A g n u s D e i

TERTIO MILLENNIO ADVENIENTE
João Paulo II
10.11.1994

IV
A PREPARAÇÃO IMEDIATA

29. Tendo como pano de fundo este vasto panorama, surge a pergunta: pode-se hipotizar um programa específico de iniciativas para a preparação imediata do Grande Jubileu? A verdade é que quanto atrás ficou dito já apresenta alguns elementos de tal programa.

Uma previsão mais detalhada de iniciativas « ad hoc » para não ser artificial nem de difícil aplicação em cada uma das Igrejas, que vivem em condições tão diversificadas, deve resultar de uma consulta alargada. Consciente disto, quis interpelar a tal propósito os Presidentes das Conferências Episcopais e, de modo particular, os Cardeais.

O meu reconhecimento vai para os Venerados Membros do Colégio Cardinalício que, reunidos em Consistório Extraordinário a 13 e 14 de Junho de 1994, elaboraram numerosas propostas para o efeito e indicaram úteis orientações. Agradeço igualmente aos Irmãos no Episcopado, que não deixaram de fazer-me chegar, de vários modos, preciosas sugestões, que tive bem presente ao elaborar esta minha Carta Apostólica.

30. Uma primeira indicação, bem saliente na consultação, diz respeito aos tempos da preparação. Para o ano 2000, já poucos anos faltam: pareceu oportuno articular este período em duas fases, reservando a fase propriamente preparatória aos últimos três anos. Pensou-se, de facto, que um período mais longo teria acabado por acumular excessivos conteúdos, atenuando a tensão espiritual.

Julgou-se, por isso, conveniente aproximar-se da histórica data com uma primeira fase de sensibilização dos fiéis sobre temáticas mais gerais, para depois concentrar a preparação directa e imediata numa segunda fase, precisamente a do triénio, inteiramente orientada para a celebração do mistério de Cristo Salvador.

  1. Primeira fase

    31. A primeira fase terá, pois, carácter ante-preparatório: deverá servir para reavivar no povo cristão a consciência do valor e significado que o Jubileu do ano 2000 reveste na história humana. Trazendo consigo a recordação do nascimento de Cristo, está intrinsecamente marcado por uma conotação cristológica.

    Dada a articulação da fé cristã em palavra e sacramento, pareceu importante unir conjuntamente, também nesta singular ocorrência, a estrutura do memorial com a da celebração, não se limitando a recordar o acontecimento apenas conceptualmente, mas tornando presente o seu valor salvífico mediante a actualização sacramental. A efeméride jubilar deverá confirmar, nos cristãos de hoje, a fé no Deus que se revelou em Cristo, sustentar a suaesperança projectada na expectativa da vida eterna, reavivar a sua caridade, operosamente empenhada no serviço dos irmãos.

    No decorrer da primeira fase (de 1994 a 1996), a Santa Sé, graças inclusivamente à criação de uma específica Comissão, não deixará de sugerir algumas linhas de reflexão e acção a nível universal, enquanto um análogo empenho de sensibilização será realizado, de maneira mais capilar, por idênticas Comissões nas Igrejas locais. De algum modo, trata-se de continuar aquilo que foi realizado na preparação remota e, ao mesmo tempo, aprofundar os aspectos mais característicos do evento jubilar.

    32. O jubileu é sempre um tempo particular de graça, « um dia abençoado pelo Senhor »: como tal - foi já assinalado - tem um carácter jubiloso. O Jubileu do ano 2000 pretende ser uma grande oração de louvor e agradecimento sobretudo pelo dom da Encarnação do Filho de Deus e da Redenção por Ele operada. No ano jubilar, os cristãos colocar-se-ão, com renovado enlevo de fé, diante do amor do Pai, que deu o seu Filho, « para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna » (Jo 3, 16). Além disso, elevarão com íntima participação o seu agradecimento pelo dom da Igreja, fundada por Cristo como « o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».14 Por último, a sua gratidão alargar-se-á aos frutos de santidade, amadurecidos na vida de tantos homens e mulheres, que, em cada geração e época da história, souberam acolher sem reservas o dom da Redenção.

    Todavia, a alegria de cada jubileu é de modo particular umaalegria pela remissão das culpas, a alegria da conversão. Por isso, parece oportuno colocar de novo em primeiro plano aquilo que constituiu o tema do Sínodo dos Bispos de 1984, ou seja, a penitência e a reconciliação.15 Na verdade, ele constituiu um acontecimento extremamente significativo na história da Igreja pós-conciliar. Retomou a questão sempre actual da conversão - «metanoia » - que é a condição preliminar para a reconciliação com Deus tanto dos indivíduos como das comunidades.

