A g n u s D e i

SOLLICITUDO REI SOCIALIS
João Paulo II
30.12.1987

VI
ALGUMAS ORIENTAÇÕES PARTICULARES

41. A Igreja não tem soluções técnicas que possa oferecer para o problema do subdesenvolvimento enquanto tal, como já afirmou o Papa Paulo VI na sua Encíclica. (69) Com efeito, ela não propõe sistemas ou programas económicos e políticos, nem manifesta preferências por uns ou por outros, contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o seu ministério no mundo.

Mas a Igreja é «perita em humanidade», (70) e isso impele-a necessariamente a alargar a sua missão religiosa aos vários campos em que os homens e as mulheres desenvolvem as suas actividades em busca da felicidade, sempre relativa, que é possível neste mundo, em conformidade com a sua dignidade de pessoas.

A exemplo dos meus Predecessores, devo repetir que não se pode reduzir a um problema «técnico» aquilo que, como é o caso do desenvolvimento autêntico, concerne a dignidade do homem e dos povos. Reduzido a isso, o desenvolvimento ficaria esvaziado do seu verdadeiro conteúdo e cometer-se-ia um acto de traição para com o homem e os povos, ao serviço dos quais ele deve ser posto.

É por isso que a Igreja tem uma palavra a dizer, hoje como há vinte anos e também no futuro, a respeito da natureza, das condições, das exigências e das finalidades do desenvolvimento autêntico e, de igual modo, a respeito dos obstáculos que o entravam. Ao fazê-lo, a Igreja está a cumprir a missão de evangelizar, porque dá a sua primeira contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem aplicando-a a uma situação concreta. (71)

Como instrumento para alcançar este objectivo, a Igreja utiliza a sua doutrina social. Na difícil conjuntura presente, tanto para favorecer a correcta formulação dos problemas que se apresentam, como para a sua melhor solução, poderá ser de grande ajuda um conhecimento mais exacto e uma difusão mais ampla do «conjunto dos princípios de reflexão, dos critérios de julgamento e das directrizes de acção» propostos pelo seu ensinamento. (72)

Notar-se-á assim, imediatamente, que as questões que hão-de ser enfrentadas são, antes de mais nada, morais; e que nem a análise do problema do desenvolvimento enquanto tal, nem os meios para superar as presentes dificuldades podem prescindir desta dimensão essencial.

A doutrina social da Igreja não é uma «terceira via» entre capitalismo liberalista e colectivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão. Ela pertence, por conseguinte, não ao dominio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral.

O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja. E, tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas, há-de levar cada uma delas, como consequência, ao «empenhamento pela justica» segundo o papel, a vocação e as circunstâncias pessoais.

O exercício do ministério da evangelização em campo social, que é um aspecto do múnus profético da Igreja, compreende também a denúncia dos males e das injustiças. Mas convém esclarecer que o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia, e esta não pode prescindir daquele, pois é isso que lhe dá a verdadeira solidez e a força da motivação mais alta.

42. A doutrina social da Igreja hoje, mais do que no passado, tem o dever de se abrir para uma perspectiva internacional na linha do Concílio Vaticano II, (73) das Encíclicas mais recentes (74) e, em particular, daquela que estamos a comemorar. (75) Não será supérfluo, portanto, reexaminar e aprofundar sob esta luz, os temas e as orientações característicos, que foram repetidamente ventilados pelo Magistério nestes últimos anos.

Desejo aqui recordar um deles: a opção ou amor preferencial pelos pobres. Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens.

Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, (76) este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-tecto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor: não se pode deixar de ter em conta a existência destas realidades. Ignorá-las significaria tornar-nos como o «rico epulão», que fingia não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão (Lc 16, 19-31). (77)

A nossa vida quotidiana deve ser marcada por estas realidades, como também as nossas decisões em campo político e económico. Os responsáveis das nações e dos próprios Organismos internacionais, igualmente, enquanto lhes incumbe a obrigação de terem sempre presente, como prioritária nos seus planos, a verdadeira dimensão humana, não devem esquecer-se de dar precedência ao fenómeno crescente da pobreza. Os pobres, infelizmente, em vez de diminuírem, multiplicam-se, não só nos países menos desenvolvidos, mas, o que parece não menos escandaloso, também nos que estão mais desenvolvidos.

É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originariamente destinados a todos. (78) O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade, de facto, grava «uma hipoteca social», (79) quer dizer, nela é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens. Nem se há-de descurar, neste empenhamento pelos pobres, aquela forma especial de pobreza que é a privação dos direitos fundamentais da pessoa, em particular, do direito à liberdade religiosa e, ainda, do direito à iniciativa económica.

43. A estimulante preocupação pelos pobres - os quais, segundo a fórmula significativa, são «os pobres do Senhor» (80) - deve traduzir-se, a todos os níveis, em actos concretos até chegar decididamente a uma série de reformas necessárias. Depende de cada uma das situações locais individualizar as mais urgentes e os meios para as realizar. Mas não se hão-de esquecer aquelas que são requeridas pela situação de desequilíbrio internacional, acima descrita.

A este respeito, desejo recordar em particular: a reforma do sistema internacional de comércio, hipotecado pelo proteccionismo e pelo bilateralismo crescente; a reforma do sistema monetário e financeiro mundial, hoje reconhecido insuficiente; a questão dos intercâmbios de tecnologias e do seu uso apropriado; a necessidade de uma revisão da estrutura das Organizações internacionais existentes, no quadro de uma ordem jurídica internacional.

