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"Realmente não consigo separar com nitidez os fatos principais que me
conduziram à fé católica. Na minha história, como na de todos, a parte
principal está escondida como um extraordinário mundo que só tem visíveis as
pontas de uns recifes. Entre esses, entretanto, devo mencionar um penedo de
forma peculiar onde um inextinguível farol assinala a entrada de um porto.
Nessa alegoria simples, envolvendo a água e a luz acesa em cima de uma
pedra, quero lembrar o meu batismo. Minha conversão foi apenas uma volta,
depois de grande viagem, depois de muitos cálculos náuticos, baseados em
bússolas loucas, àquele porto antigo, à pia de meu batismo. Em quarenta anos
de viagens, muita coisa aconteceu até que eu visse novamente uma vela acesa
em cima de uma pedra; e isso ocorreu em uma missa de réquiem...
Muita coisa miraculosa passou perto de mim, como passa a cada
instante perto de todos, mas não me lembro da maior parte e alguns
acontecimentos mais singulares receio emprestar, por minha conta, mais do
que realmente continham.
Numa tarde, por exemplo, saindo de automóvel, em
companhia de um amigo recente, que me procurava por causa de um
amplificador, encontrei uma pedra. Uma pedra real, concreta, granítica: um
paralelepípedo. O automóvel de meu amigo trepou na pedra e, com um
solavanco, a porta do painel abriu-se na minha frente e caiu-me em cima do
pé um missal. Poderia desenvolver esse episódio, ou, insistindo na pedra
como Carlos Drumond de Andrade, ou insistindo astuciosamente no missal, para
mostrar a evolução do livro, lenta e gradativa, do pé para a mão.
Com bem menos do que isto existem páginas de antologia; mas, francamente, eu teria
algum escrúpulo de fazer este fato render dois períodos, e até um certo
instinto me adverte que seu valor literário seria discutível. O fato é que
pela primeira vez abri a boca e falei alto sobre o meu problema religioso.
Isto aconteceu num restaurante onde tínhamos ido almoçar, eu e meu novo
amigo, para conversarmos sobre a aplicação do osciloscópio católico à
cultura de tecidos. Depois de meia hora de conversa o meu amigo em tom
categórico e inspirado, declarou-me: "Você precisa conhecer o Alceu".
E foi dali mesmo ao telefone procurar em três ou quatro lugares
diferentes onde estaria aquele personagem que eu admirava pelos livros, mas
que me amedrontava um pouco pela posição oficial de "líder católico". Dias
mais tarde conheci-o e recebi dele um enorme serviço que no momento não
soube avaliar. Ele falou-me da liturgia cristã e recomendou-me que
procurasse me informar, dando-me ao mesmo tempo uma apresentação para um
padre no Mosteiro de São Bento.
Nos dias que se seguiram, lembro-me bem, eu não podia passar quinze minutos
sem pensar no Santo Nome de Deus. Era um assédio, um atropelo, era uma
verdadeira perseguição que me acuava contra o altar. Uma onda de mérito de
todos os santos, um vento de todas as orações, puxava-me o chão embaixo dos
pés. E eu não sabia que o silencioso mover dos lábios de toda a cristandade
cuidava de mim, dizia um segredo que me interessava, como os cochichos de
gente grande nas vésperas de Natal, quando eu era pequenino.
Mais alguns dias se passaram até que ocorreu um incidente que tenho
algum escrúpulo de contar. Em todo caso, conto-o: estava no meu trabalho,
fazendo uma experiência com meus galvanômetros e minhas lâmpadas
eletrônicas, atento ao serviço, passageiramente alheio a qualquer cogitação,
quando o operário que me ajudava a fazer as ligações queimou o dedo no ferro
de soldar e soltou um palavrão e uma blasfêmia com o nome de Cristo. Parei
subitamente; olhei em volta um pouco confuso, sentindo um calor enorme no
rosto. Aquela pobre blasfêmia de pobre batera em cheio, como um soco no meu
peito... De repente, descobri, inundado de alegria, que amava o Senhor Jesus
e que em meu coração brotava um cântico novo. E, enquanto o operário chupava
tristemente o dedo queimado, ainda resmungando, vesti o casaco, saí correndo
sem avisar ninguém, pulei dentro de um táxi, com pressa de chegar no
Mosteiro e de me atirar de joelhos diante do altar. Tinha caído do cavalo..."