    33. Assim, quando o segundo milénio já se encaminha para o seu termo, é justo que a Igreja assuma com maior consciência o peso do pecado dos seus filhos, recordando todas aquelas circunstâncias em que, no arco da história, eles se afastaram do espírito de Cristo e do seu Evangelho, oferecendo ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé, o espectáculo de modos de pensar e agir que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo.

    Embora sendo santa pela sua incorporação em Cristo, a Igreja não se cansa de fazer penitência: ela reconhece sempre como próprios, diante de Deus e dos homens, os filhos pecadores. Sobre isto, afirma a Constituição conciliar Lumen gentium: « a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação ».16

    A Porta Santa do Jubileu do 2000 deverá ser, simbolicamente, mais ampla do que nos jubileus precedentes, porque a humanidade, chegada àquela meta, deixará atrás de si não apenas um século, mas um milénio. Será bom que a Igreja entre por essa passagem com a consciência clara daquilo que viveu ao longo dos últimos dez séculos. Ela não pode transpor o limiar do novo milénio sem impelir os seus filhos a purificarem-se, pelo arrependimento, de erros, infidelidades, incoerências, retardamentos. Reconhecer as cedências de ontem é acto de lealdade e coragem que ajuda a reforçar a nossa fé, tornando-nos atentos e prontos para enfrentar as tentações e as dificuldades de hoje.

    34. Entre os pecados que requerem maior empenho de penitência e conversão, devem certamente ser incluídos os que prejudicaram a unidade querida por Deus para o seu Povo. Ao longo dos mil anos que estão para se concluir, mais ainda do que no primeiro milénio, a comunhão eclesial, « algumas vezes não sem culpa dos homens dum e doutro lado »,17 conheceu dolorosas lacerações que contradizem abertamente a vontade de Cristo e são escândalo para o mundo.18 Tais pecados do passado fazem sentir ainda, infelizmente, o seu peso e permanecem como tentações igualmente no presente. É necessário emendar-se, invocando intensamente o perdão de Cristo.

    Neste crepúsculo do milénio, a Igreja deve dirigir-se com prece mais instante ao Espírito Santo, implorando-Lhe a graça daunidade dos cristãos. Este é um problema crucial para o testemunho evangélico no mundo. Sobretudo depois do Concílio Vaticano II, muitas foram as iniciativas ecuménicas empreendidas com generosidade e solicitude: pode-se dizer que toda a actividade das Igreja locais e da Sé Apostólica assumiu nestes anos uma dimensão ecuménica. O Pontifício Conselho para a promoção da unidade dos Cristãos tornou-se um dos principais centros propulsores do processo para a plena unidade.

    Mas todos estamos conscientes de que a obtenção desta meta não pode ser fruto apenas de esforços humanos, embora indispensáveis. A unidade é, em última análise, dom do Espírito Santo. A nós, é-nos pedido para secundar este dom, sem cairmos em abdicações nem reticências no testemunho da verdade, mas pondo generosamente em acção as directrizes traçadas pelo Concílio e sucessivos documentos da Santa Sé, que mereceram o apreço inclusive de muitos dos cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.

    Eis, portanto, uma das tarefas dos cristãos a caminho do ano 2000. A aproximação do fim do segundo milénio incita todos a umexame de consciência e a oportunas iniciativas ecuménicas, de tal modo que possamos apresentar-nos ao Grande Jubileu, se não totalmente unidos, pelo menos muito mais perto de superar as divisões do segundo milénio. Para tal, é necessário - está à vista de todos - um esforço enorme. Impõe-se prosseguir com o diálogo ecuménico, mas sobretudo empenhar-se mais na oração ecuménica.

    Esta muito se intensificou depois do Concílio, mas deve crescer ainda metendo os cristãos cada vez mais em sintonia com a grande invocação de Cristo, antes da Paixão: « Pai... que também eles sejam em Nós um só » (Jo 17, 21).

    35. Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade.

