A g n u s D e i

SOLLICITUDO REI SOCIALIS
João Paulo II
30.12.1987

VII
CONCLUSÃO

46. Os povos e os indivíduos aspiram à própria libertação: a busca do desenvolvimento pleno é o sinal do seu desejo de superar os múltiplos obstáculos que os impedem de usufruir de uma «vida mais humana».

Recentemente, no período sucessivo à publicação da Encíclica Populorum Progressio, nalgumas áreas da Igreja católica, em particular na América Latina, difundiu-se umanova maneira de enfrentar os problemas da miséria e do subdesenvolvimento, que faz da libertação a categoria fundamental e o primeiro princípio de acção. Os valores positivos, mas também os desvios e os perigos de desvio, ligados a esta forma de reflexão e de elaboração teológica, foram oportunamente indicados pelo Magistério eclesiástico. (83)

É conveniente acrescentar que a aspiração à libertação de toda e qualquer forma de escravatura, relativa ao homem e à sociedade, é algo nobre e válido. E é isso justamente o que tem em vista o desenvolvimento, ou melhor, a libertação e o desenvolvimento, tendo em conta a íntima conexão existente entre estas duas realidades.

Um desenvolvimento somente económico não está em condições de libertar o homem; pelo contrário, acaba até por o escravizar mais. Um desenvolvimento que não abranja as dimensões culturais, transcendentes e religiosas do homem e da sociedade menos ainda contribui para a verdadeira libertação, na medida em que não reconhece a existência de tais dimensões e não orienta para elas as próprias metas e prioridades. O ser humano será totalmente livre só quando for ele mesmo, na plenitude dos seus direitos e deveres; o mesmo se deve dizer da sociedade inteira.

O obstáculo principal a superar para uma verdadeira libertação é o pecado, roborado pelas estruturas que ele suscita, à medida que se multiplica e se expande. (84)

A liberdade para a qual «Cristo nos libertou» (cf. Gál 5, 1), estimula-nos a converter-nos em servos de todos. Assim o processo do desenvolvimento e da libertação concretiza-se na prática da solidariedade, ou seja, do amor e do serviço ao próximo, particularmente aos mais pobres: «Onde faltam a verdade e o amor, o processo de libertação leva à morte de uma liberdade que terá perdido toda a base de apoio». (85)

47. No quadro das tristes experiências dos últimos anos e do panorama predominantemente negativo do momento actual, a Igreja sente-se no dever de afirmar com vigor: a possibilidade de superar os entraves que se interpõem, por excesso ou por defeito, ao desenvolvimento; e a confiança numa verdadeira libertação. Esta confiança e esta possibilidade fundam-se, em última instância, na consciência que tem a mesma Igreja da promessa divina, a assegurar-lhe que a história presente não permanece fechada em si mesma, mas está aberta para o Reino de Deus.

A Igreja tem também confiança no homem, embora conhecendo a perversão de que ele é capaz, porque sabe bem que - não obstante a herança de pecado e o próprio pecado que cada um pode cometer - há na pessoa humana qualidades e energias suficientes, há nela «bondade» fundamental (cf. Gén 1, 31), porque é imagem do Criador, colocada sob o influxo redentor de Cristo, que «se uniu de certo modo a cada homem», (86) e porque a acção eficaz do Espírito Santo «enche o mundo» (Sab 1, 7).

Não são justificáveis, portanto, nem o desespero, nem o pessimismo, nem a passividade. Embora com amargura, é preciso dizer que assim como se pode pecar por egoísmo, por avidez de ganho excessivo e de poder, também se podem cometer faltas em relação às necessidades urgentes de multidões humanas imersas no subdesenvolvimento, por temor, por indecisão e, no fundo, por cobardia. Estamos todos chamados, ou antes, obrigados, a enfrentar o tremendo desafio da última década do segundo Milénio, até porque há perigos incumbentes que nos ameaçam a todos: uma crise económica mundial, ou uma guerra sem fronteiras, sem vencedores nem vencidos. Perante esta ameaça, a distinção entre pessoas e países ricos e pessoas e países pobres terá pouco valor, a não ser em razão da maior responsabilidade que pesa sobre aqueles que têm mais e podem mais.

