e compromisso solidário na busca da comunhão.

Este gesto tinha sido precedido pelo encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I, em Jerusalém, no mês de Janeiro de 1964, durante a peregrinação daquele à Terra Santa. Naquela ocasião, ele pôde encontrar também o Patriarca ortodoxo de Jerusalém, Benedictos. Em seguida, o Papa Paulo VI fora visitar o Patriarca Atenágoras a Fanar (Istambul), no dia 25 de Julho de 1967, e, no mês de Outubro do mesmo ano, o Patriarca era solenemente acolhido em Roma. Estes encontros na oração apontavam o caminho a seguir para a aproximação entre a Igreja do Oriente e a Igreja do Ocidente, e o restabelecimento da unidade que existia entre elas no primeiro milênio.

Depois da morte do Papa Paulo VI e do breve pontificado do Papa João Paulo I, quando me foi confiado o ministério de Bispo de Roma, considerei ser um dos primeiros deveres do meu serviço pontifício renovar um contato pessoal com o Patriarca ecumênico Dimítrios I, que entretanto tinha assumido, na Sé de Constantinopla, a sucessão do Patriarca Atenágoras. Durante a minha visita a Fanar, no dia 29 de Novembro de 1979, pudemos - o Patriarca e eu - decidir a inauguração do diálogo teológico entre a Igreja Católica e todas as Igrejas Ortodoxas em comunhão canônica com a Sé de Constantinopla. Importa acrescentar, a este propósito, que então estavam já em curso os preparativos para a convocação do futuro Concílio das Igrejas Ortodoxas. A procura da sua harmonia é um contributo para a vida e a vitalidade daquelas Igrejas irmãs, e isto em consideração também da função que elas são chamadas a desempenhar no caminho para a unidade. O Patriarca Ecumênico quis retribuir-me a visita que lhe tinha feito em Novembro de 1979, pelo que, em Dezembro de 1987, tive a alegria de o acolher em Roma, com afeto sincero e a solenidade que lhe era devida. Neste contexto de fraternidade eclesial, recorde-se o costume, assente já há vários anos, de acolher em Roma, na festa dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, uma delegação do Patriarcado Ecumênico, tal como o de enviar a Fanar uma delegação da Santa Sé à solene celebração de Santo André.

53. Estes contatos regulares permitem, além do mais, um intercâmbio direto de informações e pareceres para uma coordenação fraterna. Por outro lado, a nossa mútua participação na oração habitua-nos de novo a viver lado a lado, induz-nos a acolher juntos e, conseqüentemente, a pôr em prática a vontade do Senhor para a sua Igreja.

Ao longo do caminho que percorremos do Concílio Vaticano II em diante, ocorre mencionar pelo menos dois acontecimentos particularmente significativos e de grande relevo ecumênico nas relações entre o Oriente e o Ocidente: em primeiro lugar, o Jubileu de 1984, promovido para comemorar o XIº centenário da obra evangelizadora dos Santos Cirilo e Metódio, e que me consentiu proclamar co-patronos da Europa estes dois Apóstolos dos Eslavos, mensageiros da fé. Já o Papa Paulo VI, em 1964, durante o Concílio, tinha proclamado S. Bento patrono da Europa. Associar os dois irmãos de Tessalônica ao grande fundador do monaquismo ocidental serve indiretamente para pôr em destaque aquela dúplice tradição eclesial e cultural tão significativa para os dois mil anos de cristianismo que caracterizaram a história do continente europeu. Por isso, não é supérfluo recordar que Cirilo e Metódio provinham do âmbito da Igreja Bizantina do seu tempo, época em que ela estava em comunhão com Roma. Ao proclamá-los, juntamente com S. Bento, patronos da Europa, desejava não apenas confirmar a verdade histórica sobre o cristianismo no continente europeu, mas também fornecer um tema importante àquele diálogo entre o Oriente e o Ocidente, que tantas esperanças suscitou no pós-Concílio. A Europa encontra as suas raízes espirituais tanto em S. Bento, como nos Santos Cirilo e Metódio. Agora que o segundo milênio do nascimento de Cristo chega ao seu termo, eles hão de ser venerados conjuntamente, como patronos do nosso passado e como santos a quem as Igrejas e as nações do continente europeu confiam o seu futuro.

54. O outro acontecimento que me apraz recordar, é a celebração do Milênio do Batismo da Rus' (988-1988). A Igreja Católica, e de modo particular esta Sé Apostólica, quis tomar parte nas celebrações jubilares, e procurou sublinhar como o Batismo conferido, em Kiev, a S. Vladimiro fora um dos acontecimentos centrais para a evangelização do mundo. A ele devem a sua fé, não apenas as grandes nações eslavas do Leste europeu, mas também aqueles povos que vivem para além dos Montes Urais até ao Alasca.