    Certo é que um correcto juízo histórico não pode prescindir da atenta consideração dos condicionalismos culturais da época, pelos quais muita gente podia ter considerado, em boa fé, que um autêntico testemunho da verdade comportasse o sufocamento da opinião de outrem ou, pelo menos, a sua marginalização. Múltiplos motivos convergiam frequentemente para criar premissas de intolerância, alimentando uma atmosfera passional, da qual apenas grandes espíritos, verdadeiramente livres e cheios de Deus, conseguiam de algum modo subtrair-se. Mas a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus, que lhe deturparam o rosto, impedindo-a de reflectir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão. Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo o cristão a manter-se bem firme sobre aquela regra áurea ditada pelo Concílio: « a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte ».19

    36. Numerosos Cardeais e Bispos desejaram se fizesse um sério exame de consciência, principalmente sobre a Igreja de hoje. No limiar do novo milénio, os cristãos devem pôr-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempo. Na verdade, a época actual, a par de muitas luzes, apresenta também tantas sombras.

    Como calar, por exemplo, a indiferença religiosa, que leva tantos homens de hoje a viverem como se Deus não existisse ou a contentarem-se com uma religiosidade vaga, incapaz de se confrontar com o problema da verdade e com o dever da coerência? A isto, há que ligar também a difusa perda do sentido transcendente da existência humana e o extravio no campo ético, até mesmo em valores fundamentais como os da vida e da família. Impõe-se, pois, uma verificação aos filhos da Igreja: em que medida estão eles também tocados pela atmosfera de secularismo e relativismo ético? E que parte de responsabilidade devem eles reconhecer, quanto ao progressivo alastramento da irreligiosidade, por não terem manifestado o genuíno rosto de Deus, « pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social »? 20

    Realmente não se pode negar que, em muitos cristãos, a vida espiritual atravessa um momento de incerteza que se repercute não só na vida moral, mas também na oração e na própria rectidão teologal da fé. Esta, já posta à prova pelo confronto com o nosso tempo, vê-se às vezes ainda desorientada por posições teológicas erróneas, que se difundem também por causa da crise de obediência ao Magistério da Igreja.

    E quanto ao testemunho da Igreja no nosso tempo, como não sentir pesar pela falta de discernimento, quando não se torna mesmo condescendência, de não poucos cristãos perante a violação de direitos humanos fundamentais por regimes totalitários? E não será porventura de lamentar, entre as sombras do presente, a corresponsabilidade de tantos cristãos em formas graves de injustiça e marginalização social? Seria de perguntar quantos deles conhecem a fundo e praticam coerentemente as directrizes da doutrina social da Igreja.

    O exame de consciência não pode deixar de incluir também a recepção do Concílio, este grande dom do Espírito feito à Igreja quase ao findar do segundo milénio. Em que medida a Palavra de Deus se tornou mais plenamente alma da teologia e inspiradora de toda a existência cristã, como pedia a Dei Verbum? É vivida a liturgia como « fonte e cume » da vida eclesial, segundo o ensinamento da Sacrosanctum Concilium? Vai-se consolidando na Igreja universal e nas Igrejas particulares, a eclesiologia de comunhão da Lumen gentium, dando espaço aos carismas, aos ministérios, às várias formas de participação do Povo de Deus, embora sem descair para um democraticismo e sociologismo que não reflecte a visão católica da Igreja e o autêntico espírito do Vaticano II? Uma pergunta vital deve contemplar também o estilo das relações da Igreja com o mundo. As directrizes conciliares - oferecidas na Gaudium et spes e noutros documentos - de um diálogo aberto, respeitoso e cordial, acompanhado todavia por um atento discernimento e corajoso testemunho da verdade, permanecem válidas e chamam-nos a um empenhamento maior.

    37. A Igreja do primeiro milénio nasceu do sangue dos mártires: « sanguis martyrum - semen christianorum », (sangue de mártires, semente de cristãos).21 Os acontecimentos históricos relacionados com a figura de Constantino Magno nunca teriam podido garantir um desenvolvimento da Igreja como o que se verificou no primeiro milénio, se não tivesse havido aquela sementeira de mártires e aquele património de santidade que caracterizaram as primeiras gerações cristãs. No final do segundo milénio, a Igreja tornou-se novamente Igreja de mártires. As perseguições contra os crentes - sacerdotes, religiosos e leigos - realizaram uma grande sementeira de mártires em várias partes do mundo. O seu testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se património comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes, como ressaltava já Paulo VI na homilia da canonização dos Mártires Ugandeses.22

    É um testemunho que não se pode esquecer. A Igreja dos primeiros séculos, apesar de encontrar notáveis dificuldades organizativas, esforçou-se por fixar em peculiares martirológios o testemunho dos mártires. Tais martirológios foram-se actualizando constantemente ao longo dos séculos, e, no álbum dos santos e beatos da Igreja, entraram não apenas aqueles que derramaram o sangue por Cristo, mas também mestres da fé, missionários, confessores, bispos, presbíteros, virgens, esposos, viúvas, filhos.