Mas semelhante motivação não é a única nem a principal. O que está em jogo é a dignidade da pessoa humana, cuja defesa e promoção nos foram confiadas pelo Criador, tarefa a que estão rigorosa e responsavelmente obrigados os homens e as mulheres em todas as conjunturas da história. O panorama actual - como muitos já se dão conta mais ou menos claramente - não parece que corresponda a essa dignidade. Cada um de nós é chamado a ocupar o próprio lugar nesta campanha pacífica, que há-de ser conduzida com meios pacíficos, para alcançar o desenvolvimento na paz e para salvaguardar a própria natureza e o mundo ambiente que nos rodeia. A Igreja sente-se profundamente implicada, também ela, nesta caminhada, em cujo feliz êxito final espera.

Sendo assim, a exemplo do que fez o Papa Paulo VI com a Encíclica Populorum Progressio, (87) quereria dirigir-me com simplicidade e humildade a todos, homens e mulheres, sem excepção, para que, convencidos da gravidade do momento presente e cada um da própria responsabilidade individual, ponham em prática - no estilo de vida pessoal e familiar, no uso dos bens, na participação como cidadãos, na contribuição para as decisões económicas e políticas e no próprio empenhamento nos planos nacionais e internacionais - as medidas inspiradas pela solidariedade e pelo amor preferencial para com os pobres. Assim o exigem as circunstâncias e assim o exige sobretudo a dignidade da pessoa humana, imagem indestrutível de Deus criador e imagem idêntica em cada um de nós.

Neste esforço, devem dar o exemplo e servir de guias os filhos da Igreja, chamados, segundo o programa enunciado pelo próprio Jesus na sinagoga de Nazaré, a «anunciar a boa-nova aos pobres..., a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a pôr em liberdade os oprimidos e a promulgar um ano de graça da parte do Senhor» (Lc 4, 18-19). E' conveniente salientar o papel preponderante que incumbe aos leigos, homens e mulheres, como foi repetido na recente Assembleia sinodal. A eles compete animar, com espírito cristão, as realidades temporais e testemunhar, nesse campo, que são operadores de paz e de justiça.

Quereria dirigir-me especialmente a quantos, pelo sacramento do Baptismo e a profissão do mesmo Credo, são comparticipantes de uma verdadeira comunhão, embora imperfeita, connosco. Estou certo de que a solicitude que esta Carta exprime, assim como as motivações que a animam lhes serão familiares, porque se inspiram no Evangelho de Cristo Jesus. Podemos encontrar aqui um novo convite a dar um testemunho unânime das nossas convicções comuns sobre a dignidade do homem, criado por Deus, remido por Cristo, santificado pelo Espírito e chamado a viver neste mundo uma vida conforme com esta dignidade.

Àqueles que compartilham connosco a herança de Abraão, «nosso pai na fé» (cf. Rom 4, 11-12), (88) e a tradição do Antigo Testamento, ou seja, os Judeus, e àqueles que, como nós, crêem em Deus justo e misericordioso, ou seja, os Muçulmanos, dirijo igualmente este apelo, que desejo fazer extensivo também a todos os seguidores das grandes religiões do mundo.

O encontro de 27 de Outubro do ano passado em Assis, a cidade de São Francisco, para rezarmos e nos empenharmos pela paz - cada um na fidelidade à própria profissão religiosa - revelou a todos até que ponto a paz e, como sua necessária condição, o desenvolvimento do «homem todo e de todos os homens», são uma questão também religiosa, e até que ponto a realização plena de uma e do outro depende da fidelidade à nossa vocação de homens e de mulheres que acreditam. É algo que depende, antes de mais, de Deus.

48. A Igreja sabe bem que nenhuma realizacão temporal se identifica com o Reino de Deus, mas que todas as realizações não deixam de reflectir e, em certo sentido, antecipar a glória do Reino que esperamos no fim da história, quando o Senhor retornar. Mas esta expectativa nunca poderá ser uma desculpa para nos desinteressarmos dos homens na sua situação pessoal concreta e na sua vida social, nacional e internacional, uma vez que esta - sobretudo agora - condiciona aquela.

