A g n u s D e i

SOLLICITUDO REI SOCIALIS
João Paulo II
30.12.1987

V
UMA LEITURA TEOLÓGICA DOS PROBLEMAS MODERNOS

35. À luz do mesmo carácter moral, que é essencial ao desenvolvimento, devem ser considerados também os obstáculos que a ele se opõem. Se durante os anos decorridos desde a publicação da Encíclica de Paulo VI o desenvolvimento não se verificou - ou se verificou em medida escassa, irregular, se não mesmo contraditória - as razões não podem ser só de natureza económica. Como já se fez alusão, acima, intervêm nele também móbeis políticos. As decisões que impulsionam ou refreiam o desenvolvimento dos povos, outra coisa não são, efectivamente, senão factores de carácter político. Para superar os mecanismos perversos, já recordados, e substituí-los com outros novos, mais justos e mais conformes ao bem comum da humanidade, é necessária uma vontade política eficaz. Infelizmente, depois de se ter analisado a situação, é forçoso concluir que ela foi insuficiente.

Num documento pastoral, como é este, uma análise que se limitasse exclusivamente às causas económicas e políticas do subdesenvolvimento (e guardadas as devidas proporções, também do chamado superdesenvolvimento) ficaria incompleta. É necessário, pois, individualizar as causas de ordem moral que, no plano do comportamento dos homens considerados como pessoas responsáveis, interferem para refrear o curso do desenvolvimento e impedem que o mesmo seja plenamente alcançado.

Do modo análogo, quando há disponibilidade de recursos científicos e técnicos, que, com as indispensáveis decisões concretas de ordem política, devem contribuir para encaminhar finalmente os povos no sentido de um verdadeiro desenvolvimento, a superação dos obstáculos principais verificar-se-á somente a poder de determinações essencialmente morais; estas, para os que acreditam em Deus, de modo especial se forem cristãos, hão-de inspirar-se nos princípios da fé, com o auxílio da graça divina.

36. Por conseguinte, é preciso acentuar que um mundo dividido em blocos, mantidos por ideologias rígidas, onde, em lugar da interdependência e da solidariedade, dominam diferentes formas de imperialismo, não pode deixar de ser um mundo submetido a «estruturas de pecado». O conjunto dos factores negativos, que agem em sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e à exigência de o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar. (64)

Se a situação actual se deve atribuir a dificuldades de índole diversa, não será fora de propósito falar de «estruturas de pecado», as quais, como procurei mostrar na Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia, se radicam no pecado pessoal e, por consequência, estão sempre ligadas a actos concretos das pessoas, que as fazem aparecer, as consolidam e tornam difícil removê-las. (65) E assim, elas reforçam-se, expandem-se e tornam-se fontes de outros pecados, condicionando o comportamento dos homens.

«Pecado» e «estruturas de pecado» são categorias que não se vê com frequência aplicar à situação do mundo contemporâneo. E no entanto não se chegará facilmente à compreensão profunda da realidade, conforme ela se apresenta aos nossos olhos, sem dar um nome à raiz dos males que nos afligem.

É certo que se pode falar de «egoísmo» e de «vistas curtas»; pode fazer-se referência a «cálculos políticos errados», a «decisões económicas imprudentes». E em cada uma destas avaliações nota-se que há um eco de natureza ético-moral. A condição do homem é tal que torna difícil uma análise mais profunda das accções e das omissões das pessoas, sem implicar, duma maneira ou doutra, juízos ou referências de ordem ética.

Esta avaliação, de per si, é positiva, sobretudo quando se torna inteiramente coerente e quando se fundamenta na fé em Deus e na sua lei que ordena o bem e proíbe o mal.

É nisto que consiste a diferença entre o tipo de análise sócio-política e a referência formal ao «pecado» e às «estruturas de pecado». Segundo esta última maneira de ver são tidas em consideração: a vontade de Deus três vezes Santo; o seu plano sobre os homens; e a sua justiça e a sua misericórdia. Deus, rico em misericórdia, redentor do homem, Senhor e doador da vida, exige da parte dos homens atitudes precisas, que se exprimem também em acções ou omissões que concernem o próximo. E isto está em relação com a «segunda tábua» dos dez Mandamentos (cf. Êx 20, 12-17; Deut 5, 16-21): com a inobservância destes, ofende-se a Deus e prejudica-se o próximo, introduzindo no mundo condicionamentos e obstáculos, que vão muito além das acções de uma pessoa e do breve período da sua vida. Interfere-se igualmente no processo do desenvolvimento dos povos, cujo atraso cuja lentidão devem ser julgados também sob esta luz.