    No nosso século, voltaram os mártires, muitas vezes desconhecidos, como que « militi ignoti » da grande causa de Deus. Tanto quanto seja possível, não se devem deixar perder na Igreja os seus testemunhos. Como foi sugerido no Consistório,impõe-se que as Igrejas locais tudo façam para não deixar perecer a memória daqueles que sofreram o martírio, recolhendo a necessária documentação. Isso não poderá deixar de ter uma dimensão e uma eloquência ecuménica. O ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o mais persuasivo. A communio sanctorum fala com voz mais alta que os factores de divisão. O martyrologium dos primeiros séculos constituiu a base do culto dos Santos. Proclamando e venerando a santidade dos seus filhos e filhas, a Igreja prestava suprema honra ao próprio Deus; nos mártires, venerava Cristo, que estava na origem do seu martírio e santidade. Desenvolveu-se sucessivamente a prática da canonização, que perdura ainda na Igreja Católica e nas Igrejas Ortodoxas. Nestes anos, foram-se multiplicando as canonizações e as beatificações. Elas manifestam a vivacidade das Igrejas locais, muito mais numerosas hoje que nos primeiros séculos e no primeiro milénio. A maior homenagem que todas as Igrejas prestarão a Cristo no limiar do terceiro milénio, será a demonstração da presença omnipotente do Redentor, mediante os frutos de fé, esperança e caridade em homens e mulheres de tantas línguas e raças, que seguiram Cristo nas várias formas da vocação cristã.

    Será tarefa da Sé Apostólica, na perspectiva do ano 2000, actualizar os martirológios para a Igreja universal, prestando grande atenção à santidade de quantos, também no nosso tempo, viveram plenamente na verdade de Cristo. De modo especial, haverá que diligenciar o reconhecimento da heroicidade das virtudes de homens e mulheres que realizaram a sua vocação cristã noMatrimónio: convictos como estamos de que, também em tal estado, não faltam frutos de santidade, sentimos a necessidade de encontrar os caminhos mais oportunos para os verificar e propor a toda a Igreja como modelo e estímulo dos outros esposos cristãos.

    38. Uma ulterior exigência sublinhada pelos Cardeais e pelos Bispos é a realização de Sínodos de carácter continental, na esteira daqueles já celebrados para a Europa e para a África. A última Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano acolheu, em sintonia com o Episcopado da América do Norte, a proposta de um Sínodo para as Américas sobre as problemáticas da nova evangelização em duas partes do mesmo continente tão diversas entre si pela origem e pela história, e sobre as temáticas da justiça e das relações económicas internacionais, tendo em conta a enorme disparidade entre o Norte e o Sul.

    Um Sínodo com carácter continental parece oportuno para a Ásia, onde mais acentuada é a questão do encontro do cristianismo com as antiquíssimas culturas e religiões locais. Grande desafio, este, para a evangelização, dado que sistemas religiosos como o budismo ou o induísmo se propõem com um claro carácter soteriológico. Existe, então, a necessidade urgente, por ocasião do Grande Jubileu, de um Sínodo que ilustre e aprofunde a verdade sobre Cristo, como único Mediador entre Deus e os homens e único Redentor do mundo, distinguindo-o bem dos fundadores de outras grandes religiões, nas quais, aliás, se encontram elementos de verdade, que a Igreja considera com sincero respeito, vendo neles um reflexo da Verdade que ilumina todos os homens.23 No ano 2000, deverá ressoar, com renovada intensidade, a proclamação da verdade: « Ecce natus est nobis Salvator mundi » (Eis que nos nasceu o Salvador do mundo).

    Também para a Oceânia poderia ser útil um Sínodo regional. Nesse Continente, entre outras coisas, existe o dado de populações aborígenes, que de modo singular evocam alguns aspectos da pre-história do género humano. Em tal Sínodo, pois, um tema a não descurar, a par de outros problemas do Continente, deveria ser o encontro do cristianismo com aquelas antiquíssimas formas de religiosidade, que significativamente são caracterizadas por uma orientação monoteísta.