E, nesta perspectiva, encontra a sua motivação mais profunda, aquela afirmação, que usei várias vezes: a Igreja deve respirar com os seus dois pulmões! No primeiro milênio da história do cristianismo, essa frase referia-se sobretudo ao binômio Bizâncio-Roma; desde o batismo da Rus' para a frente, ela vê alargarem-se os seus confins: a evangelização estendeu-se a um âmbito muito mais vasto, a ponto de abraçar praticamente a Igreja inteira. Se se considera ainda que esse acontecimento salvífico, verificado ao longo das margens do Dniepre, remonta a uma época em que a Igreja no Oriente e no Ocidente não estava dividida, compreende-se claramente como a perspectiva a seguir para a plena comunhão, seja aquela da unidade na legítima diversidade. Isto mesmo o afirmei vigorosamente na Epístola encíclica Slavorum apostoli85, dedicada aos Santos Cirilo e Metódio, e na Carta apostólica "Euntes in mundum"86, dirigida aos fiéis da Igreja Católica na comemoração do Milênio do Batismo da Rus' de Kiev.

Igrejas irmãs

55. No seu horizonte histórico, o Decreto conciliar "Unitatis redintegratio" tem presente a unidade que, apesar de tudo, se viveu no primeiro milênio. Tal unidade assume, em determinado sentido, a configuração de modelo: "É grato ao sagrado Concílio trazer à memória de todos o fato de que no Oriente florescem muitas Igrejas particulares ou locais, entre as quais sobressaem as Igrejas Patriarcais; não poucas delas se gloriam de ter origem nos próprios Apóstolos"87. O caminho da Igreja tem início em Jerusalém, no dia do Pentecostes, e todo o seu desenvolvimento primordial, na oikoumene de então, se concentrava ao redor de Pedro e dos Onze (cf. At 2,14). As estruturas da Igreja no Oriente e no Ocidente foram-se naturalmente formando na linha daquele patrimônio apostólico. A sua unidade, dentro do primeiro milênio, mantinha-se naquelas mesmas estruturas, por meio dos Bispos, sucessores dos Apóstolos, em comunhão com o Bispo de Roma. Se hoje, no final do segundo milênio, procuramos restabelecer a plena comunhão, é a esta unidade, assim estruturada, que nos devemos referir.

O Decreto sobre o ecumenismo põe em relevo um outro aspecto característico, pelo qual todas as Igrejas particulares permaneciam na unidade: "a solicitude e o cuidado de conservar na comunhão de fé e caridade aquelas relações fraternas que devem vigorar entre as Igrejas locais como entre irmãs"88.

56. Após o Concílio Vaticano II e retomando tal tradição, restabeleceu-se o uso de atribuir a denominação de "Igrejas irmãs" às Igrejas particulares ou locais reunidas ao redor do seu bispo. Também a supressão das recíprocas excomunhões, removendo um doloroso obstáculo de ordem canônica e psicológica, foi um passo muito significativo no caminho para a plena comunhão.

As estruturas de unidade, que existiam antes da divisão, são um patrimônio de experiência que guia o nosso caminho para o reencontro da plena comunhão. Obviamente, durante o segundo milênio, o Senhor não cessou de dar à sua Igreja abundantes frutos de graça e de crescimento. Mas, infelizmente, o progressivo afastamento recíproco entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente privou-as das riquezas dos dons e ajudas mútuas. Impõe-se realizar, com a graça de Deus, um grande esforço para restabelecer entre elas a plena comunhão, fonte de tantos bens para a Igreja de Cristo. Tal esforço requer toda a nossa boa vontade, a oração humilde e uma colaboração perseverante que nada deve desencorajar. S. Paulo incita-nos: "Levai os fardos uns dos outros" (Gal 6,2). Como se adapta bem a nós e é tão atual esta exortação do Apóstolo! A denominação tradicional de "Igrejas irmãs" deveria acompanhar-nos incessantemente neste caminho.