O sistema internacional de comércio hoje discrimina frequentemente os produtos das indústrias incipientes dos países em vias de desenvolvimento, ao mesmo tempo que desencoraja os produtores de matérias-primas. Existe, outrossim, uma espécie de divisão internacional do trabalho, por força da qual os produtos a baixo preço, de alguns países que não dispõem de legislações eficazes sobre o trabalho ou demasiado fracos para as aplicar, são vendidos noutras partes do mundo com lucros consideráveis para as empresas especializadas neste ramo de produção, que não conhece fronteiras.

O sistema monetário e financeiro mundial caracteriza-se pela excessiva flutuação dos métodos de câmbio e de taxas de juros, em detrimento da balança de pagamentos e da situação de endividamento dos países pobres.

As tecnologias e as suas transferencias constituem hoje um dos principais problemas do intercâmbio internacional, com os graves prejuízos que daí resultam. Não são raros os casos de países em vias de desenvolvimento, aos quais se negam as tecnologias necessárias ou se lhes enviam as inúteis.

As Organizações internacionais, segundo a opinião de muitos, parecem encontrar-se num momento da sua existência em que os mecanismos de funcionamento, as despesas administrativas e a sua eficácia requerem um reexame atento e eventuais correcções. Evidentemente, um processo tão delicado não poderá ser levado por diante sem a colaboração de todos. Ora isso pressupõe a superação das rivalidades políticas e a renúncia a toda a pretensão de instrumentalizar as mesmas Organizações, que têm como única razão de ser o bem comum.

As Instituições e as Organizações existentes têm trabalhado bem em favor dos povos. Contudo, a humanidade, ao enfrentar uma fase nova e mais difícil do seu desenvolvimento autêntico, hoje tem necessidade de um grau superior de ordenação a nível internacional, ao serviço das sociedades, das economias e das culturas do mundo inteiro.

44. O desenvolvimento requer sobretudo espírito de iniciativa da parte dos próprios países que necessitam dele. (81) Cada um deve agir segundo as próprias responsabilidades, sem estar à espera de tudo dos países mais favorecidos, e trabalhando em colaboração com os outros que se encontram na mesma situação. Cada um deve descobrir e aproveitar, o mais possível, o espaço da própria liberdade. Cada um deverá tornar-se capaz de iniciativas correspondentes às próprias exigências como sociedade. Cada um deverá também dar-se conta das necessidades reais, assim como dos direitos e dos deveres que se lhe impõem de as satisfazer. O desenvolvimento dos povos começa e encontra a actuação mais indicada no esforço de cada povo pelo próprio desenvolvimento em colaboração com os demais.

Neste sentido, é importante que as próprias nações em vias de desenvolvimento favoreçam a auto-afirmação de cada cidadão, mediante o acesso a uma cultura maior e a uma livre circulação das informações. Tudo o que puder favorecer a alfabetização e a educação de base, que a aprofunde e complete, como propunha a Encíclica Populorum Progressio (82) - objectivos ainda longe de serem realidade em muitas regiões do mundo - é uma contribuição directa para o verdadeiro desenvolvimento.

Para enveredarem por este caminho as mesmas nações deverão discernir as próprias prioridades e reconhecer bem as próprias necessidades, em função das condições peculiares da população, do ambiente geográfico e das tradições culturais.

Algumas nações deverão incrementar a produção alimentar, para terem sempre à disposição o necessário ao sustento e à vida. No mundo contemporâneo - onde a fome faz tantas vítimas, especialmente entre a infância - há exemplos de nações que, sem serem particularmente desenvolvidas, mesmo assim conseguiram alcançar o objectivo da auto-suficiência alimentar, até ao ponto de se tornarem exportadoras de géneros alimentícios.

Outras nações precisam de reformar algumas estruturas injustas e, em particular, as próprias instituições políticas, para substituir regimes corruptos, ditatoriais ou autoritários com regimes democráticos, que favoreçam a participação. É um processo que fazemos votos se alargue e se consolide, porque a «saúde» de uma comunidade política - enquanto expressa mediante a livre participação e responsabilidade de todos os cidadãos na coisa pública, a firmeza do direito e o respeito e a promoção dos direitos humanos - é condição necessária e garantia segura de desenvolvimento do «homem todo e de todos os homens».

45. Tudo isto que acaba de ser dito não poderá realizar-se sem a colaboração de todos, especialmente da comunidade internacional, no quadro de uma solidariedade que abranja a todos, a começar pelos mais marginalizados. Mas as próprias nações em vias de desenvolvimento têm o dever de praticar a solidariedade entre si próprias e com os países mais marginalizados do mundo.

É para desejar, por exemplo, que as nações de uma mesma área geográfica: estabeleçam formas de colaboração que as tornem menos dependentes de produtores mais poderosos; abram as fronteiras aos produtos da mesma zona; examinem as eventuais complementaridades das produções respectivas; se associem para se dotarem dos serviços que cada uma sozinha não está em condições de organizar; e alarguem a sua colaboração ao sector monetário e financeiro.

A interdependência é já uma realidade em muitos destes países. Reconhecê-la, de maneira a torná-la mais activa, representa uma alternativa à excessiva dependência de países mais ricos e poderosos, na linha própria do desenvolvimento desejado, sem se contraporem a ninguém, mas descobrindo e valorizando ao máximo as próprias possibilidades. Os países em vias cle desenvolvimento de uma mesma área geográfica, sobretudo aqueles que estão incluídos sob a designação «Sul», podem e devem constituir - como já se começa a fazer com resultados prometedores - novas organizações regionais, inspiradas em critérios de igualdade, liberdade e participação no concerto das nações.

A solidariedade universal requer, como condição indispensável, a autonomia e a livre disposição de si, também no âmbito interno de associações como as que acabam de ser indicadas. Mas, ao mesmo tempo, requer disponibilidade para aceitar os sacrifícios necessários para o bem da comunidade mundial.