  2. Segunda fase

    39. Com base nesta vasta acção de sensibilização, será possível depois enfrentar a segunda fase, a fase especificamente preparatória. Esta desenvolver-se-á no arco de três anos, de 1997 a 1999. A estrutura ideal para este triénio, centrado em Cristo, Filho de Deus feito homem, não pode ser senão teológica, isto é, trinitária.

    • I ano: Jesus Cristo

      40. O primeiro ano, 1997, será portanto dedicado à reflexão sobre Cristo, Verbo do Pai, feito homem por obra do Espírito Santo. Na verdade, há que evidenciar o carácter vincadamente cristológico do Jubileu, que celebrará a Encarnação e a vinda ao mundo do Filho de Deus, mistério de salvação para todo o género humano. O tema geral, proposto por muitos Cardeais e Bispos para este ano, é: « Jesus Cristo, único Salvador do mundo, ontem, hoje e sempre » (cf. Heb 13, 8).

      Entre os conteúdos perspectivados no Consistório, sobressaem os seguintes: a redescoberta de Cristo Salvador e Evangelizador, com particular referência ao capítulo IV do Evangelho de Lucas, onde o tema de Cristo enviado a evangelizar e o do jubileu se cruzam; o aprofundamento do mistério da sua Encarnação e do seu nascimento do seio virginal de Maria; a necessidade da fé n'Ele para a salvação. Para conhecer a verdadeira identidade de Cristo, é necessário que os cristãos, sobretudo ao longo deste ano, regressem com renovado interesse à Bíblia, « quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte ».24 Com efeito, no texto revelado é o próprio Pai Celeste que vem amorosamente ao nosso encontro e Se entretém connosco a manifestar-nos a natureza do Filho unigénito e o seu desígnio de salvação para a humanidade.25

      41. O empenho de actualização sacramental, atrás mencionado, poderá, ao longo do ano, valer-se da redescoberta do Baptismo como fundamento da existência cristã, segundo as palavras do Apóstolo: « Vós que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo » (Gal 3, 27). O Catecismo da Igreja Católica, por seu lado, recorda que o Baptismo constitui « o fundamento da comunhão entre todos os cristãos, mesmo com aqueles que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja Católica ».26 Precisamente sob a vertente ecuménica, este será um ano muito importante para juntos voltarem o olhar para Cristo, único Senhor, com o compromisso de se tornarem um só, nos termos da sua súplica ao Pai. O destaque da centralidade de Cristo, da Palavra de Deus e da fé não deveria deixar de suscitar interesse e acolhimento favorável nos cristãos de outras Confissões.

      42. Tudo deverá apontar para o objectivo prioritário do Jubileu que é o revigoramento da fé e do testemunho dos cristãos. É necessário, por conseguinte, suscitar em cada fiel um verdadeiro anseio de santidade, um forte desejo de conversão e renovamento pessoal num clima de oração cada vez mais intensa e de solidário acolhimento do próximo, especialmente do mais necessitado.

      O primeiro ano será, assim, o momento favorável para a redescoberta da catequese no seu significado e valor originário de « ensino dos Apóstolos » (Act 2, 42) sobre a pessoa de Jesus Cristo e o seu mistério de salvação. De grande utilidade para este objectivo, se revelará o aprofundamento do Catecismo da Igreja Católica, que apresenta « com fidelidade e de modo orgânico, o ensino da Sagrada Escritura, da Tradição viva da Igreja e do Magistério autêntico, bem como a herança espiritual dos Padres, dos santos e santas da Igreja, para permitir conhecer melhor o mistério cristão e reavivar a fé do povo de Deus ».27 Para ser realistas, não deverá transcurar-se também a iluminação da consciência dos fiéis sobre os erros referentes à pessoa de Cristo, evidenciando justamente as oposições contra Ele e contra a Igreja.