57. Como almejava o Papa Paulo VI, o nosso claro objetivo é reencontrarmos juntos a plena unidade na legítima diversidade: "Deus concedeu-nos receber na fé este testemunho dos Apóstolos. Por meio do batismo, nós somos um só em Cristo (cf. Gal 3,28). Em virtude da sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia unem-nos mais intimamente; participando nos dons de Deus à sua Igreja, estamos em comunhão com o Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo (...). Em cada Igreja local, realiza-se este mistério do amor divino. Porventura não é este o motivo da expressão tradicional e tão bela "Igrejas irmãs", com que gostavam de se designar as Igrejas locais? (cf. Decreto Unitatis redintegratio, 14). Esta vida de Igrejas irmãs, vivemo-la nós durante séculos, celebrando juntos os Concílios ecumênicos, que defenderam o depósito da fé de qualquer alteração. Agora, após um longo período de divisão e incompreensão recíproca, o Senhor concede redescobrirmo-nos como Igrejas irmãs, não obstante os obstáculos que no passado se colocaram entre nós"89. Se hoje, às portas do terceiro milênio, procuramos o restabelecimento da plena comunhão, é para a atuação desta realidade que devemos tender, como é a tal realidade que havemos de fazer referência.

O contato com esta gloriosa tradição é fecundo para a Igreja. Na verdade, como afirma o Concílio, "as Igrejas do Oriente têm desde a origem um tesouro, do qual a Igreja do Ocidente herdou muitas coisas em liturgia, tradição espiritual e ordenação jurídica"90.

A este "tesouro" pertencem também "as riquezas daquelas tradições espirituais, que o monaquismo sobretudo expressou. Pois desde os gloriosos tempos dos Santos Padres floresceu no Oriente aquela elevada espiritualidade monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente"91. Como tive ocasião de assinalar na recente Carta apostólica Orientale lumen, as Igrejas do Oriente viveram com grande generosidade o empenho testemunhado pela vida monástica, "a começar pela evangelização, que é o serviço mais elevado que o cristão pode oferecer ao irmão, para prosseguir em muitas outras formas de serviço espiritual e material. Mais, pode-se dizer que o monaquismo foi na antigüidade - e com interrupções, também em tempos sucessivos - o instrumento privilegiado para a evangelização dos povos"92.

O Concílio não se limita a pôr em relevo tudo aquilo que torna as Igrejas no Oriente e no Ocidente semelhantes entre si. De acordo com a verdade histórica, aquele não hesita em afirmar: "Não admira que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um que por outro. Nestes casos, deve dizer-se que aquelas várias fórmulas teológicas, em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente"93. O intercâmbio de dons entre as Igrejas, na sua complementariedade, torna fecunda a comunhão.

58. A partir da reafirmação da comunhão de fé que já existe, o Concílio Vaticano II tirou conseqüências pastorais, úteis para a vida consagrada dos fiéis e para a promoção do espírito de unidade. Por causa dos estreitíssimos vínculos sacramentais existentes entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, o Decreto Orientalium ecclesiarum pôs em evidência que "a praxe pastoral demonstra, com relação aos irmãos orientais, que se podem e devem considerar as várias circunstâncias das pessoas nas quais nem é lesada a unidade da Igreja, nem há perigos a evitar, mas urgem a necessidade da salvação e o bem espiritual das almas. Por isso, a Igreja Católica, consideradas as circunstâncias de tempos, lugares e pessoas, muitas vezes tem usado e usa de modos de agir mais suaves, a todos dando os meios de salvação e o testemunho de caridade entre os cristãos através da participação nos sacramentos e em outras funções e coisas sagradas"94.

Esta orientação teológica e pastoral com a respectiva experiência feita nos anos do pós-Concílio, foi assumida por ambos os Códigos de Direito Canônico95. E o mesmo ficou explicitado, do ponto de vista pastoral, no Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo96.

Em matéria tão importante e delicada, é necessário que os Pastores instruam cuidadosamente os fiéis, para que estes conheçam claramente as razões precisas, quer de tal partilha no âmbito do culto litúrgico, quer dos ordenamentos diversos que existem a tal respeito.

Nunca se há de perder de vista a dimensão eclesiológica da participação nos sacramentos, sobretudo na santa Eucaristia.

Progressos do diálogo

59. Desde a sua criação em 1979, a Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa no seu conjunto trabalhou intensamente, orientando progressivamente a sua pesquisa para aquelas perspectivas que, de comum acordo, tinham sido determinadas com o objetivo de restabelecer a plena comunhão entre as duas Igrejas. Tal comunhão fundada na unidade de fé, em continuidade com a experiência e a tradição da Igreja antiga, encontrará a sua expressão plena na concelebração da santa Eucaristia. Com espírito positivo e baseando-se sobre aquilo que temos em comum, a Comissão mista pôde avançar substancialmente e, como tive ocasião de declarar ao venerado Irmão, Sua Santidade Dimítrios I, Patriarca ecumênico, ela chegou a exprimir "aquilo que a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa já podem professar juntas como fé comum no mistério da Igreja e no vínculo entre a fé e os sacramentos"97. A Comissão pôde ainda constatar e afirmar que, "nas nossas Igrejas, a sucessão apostólica é fundamental para a santificação e a unidade do povo de Deus"98. Trata-se de pontos de referência importantes para a continuação do diálogo. Mais: estas afirmações feitas conjuntamente constituem a base que habilita os católicos e os ortodoxos a prestarem desde agora, no nosso tempo, um testemunho comum, fiel e concorde, para que o nome do Senhor seja anunciado e glorificado.