Coisa alguma, embora imperfeita e provisória, de tudo aquilo que se pode e deve realizar, mediante o esforço solidário de todos e com a graça divina num certo momento da história, para tornar «mais humana» a vida dos homens, será perdida ou terá sido em vão. É isto o que ensina o Concilio Vaticano II, num texto luminoso da Constituição pastoral Gaudium et Spes: «Os bens da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, ou seja, todos os bons frutos da natureza e do nosso esforço, que nós tivermos espalhado pela terra segundo o Espírito do Senhor e de acordo com o Seu mandamento, encontrá-los-emos depois, mas purificados de toda a mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal... O Reino já está misteriosamente nesta terra». (89)

O Reino de Deus agora é tornado presente sobretudo pela celebração do Sacramento da Eucaristia, que é o Sacrifício do Senhor. Nesta celebração os frutos da terra e do trabalho humano - o pão e o vinho - são transformados misteriosa, mas real e substancialmente, por obra do Espírito Santo e pelas palavras do ministro, no Corpo e no Sangue do Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus e Filho de Maria, pelo qual o Reino do Pai se tornou presente no meio de nós.

Os bens deste mundo e o trabalho das nossas mãos - o pão e o vinho - servem para a vinda do Reino definitivo, dado que o Senhor, mediante o Seu Espírito, os assume em Si, para se oferecer ao Pai e oferecer-nos a nós consigo, na renovação do seu Sacrifício único, que antecipa o Reino de Deus e anuncia a sua vinda final.

Assim o Senhor, pela Eucaristia, sacramento e sacrifício, une-nos a Si e une-nos entre nós por um vínculo mais forte do que toda a união natural; e, unidos, envia-nos ao mundo inteiro para darmos testemunho, com a fé e com as obras, do amor de Deus, preparando o advento do seu Reino e antecipando-o já, embora na penumbra do tempo presente.

Todos nós, os que participamos na Eucaristia, somos chamados a descobrir, mediante este Sacramento, o sentido profundo da nossa actividade no mundo em prol do desenvolvimento e da paz; e a ir buscar nele as energias para nos empenharmos cada vez mais generosamente, a exemplo de Cristo, que neste Sacramento dá a sua vida pelos seus amigos (cf. Jo 15, 13). O nosso empenho pessoal, como o de Cristo e enquanto a ele unido, não será inútil, mas certamente fecundo.

49. Neste Ano Mariano, que promulguei visando que os fiéis católicos olhem cada vez mais para Maria, que nos precede na peregrinação da fé (90) e com solicitude maternal intercede por nós junto do seu Filho e nosso Redentor, desejo confiar-lhe, a Ela e à sua intercessão a difícil conjuntura do mundo contemporâneo, os esforços que se fazem e se farão, muitas vezes à custa de grandes sofrimentos, desejando contribuir para o verdadeiro desenvolvimento dos povos, proposto e anunciado pelo meu predecessor Paulo VI.

Como fez sempre a piedade cristã, apresentamos à Santíssima Virgem as situações individuais difíceis, para que Ela, expondo-as a seu Filho, obtenda d'Ele que sejam aliviadas e mudadas. Mas apresentamos-lhe também as situações sociais e a própria crise internacional com os seus aspectos preocupantes de miséria, desemprego, falta de alimentos, corrida aos armamentos, desprezo dos direitos humanos e situações ou perigos de conflito parcial ou total. Tudo isto queremos depor filialmente diante do seu «olhar misericordioso», repetindo uma vez mais, com fé e esperança, a antiga antífona: «Santa Mãe de Deus, não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita».

Maria Santíssima, nossa Mãe e Rainha, é aquela que, dirigindo-se a seu Filho, disse: «Não têm mais vinho» (Jo 2, 3); e é também aquela que louva a Deus Pai, porque: «Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os de mãos vazias» (Lc 1, 52-53). A sua solicitude materna interessa-se pelos aspectos pessoais e sociais da vida dos homens sobre a terra. (91)

Diante da Santíssima Trindade, entrego confiante a Maria o que expus nesta Carta para convidar todos os homens a reflectirem e a empenharem-se activamente em promover o verdadeiro desenvolvimento dos povos, como eficazmente afirma a oração da Missa votiva homónima: «O Deus, que destes a todas as gentes uma única origem e quereis reuni-las numa só família, fazei com que os homens se reconheçam irmãos e promovam na solidariedade o desenvolvimento de todos os povos, para que (...) sejam reconhecidos os direitos de cada pessoa e a comunidade humana conheça uma era de igualdade e de paz». (92)

Ao concluir, é isto o que peço, em nome de todos os irmãos e irmãs, aos quais, à maneira de saudação e com bons votos, envio uma especial Bênção.

- Dado em Roma, junto de São Pedro, a 30 de Dezembro do ano de 1987, décimo de Pontificado.