      43. A Virgem Santa, que estará presente de modo, por assim dizer, « transversal » ao longo de toda a fase preparatória, será contemplada neste primeiro ano sobretudo no mistério da sua divina Maternidade. Foi no seu seio que o Verbo se fez carne! A afirmação da centralidade de Cristo não pode, portanto, ser separada do reconhecimento do papel desempenhado pela sua Santíssima Mãe. O seu culto, se bem esclarecido, de modo nenhum pode trazer dano « à dignidade e eficácia do único Mediador, que é Cristo ».28 Na verdade, Maria aponta perenemente para o seu Filho divino e apresenta-se a todos os crentes como modelo de fé vivida no dia-a-dia. « A Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com o seu esposo ».29

    • II ano: Espírito Santo

      44. O ano 1998, o segundo da fase preparatória, será dedicado de modo particular ao Espírito Santo e à sua presença santificadora no seio da Comunidade dos discípulos de Cristo. « O grande Jubileu, com que se concluirá o segundo Milénio - escrevia na Encíclica Dominum et vivificantem - (...) tem um perfil pneumatológico, dado que o mistério da Encarnação se realizou "por obra do Espírito Santo". "Operou-o" aquele Espírito que - consubstancial ao Pai e ao Filho - é, no mistério absoluto de Deus uno e trino, a Pessoa-Amor, o Dom incriado, que é fonte eterna de toda a dádiva que provém de Deus na ordem da criação, o princípio directo e, em certo sentido, o sujeito da autocomunicação de Deus na ordem da graça. O mistério da Encarnação constitui o ápice da dádiva suprema, dessa autocomunicação de Deus ».30

      A Igreja não pode preparar-se para a passagem bimilenária « de outro modo que não seja no Espírito Santo. Aquilo que "na plenitude dos tempos" se realizou por obra do Espírito Santo, só por sua obra pode emergir agora da memória da Igreja ».31

      Realmente o Espírito actualiza na Igreja de todos os tempos e lugares a única Revelação trazida por Cristo aos homens, tornando-a viva e eficaz no coração de cada um: « O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito » (Jo 14, 26).

      45. Entra, pois, nos compromissos primários da preparação para o Jubileu a redescoberta da presença e acção do Espírito, que age na Igreja quer sacramentalmente, sobretudo mediante a Confirmação, quer através de múltiplos carismas, cargos e ministérios por Ele suscitados para o bem dela: « É um mesmo Espírito que distribui os seus vários dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para utilidade da Igreja (cf. 1 Cor 12, 1-11). Entre estes dons, sobressai a graça dos Apóstolos, a cuja autoridade o mesmo Espírito submeteu também os carismáticos (cf. 1 Cor 14). O mesmo Espírito, unificando o corpo por si e pela sua força e pela coesão interna dos membros, produz e promove a caridade entre os fiéis ».32

      O Espírito é também, na nossa época, o agente principal da nova evangelização. Será, por isso, importante redescobrir o Espírito como Aquele que constrói o Reino de Deus no curso da história e prepara a sua plena manifestação em Jesus Cristo, animando os homens no mais íntimo deles mesmos e fazendo germinar dentro da existência humana os gérmens da salvação definitiva que acontecerá no fim dos tempos.

      46. Nesta perspectiva escatológica, os crentes serão chamados a redescobrir a virtude teologal da esperança, de que tiveram « conhecimento pela palavra da verdade, o Evangelho » (Col 1, 5). A atitude fundamental da esperança, por um lado impele o cristão a não perder de vista a meta final que dá sentido e valor à sua existência inteira, e por outro oferece-lhe motivações sólidas e profundas para o empenhamento quotidiano na transformação da realidade a fim de a tornar conforme ao projecto de Deus.

      Como recorda o apóstolo Paulo: « Sabemos, com efeito, que toda a criação tem gemido e sofrido as dores de parto, até ao presente. E não só ela, mas também nós próprios, que possuímos as primícias do Espírito, gememos igualmente em nós mesmos, aguardando a filiação adoptiva, a libertação do nosso corpo. Porque na esperança é que fomos salvos » (Rom 8, 22-24). Os cristãos são chamados a preparar-se para o Grande Jubileu do início do terceiro milénio, renovando a sua esperança no advento definitivo do Reino de Deus, preparando-o dia após dia no seu íntimo, na Comunidade cristã a que pertencem, no contexto social onde estão inseridos e deste modo também na história do mundo.

      Além disso, é necessário que sejam valorizados e aprofundados os sinais de esperança presentes neste epílogo do século, não obstante as sombras que frequentemente os escondem a nossos olhos: no campo civil, os progressos realizados pela medicina ao serviço da vida humana, o sentido mais vivo de responsabilidade pelo ambiente, os esforços para restabelecer a paz e a justiça em todo o lado onde foram violadas, a vontade de reconciliação e solidariedade entre os vários povos, particularmente nas complexas relações entre o Norte e o Sul do mundo...; no campo eclesial, a escuta mais atenta da voz do Espírito através do acolhimento dos carismas e da promoção do laicado, a intensa dedicação à causa da unidade de todos os cristãos, o espaço dado ao diálogo com as religiões e com a cultura contemporânea...