60. Mais recentemente, a Comissão mista internacional realizou um passo significativo na questão tão delicada do método a seguir na busca da plena comunhão entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, questão essa que freqüentemente exasperou as relações entre católicos e ortodoxos. Ela pôs as bases doutrinais para uma positiva solução do problema, que se funda sobre a doutrina das Igrejas irmãs. Neste contexto, também apareceu claramente que o método a seguir para a plena comunhão é o diálogo da verdade, alimentado e amparado pelo diálogo da caridade. O reconhecimento às Igrejas Orientais Católicas do direito de se organizarem e realizarem o seu apostolado, bem como o efetivo envolvimento destas Igrejas no diálogo da caridade e no diálogo teológico favorecerão não apenas um respeito recíproco, real e fraterno, entre os ortodoxos e os católicos que vivem no mesmo território, mas também o seu empenho comum na busca da unidade99. Um passo em frente foi dado. O empenhamento deve continuar. Já desde agora se pode, porém, constatar uma pacificação dos ânimos, que torna a busca mais fecunda.

Quanto às Igrejas Orientais já em comunhão com a Igreja Católica, o Concílio exprimira o seu apreço nos termos seguintes: "Dando graças a Deus porque muitos filhos orientais da Igreja Católica (...) já vivem em plena comunhão com os irmãos que cultivam a tradição ocidental, este Sagrado Concílio declara que todo este patrimônio espiritual, litúrgico e teológico, nas suas diversas tradições, faz parte da plena catolicidade e apostolicidade da Igreja"100. Certamente as Igrejas Orientais Católicas saberão, no espírito do Decreto sobre o ecumenismo, participar positivamente no diálogo da caridade e no diálogo teológico, quer a nível local quer a nível universal, contribuindo assim para a recíproca compreensão e para uma procura dinâmica da plena unidade101.

61. Nesta perspectiva, a Igreja Católica nada mais deseja senão a plena comunhão entre Oriente e Ocidente. Para isso, inspira-se na experiência do primeiro milênio. Nesse período, de fato, "o desenvolvimento de diferentes experiências de vida eclesial não impedia que, mediante relações recíprocas, os cristãos pudessem continuar a saborear a certeza de estarem na sua própria casa em qualquer Igreja, porque de todas se elevava, numa admirável variedade de línguas e entoações, o louvor do único Pai, por Cristo, no Espírito Santo; todas se reuniam para celebrar a Eucaristia, coração e modelo da comunidade, não só pelo que diz respeito à espiritualidade ou à vida moral, mas também para a própria estrutura da Igreja, na variedade dos ministérios e dos serviços sob a presidência do Bispo, sucessor dos Apóstolos. Os primeiros Concílios são um testemunho eloqüente desta constante unidade na diversidade"102. Como recompor tal unidade, após quase mil anos? Eis a grande tarefa que a Igreja Católica deve cumprir, e que pesa igualmente sobre a Igreja Ortodoxa. Daqui se compreende toda a atualidade do diálogo, amparado pela luz e pela força do Espírito Santo.

Relações com as antigas Igrejas do Oriente

62. Desde o Concílio Vaticano II em diante, a Igreja Católica, com modalidades e ritmos diversos, estreitou relações fraternas também com aquelas antigas Igrejas do Oriente, que contestaram as fórmulas dogmáticas dos Concílios de Éfeso e de Caledônia. Todas estas Igrejas enviaram observadores como delegados ao Concílio Vaticano II; os seus Patriarcas honraram-nos com a sua visita, e o Bispo de Roma pôde falar com eles como a irmãos que, após longo tempo, felizes se reencontram.

O restabelecimento das relações fraternas com as antigas Igrejas do Oriente, testemunhas da fé cristã muitas vezes em situações hostis e trágicas, é um sinal concreto de quanto Cristo nos una, não obstante as barreiras históricas, políticas, sociais e culturais. E precisamente a propósito do tema cristológico, pudemos, juntamente com os Patriarcas de algumas destas Igrejas, declarar a nossa fé comum em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O Papa Paulo VI, de veneranda memória, tinha assinado declarações neste sentido com Sua Santidade Shenouda III, Papa e Patriarca copto ortodoxo103, e com o Patriarca siro ortodoxo de Antioquia, Sua Santidade Jacoub III104. Eu mesmo pude confirmar esse acordo cristológico e tirar as suas conseqüências: para o desenvolvimento do diálogo, com o Papa Shenouda105, e para a colaboração pastoral, com o Patriarca siro de Antioquia Mar Ignazio Zakka I Iwas106.