      47. Neste segundo ano de preparação, a reflexão dos fiéis deverá concentrar-se, com particular solicitude, sobre o valor da unidade no seio da Igreja, para a qual tendem os vários dons e carismas suscitados nela pelo Espírito. Com este objectivo, poder-se-á oportunamente aprofundar o ensinamento eclesiológico do Concílio Vaticano II, presente sobretudo na Constituição dogmática Lumen gentium. Este importante documento sublinhou expressamente que a unidade do Corpo de Cristo está fundada sobre a acção do Espírito, é garantida pelo ministério apostólico e é sustentada pelo mútuo amor (cf. 1 Cor 13, 1-8). Tal aprofundamento catequético da fé não poderá deixar de levar os membros do Povo de Deus a uma consciência mais amadurecida das próprias responsabilidades, bem como a um sentido mais vivo do valor da obediência eclesial.33

      48. Maria, que concebeu o Verbo encarnado por obra do Espírito Santo e que depois, em toda a existência, se deixou guiar pela sua acção interior, será contemplada e imitada no decorrer deste ano sobretudo como a mulher dócil à voz do Espírito, mulher do silêncio e da escuta, mulher de esperança, que soube acolher como Abraão a vontade de Deus « esperando contra toda a esperança » (Rom 4, 18). Ela leva à sua expressão plena o anélito dos pobres de Jahvé, resplandecendo como modelo para quantos se confiam, com todo o coração, às promessas de Deus.

    • III ano: Deus Pai

      49. O ano 1999, terceiro e último ano preparatório, terá por função alargar os horizontes do crente até à própria perspectiva de Cristo: a perspectiva do « Pai que está nos céus » (cf. Mt 5, 45), que O enviou e a Quem Ele retornou (cf. Jo 16, 28).

      « A vida eterna consiste nisto: Que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jo 17, 3). Toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai, de Quem se descobre todos os dias o amor incondicional por cada criatura humana e, em particular, pelo « filho perdido » (cf. Lc 15, 11-32). Tal peregrinação parte do íntimo da pessoa, alargando-se depois à comunidade crente até alcançar a humanidade inteira.

      O Jubileu, centrado sobre a pessoa de Cristo, torna-se assim um grande acto de louvor ao Pai: « Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n'Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos » (Ef 1, 3-4).

      50. Neste terceiro ano, o sentido do « caminho para o Pai » deverá impelir todos a empreenderem, na adesão a Cristo Redentor do homem, um caminho de autêntica conversão, que compreende seja um aspecto « negativo » com a libertação do pecado, seja um aspecto « positivo » com a escolha do bem, expresso pelos valores éticos contidos na lei natural, confirmada e aprofundada pelo Evangelho. É este o contexto adequado para a descoberta e a intensa celebração do sacramento da Penitência, no seu significado mais profundo. O anúncio da conversão, qual exigência imprescindível do amor cristão, é particularmente importante na sociedade actual, onde tantas vezes parecem perdidos os próprios fundamentos de uma visão ética da existência humana.

      Convirá, portanto, especialmente neste ano, pôr em relevo a virtude teologal da caridade, recordando a sintética e densa afirmação da primeira Carta de João: « Deus é amor » (4, 8. 16). A caridade, na sua dupla face de amor a Deus e aos irmãos, é a síntese da vida moral do crente. Ela tem em Deus a sua nascente e a sua meta de chegada.

      51. Nesta perspectiva e recordando que Jesus veio « evangelizar os pobres » (Mt 11, 5; Lc 7, 22), como não sublinhar com maior decisão a opção preferencial da Igreja pelos pobres e os marginalizados? Antes, deve-se afirmar que o empenho pela justiça e pela paz num mundo como o nosso, marcado por tantos conflitos e por intoleráveis desigualdades sociais e económicas, é um aspecto qualificante da preparação e da celebração do Jubileu. Assim, no espírito do livro do Levítico (25, 8-12), os cristãos deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações. O Jubileu poderá ainda oferecer a oportunidade para meditar sobre outros desafios do momento, tais como, por exemplo, as dificuldades de diálogo entre culturas diversas e as problemáticas ligadas com o respeito dos direitos da mulher e com a promoção da família e do matrimónio.

      52. Recordando, além disso, que « Cristo (...) na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime »,34 dois empenhos serão inevitáveis especialmente no curso deste terceiro ano preparatório: o confronto com o secularismo e o diálogo com as grandes religiões.

      Quanto ao primeiro, será conveniente afrontar a vasta temática da crise de civilização, como acabou por se manifestar sobretudo no Ocidente, tecnologicamente mais desenvolvido mas interiormente empobrecido pelo esquecimento ou pela marginalização de Deus. À crise de civilização, há que responder com a civilização do amor, fundada sobre os valores universais de paz, solidariedade, justiça e liberdade, que encontram em Cristo a sua plena actuação.

      53. No que se refere, pelo contrário, ao horizonte da consciência religiosa, a vigília do ano 2000 será uma grande ocasião - como se vê pelos acontecimentos destes últimos decénios - para o diálogo interreligioso, segundo as indicações claras emanadas pelo Concílio Vaticano II na Declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs.

      Neste diálogo, deverão ter lugar proeminente os hebreus e os muçulmanos. Queira Deus que, como sigilo de tais intenções, se possam realizar também encontros comuns em lugares significativos para as grandes religiões monoteístas.

      A propósito disto, está-se a estudar como predispor quer encontros históricos em Belém, em Jerusalém e no Sinai, lugares de grande valência simbólica, para intensificar o diálogo com os hebreus e os fiéis do Islão, quer encontros com representantes das grandes religiões do mundo noutras cidades. Contudo haverá que prestar sempre atenção a não dar ensejo a perigosos equívocos, vigiando de perto sobre o risco de sincretismo e de um irenismo fácil e enganador.

      54. Em todo este amplo horizonte de compromissos, Maria Santíssima, filha predestinada do Pai, apresentar-se-á ao olhar dos crentes como exemplo perfeito de amor a Deus e ao próximo. Como Ela própria afirma no cântico do Magnificat, grandes coisas fez n'Ela o Omnipotente, cujo nome é Santo (cf. Lc 1, 49). O Pai escolheu Maria para uma missão única na história da salvação: ser Mãe do Salvador esperado. A Virgem respondeu à chamada de Deus com plena disponibilidade: « Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra » (Lc 1, 38). A sua maternidade, iniciada em Nazaré e sumamente vivida em Jerusalém ao pé da Cruz, será sentida neste ano como afectuoso e premente convite dirigido a todos os filhos de Deus, para que regressem à casa do Pai, escutando a sua voz materna: « Fazei aquilo que Cristo vos disser » (cf. Jo 2, 5).

  3. Com vista à celebração

    55. Um capítulo a parte é constituído pela celebração mesma do Grande Jubileu, que se verificará contemporaneamente na Terra Santa, em Roma e nas Igrejas locais do mundo inteiro. Sobretudo nesta fase, a fase celebrativa, o objectivo será a glorificação da Santíssima Trindade, da Qual tudo procede e à Qual tudo se orienta no mundo e na história. Para esse mistério apontam os três anos de preparação imediata: em Cristo e por Cristo, no Espírito Santo, ao Pai. Neste sentido, a celebração jubilar actualiza e simultaneamente antecipa a meta e o cumprimento da vida do cristão e da Igreja em Deus uno e trino.

    Sendo, porém, Cristo o único caminho de acesso ao Pai, para sublinhar a sua presença viva e salvífica na Igreja e no mundo, realizar-se-á em Roma, por ocasião do Grande Jubileu, o Congresso Eucarístico Internacional. O ano 2000 será intensamente eucarístico: no sacramento da Eucaristia o Salvador, que encarnou no seio de Maria vinte séculos atrás, continua a oferecer-Se à humanidade como fonte de vida divina.

    A dimensão ecuménica e universal do Jubileu Sagrado poderá oportunamente ser evidenciada com um significativo encontro pan-cristão. Trata-se de um gesto de grande valor e por isso, para evitar equívocos, terá de ser proposto correctamente e preparado com solicitude, em atitude de fraterna colaboração com os cristãos de outras confissões e tradições, e ainda de grata abertura àquelas religiões cujos representantes quisessem exprimir a sua consideração pela alegria comum de todos os discípulos de Cristo. Uma coisa é certa: cada um é convidado a fazer tudo quanto esteja ao seu alcance para que não fique transcurado o grande desafio do ano 2000, ao qual está seguramente ligada uma particular graça do Senhor para a Igreja e para a humanidade inteira.