Com o venerável Patriarca da Igreja da Etiópia, Abuna Paulos, que me veio visitar a Roma no dia 11 de Junho de 1993, sublinhamos a profunda comunhão existente entre as nossas duas Igrejas: "Compartilhamos a fé transmitida pelos Apóstolos, bem como os mesmos sacramentos e o mesmo ministério, radicados na sucessão apostólica (...). Hoje, aliás, podemos afirmar que temos uma só fé em Cristo, apesar de por longo tempo isto ter sido uma fonte de divisão entre nós"107.

Mais recentemente, o Senhor deu-me a alegria imensa de subscrever uma declaração cristológica comum com o Patriarca Assírio do Oriente, Sua Santidade Mar Dinkha IV, que, por este motivo, quis visitar-me em Roma, no mês de Novembro de 1994. Tendo em conta certas formulações teológicas diferenciadas, pudemos assim professar juntos a verdadeira fé em Cristo108. Quero exprimir o meu júbilo por tudo isto, com as palavras da Virgem: "A minha alma glorifica ao Senhor" (Lc 1,46).

63. Para as tradicionais controvérsias sobre a cristologia, os contatos ecumênicos tornaram, assim, possíveis alguns esclarecimentos essenciais, a ponto de nos permitir confessar juntos a fé que nos é comum. Uma vez mais, há que constatar que uma aquisição tão importante é seguramente fruto da pesquisa teológica e do diálogo fraterno. E mais. Ela serve-nos de encorajamento: mostra-nos, de fato, que o caminho percorrido é justo e que razoavelmente se pode esperar encontrar juntos a solução para as outras questões controversas.

Diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais no Ocidente

64. No amplo plano traçado para a restauração da unidade entre todos os cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo toma igualmente em consideração as relações com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente. Com o intuito de instaurar um clima de fraternidade cristã e de diálogo, o Concílio situa as suas indicações no âmbito de duas considerações de ordem geral: uma de caráter histórico-psicológico, e outra de caráter teológico-doutrinal. Por um lado, o citado documento ressalta: "As Igrejas e Comunidades eclesiais, que se separaram da Sé Apostólica Romana naquela grave perturbação iniciada no Ocidente já pelos fins da Idade Média, ou em tempos posteriores, continuam, contudo, ligadas à Igreja Católica pelos laços de uma peculiar afinidade devida à longa convivência do povo cristão na comunidade eclesiástica durante os séculos passados"109. Por outro lado e com igual realismo, constata-se: "É preciso, contudo, reconhecer que entre estas Igrejas e Comunidades e a Igreja Católica há discrepâncias consideráveis, não só de índole histórica, sociológica, psicológica, cultural, mas sobretudo de interpretação da verdade revelada"110.

65. Comuns são as raízes, tal como semelhantes, apesar das diferenças, são as orientações que guiaram no Ocidente o desenvolvimento da Igreja Católica e das Igrejas e Comunidades saídas da Reforma. Conseqüentemente elas possuem uma característica ocidental comum. As "discrepâncias" acima acenadas, ainda que importantes, não excluem, portanto, influências e complementariedade recíproca.

O movimento ecumênico teve início precisamente no âmbito das Igrejas e Comunidades da Reforma. Contemporaneamente, estava-se em Janeiro de 1920, o Patriarca Ecumênico tinha formulado votos de que se organizasse uma colaboração entre as Comunhões cristãs. Este fato demonstra que a incidência do contexto cultural não é decisiva. Essencial é, pelo contrário, a questão da fé. A oração de Cristo, nosso único Senhor, Redentor e Mestre, interpela a todos do mesmo modo, tanto no Oriente como no Ocidente. Torna-se um imperativo que obriga a abandonar as divisões para buscar e reencontrar a unidade, impelidos inclusivamente pelas próprias amargas experiências da divisão.

66. O Concílio Vaticano II não tenta fazer a "descrição" do cristianismo saído da Reforma, já que as "Igrejas e Comunidades eclesiais (...) não só diferem de nós mas também diferem consideravelmente entre si", e isto "por causa da diversidade de origem, doutrina e vida espiritual"111. Além disso, o mesmo Decreto observa que o movimento ecumênico e o desejo de paz com a Igreja Católica ainda não alastrou por toda a parte112. Mas, independentemente destas circunstâncias, o Concílio propõe o diálogo.

O Decreto conciliar procura, depois, "expor (...) alguns pontos que podem e devem ser o fundamento e o incentivo deste diálogo"113.

"Consideramos (...) aqueles cristãos que, para glória de Deus único, Pai e Filho e Espírito Santo, abertamente confessam Jesus Cristo como Deus e Senhor e único mediador entre Deus e os homens"114.

Estes irmãos promovem o amor e a veneração pela Sagrada Escritura: "Invocando o Espírito Santo, na própria Sagrada Escritura, procuram a Deus que lhes fala em Cristo anunciado pelos profetas, Verbo de Deus por nós encarnado. Nela contemplam a vida de Cristo e aquilo que o divino Mestre ensinou e realizou para a salvação dos homens, sobretudo os mistérios da sua morte e ressurreição. (...) Afirmam a autoridade divina da Sagrada Escritura"115.

Ao mesmo tempo, contudo, pensam "diferentemente de nós (...) sobre a relação entre a Escritura e a Igreja. Na Igreja, segundo a fé católica, o magistério autêntico tem lugar peculiar na exposição e pregação da palavra de Deus escrita"116. Apesar disso, "no (...) diálogo 1, a Sagrada Escritura é um exímio instrumento na poderosa mão de Deus para a consecução daquela unidade que o Salvador oferece a todos os homens"117.

Além disso, o sacramento do Batismo, que temos em comum, representa "o vínculo sacramental da unidade que liga todos os que foram regenerados por ele"118. As implicações teológicas, pastorais e ecumênicas do Batismo comum são muitas e importantes. Embora de per si constitua apenas "o início e o exórdio", este sacramento "ordena-se à completa profissão da fé, à íntegra incorporação na obra da salvação, tal como o próprio Cristo o quis, e finalmente à total inserção na comunhão eucarística"119.

67. Apareceram divergências doutrinais e históricas do tempo da Reforma, a propósito da Igreja, dos sacramentos e do Ministério ordenado. Por isso, o Concílio requer que "se tome como objeto do diálogo a doutrina sobre a Ceia do Senhor, sobre os outros sacramentos, sobre o culto e sobre os ministérios da Igreja"120.

Ao assinalar que às Comunidades saídas da Reforma falta "a unidade plena conosco proveniente do batismo", o Decreto Unitatis redintegratio observa que elas não conservaram "a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem", mas "quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento"121.

68. O Decreto não esquece a vida espiritual e as conseqüências morais: "A vida cristã destes irmãos alimenta-se da fé em Cristo e é fortalecida pela graça do batismo e pela escuta da palavra de Deus. Manifesta-se na oração privada, na meditação bíblica, na vida familiar cristã, no culto da comunidade congregada para o louvor de Deus. Aliás, o culto deles contém por vezes notáveis elementos da antiga Liturgia comum"122.

O documento conciliar, aliás, não se limita a estes aspectos espirituais, morais e culturais, mas regista com apreço também o sentimento vivo da justiça e da sincera caridade para com o próximo, que estão presentes nestes irmãos; não esquece, além disso, as suas iniciativas para tornar mais humanas as condições sociais da vida e para restabelecer a paz. Tudo isto, com a sincera vontade de aderir à palavra de Cristo enquanto fonte da vida cristã.

Deste modo, o texto põe em destaque uma problemática, no campo ético-moral, que se torna cada vez mais urgente no nosso tempo: "Muitos dentre os cristãos nem sempre entendem o Evangelho do mesmo modo que os católicos"123. Nesta vasta matéria, há grande espaço de diálogo acerca dos princípios morais do Evangelho e das suas aplicações.

69. Os votos e o convite do Concílio Vaticano II foram atuados, tendo-se iniciado progressivamente o diálogo teológico bilateral com as várias Igrejas e Comunidades cristãs mundiais do Ocidente.

Quanto ao diálogo plurilateral, já em 1964 tinha início o processo da constituição de um "Grupo Misto de Trabalho" com o Conselho Ecumênico das Igrejas e, desde 1968, teólogos católicos começaram a tomar parte, como membros de pleno direito, no Departamento teológico do referido Conselho, a Comissão "Fé e Constituição".

O diálogo foi fecundo e rico de promessas, e continua a sê-lo. Os temas sugeridos pelo Decreto conciliar como matéria de diálogo, foram já enfrentados ou sê-lo-ão brevemente. A reflexão ao nível dos vários diálogos bilaterais, com uma dedicação que merece o elogio de toda a comunidade ecumênica, concentrou-se sobre muitas questões controversas, como o Batismo, a Eucaristia, o Ministério ordenado, a sacramentalidade e a autoridade da Igreja, a sucessão apostólica. Foram-se delineando assim perspectivas de soluções inesperadas, mas, ao mesmo tempo, compreendeu-se como era necessário investigar mais profundamente alguns argumentos.

70. Esta busca difícil e delicada, que implica problemas de fé e respeito da consciência própria e alheia, foi acompanhada e sustentada pela oração da Igreja Católica e das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. A oração pela unidade, já tão radicada e difundida no tecido conectivo eclesial, mostra que a importância da questão ecumênica não passa despercebida aos cristãos. Exatamente porque a busca da plena unidade exige um confronto de fé entre crentes que se apelam ao único Senhor, a oração é a fonte de iluminação acerca da verdade que se há de acolher em toda a sua integridade.

Além disso, através da oração, a busca da unidade, longe de ficar circunscrita ao âmbito de especialistas, estende-se a todo o batizado. Todos podem, independentemente do seu papel na Igreja e da sua formação cultural, dar um contributo ativo, numa dimensão misteriosa e profunda.

Relações eclesiais

71. É preciso também dar graças à Providência divina por todos os acontecimentos que testemunham o progresso no caminho da busca da unidade. A par do diálogo teológico, há que mencionar oportunamente as outras formas de encontro, a oração em comum e a colaboração prática. O Papa Paulo VI deu um forte impulso a este processo com a sua visita à sede do Conselho Ecumênico das Igrejas, em Genebra, que teve lugar a 10 de Junho de 1969, e encontrando muitas vezes os representantes de várias Igrejas e Comunidades eclesiais. Estes contatos contribuem eficazmente para melhorar o conhecimento recíproco e fazer crescer a fraternidade cristã.

O Papa João Paulo I, durante o seu pontificado tão breve, exprimiu a vontade de continuar o caminho124. O Senhor concedeu-me trabalhar nesta direção. Para além dos importantes encontros ecumênicos havidos em Roma, uma parte significativa das minhas visitas pastorais é habitualmente dedicada ao testemunho a favor da unidade dos cristãos. Algumas das minhas viagens apresentam mesmo uma "prioridade" ecumênica, especialmente em países onde as comunidades católicas estão em minoria, relativamente às Comunhões saídas da Reforma; ou em lugares onde estas últimas representam uma porção considerável dos crentes em Cristo de determinada sociedade.

72. Isto vale sobretudo para os países europeus, onde tiveram início estas divisões, e para a América do Norte. Neste contexto, e sem querer diminuir as demais visitas, merecem especial relevo, no continente europeu, as duas feitas à Alemanha, em Novembro de 1980 e em Abril-Maio de 1987 respectivamente; a visita à Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales), em Maio-Junho de 1982; à Suíça, no mês de Junho de 1984; aos Países Escandinavos e Nórdicos (Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia), onde me desloquei em Junho de 1989. Na alegria, no respeito recíproco, na solidariedade cristã e na oração, encontrei tantos e tantos irmãos, todos eles comprometidos na busca da fidelidade ao Evangelho. A constatação de tudo isto foi para mim fonte de grande encorajamento. Experimentamos a presença do Senhor entre nós.

A este propósito, queria lembrar um gesto, ditado pela caridade fraterna e repassado de profunda lucidez de fé, que vivi com intensa emoção. Passou-se nas celebrações eucarísticas, que presidi na Finlândia e na Suécia, durante a minha viagem aos Países Escandinavos e Nórdicos. No momento da comunhão, os Bispos luteranos apresentaram-se ao celebrante. Com um gesto de antemão acordado, eles quiseram demonstrar o desejo de chegar ao momento em que nós, católicos e luteranos, teremos a possibilidade de partilhar a mesma Eucaristia, e quiseram receber a bênção do celebrante. Com amor, os abençoei. O mesmo gesto, muito rico de significado, foi repetido em Roma, durante a missa que presidi, na Praça Farnese, por ocasião do VIº centenário da canonização de Santa Brígida, a 6 de Outubro de 1991.

Encontrei análogos sentimentos do outro lado do oceano, no Canadá, em Setembro de 1984; e especialmente, no mês de Setembro de 1987, nos Estados Unidos, onde se nota uma grande abertura ecumênica. É o caso - para dar um exemplo - do encontro ecumênico em Colúmbia, na Carolina do Sul, a 11 de Setembro de 1987. Já de per si é importante o fato de que se verifiquem com regularidade estes encontros entre os irmãos do "pós-Reforma" e o Papa. Estou-lhes profundamente grato, porque eles me aceitaram de boa vontade, tanto os responsáveis das várias Comunidades, como as Comunidades no seu todo. Deste ponto de vista, julgo significativa a celebração ecumênica da Palavra, realizada em Colúmbia e que teve por tema a família.

73. Motivo de grande alegria é, ainda, a constatação de como, no período pós-conciliar, abundam, nas diversas Igrejas locais, as iniciativas e ações a favor da unidade dos cristãos, as quais estendem sucessivamente a sua incidência ao nível das Conferências episcopais, de cada uma das dioceses e comunidades paroquiais, como também dos diversos ambientes e movimentos eclesiais.

Colaborações realizadas

74. "Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus" (Mt 7,21). A coerência e a honestidade das intenções e afirmações de princípio verificam-se pela sua aplicação à vida concreta. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo assinala que, nos outros cristãos, "a sua fé em Cristo produz frutos de louvor e ação de graças pelos benefícios recebidos de Deus. Há também, entre eles, um vivo sentido da justiça e uma sincera caridade para com o próximo"125.

O terreno, agora delineado, é fértil não apenas para o diálogo, mas também para uma ativa colaboração: a "fé operosa produziu não poucas instituições para aliviar a miséria espiritual e corporal, promover a educação da juventude, tornar mais humanas as condições sociais da vida e estabelecer por toda a parte a paz"126.

A vida social e cultural oferece amplos espaços de colaboração ecumênica. Com uma freqüência sempre maior, os cristãos aparecem juntos a defender a dignidade humana, a promover o bem da paz, a aplicação social do Evangelho, a tornar presente o espírito cristão nas ciências e nas artes. Eles encontram-se cada vez mais unidos, quando se trata de ir ao encontro das carências e misérias do nosso tempo: a fome, as calamidades, a injustiça social.

75. Esta cooperação, que recebe inspiração do próprio Evangelho, deixa de ser uma mera ação humanitária, para os cristãos. Mas tem a sua razão de ser na palavra do Senhor: "Tive fome e destes-Me de comer" (Mt 25,35). Como já sublinhei, a cooperação de todos os cristãos manifesta claramente aquele grau de comunhão que existe já entre eles127.

Assim aos olhos do mundo, a ação concorde dos cristãos na sociedade reveste o valor transparente de um testemunho prestado unanimemente ao nome do Senhor. Aquela assume também as dimensões de um anúncio, porque revela o rosto de Cristo.

As divergências doutrinais que restam, exercem uma influência negativa e põem limites também à colaboração. Porém, a comunhão de fé já existente entre os cristãos oferece uma base sólida para a sua ação conjunta não apenas no campo social, mas também no âmbito religioso.

Esta cooperação facilitará a procura da unidade. O Decreto sobre o ecumenismo observa que, por ela, "todos os que crêem em Cristo podem mais facilmente aprender como devem entender-se melhor e estimar-se mais uns aos outros, e assim se abre o caminho que leva à unidade dos cristãos"128.

76. Neste contexto, como não recordar o interesse ecumênico pela paz, que se exprime na oração e na ação com uma participação crescente dos cristãos e uma motivação teológica que pouco a pouco se vai tornando mais profunda? Nem poderia ser de outro modo. Porventura não acreditamos nós em Jesus Cristo, Príncipe da paz? Os cristãos estão cada vez mais unidos na rejeição da violência, qualquer tipo de violência, desde as guerras à injustiça social.

Somos chamados a um compromisso cada vez mais ativo, a fim de se manifestar ainda mais claramente que as motivações religiosas não são a verdadeira causa dos conflitos em curso, embora infelizmente, não esteja esconjurado o risco de instrumentalizações para fins políticos e polêmicos.

No ano 1986, durante a Jornada Mundial de Oração pela Paz, em Assis, os cristãos das várias Igrejas e Comunidades eclesiais invocaram, a uma só voz, o Senhor da história pela paz no mundo. Naquele dia, de modo distinto mas paralelo, rezaram pela paz também os hebreus e os representantes das religiões não cristãs, numa sintonia de sentimentos que fizeram vibrar as cordas mais profundas do espírito humano.

E não quero esquecer a Jornada de Oração pela Paz na Europa especialmente nos Balcãs, que me levou de novo como peregrino à cidade de S. Francisco, nos dias 9 e 10 de Janeiro de 1993, bem como a Missa pela Paz nos Balcãs e de modo particular na Bósnia-Herzegovina, que presidi a 23 de Janeiro de 1994 na Basílica de S. Pedro, no contexto da Semana de oração pela unidade dos cristãos.

Quando o nosso olhar percorre o mundo, a alegria invade o nosso espírito. Constatamos, de fato, que os cristãos se sentem cada vez mais interpelados pela questão da paz. Consideram-na estritamente conexa com o anúncio do Evangelho e com o advento do Reino de Deus.

Retornar