37. A esta análise genérica de ordem religiosa, podem acrescentar-se algumas considerações particulares para observar que entre as acções e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as «estruturas» a que elas induzem, as mais características hoje parecem ser sobretudo duas: por um lado, há a avidez exclusiva do lucro; e, por outro lado, a sede do poder, com o objectivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: «a qualquer preço». Por outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveís.

Embora as duas atitudes de per si sejam separáveis, de modo que uma poderia apresentar-se sem a outra, ambas se encontram - no panorama que se depara aos nossos olhos - indissoluvelmente unidas, quer predomine uma quer a outra.

Obviamente que não são só os indivíduos a tornarem-se vítimas desta dúplice atitude de pecado; podem sê-lo também as nações e os blocos. E isto favorece ainda mais a introducção das «estruturas de pecado» de que falei. Se certas formas modernas de «imperialismo» se considerassem à luz destes critérios morais, descobrir-se-ia que por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia.

Quis introduzir aqui este tipo de análise sobretudo para indicar qual é a verdadeira natureza do mal, com a qual nos deparamos na questão do «desenvolvimento dos povos»: trata-se de um mal moral, fruto de muitos pecados, que produzem «estruturas de pecado». Diagnosticar assim o mal leva a identificar exactamente, ao nível do comportamento humano, o caminho a seguir para o superar.

38. É um caminho longo e complexo, e, para mais, encontra-se sob constante ameaça, quer pela intrínseca fragilidade dos desígnios e realizações humanas, quer pela mutabilidade das circunstâncias externas assaz imprevisíveis. Todavia, é preciso ter a coragem de enveredar por ele e, se já tiverem sido dados alguns passos, ou já tiver sido percorrida uma parte do trajecto, ir até ao fim.

No contexto destas reflexões, a decisão de pôr-se a caminho ou de continuar a marcha comporta, antes de tudo, um valor moral que os homens e as mulheres que acreditam em Deus reconhecem como requerido pela vontade divina, único e verdadeiro fundamento de uma ética absolutamente vinculante.

É para desejar que mesmo os homens e as mulheres desprovidos de uma fé explícita venham a convencer-se de que os obstáculos interpostos ao desenvolvimento integral, não são apenas de ordem económica, mas dependem de atitudes mais profundas que, para o ser humano, se configuram em valores absolutos. Por isso, é de esperar que todos aqueles que em relação aos seus semelhantes são responsáveis, duma maneira ou doutra, por uma «vida mais humana», inspirados ou não por uma fé religiosa, se dêem plenamente conta da urgente necessidade de uma mudança das atitudes espirituais, que determinam o comportamento de cada homem naquilo que diz respeito a si mesmo e nas relações com o próximo, com as comunidades humanas, mesmo as mais distantes, e com a natureza; e isto, em virtude de valores superiores, como o bem comum, ou, para repetir a feliz expressão da Encíclica Populorum Progressio, o pleno desenvolvimento «do homem todo e de todos os homens». (66)

Para os cristãos, como para todos aqueles que reconhecem o significado teológico preciso dal palavra «pecado», a mudança de comportamento, de mentalidade ou de maneira de ser chama-se, na linguagem bíblica, «conversão» (cf. Mc 1, 15; Lc 13, 3. 5; Is 30, 15). Esta conversão designa especificamente uma relação com Deus, com a culpa cometida e com as suas consequências; e, portanto, relação com o próximo, indivíduo ou comunidade. É Deus em «cujas mãos estão os corações dos poderosos» (67) e os de todos os homens, que pode, segundo a sua própria promessa, transformar por obra do seu Espírito os «corações de pedra» em «corações de carne» (cf. Ez 36, 26).

No caminho da desejada conversão, rumo à superação dos obstáculos morais para o desenvolvimento, pode-se já apontar, como valor positivo e moral, a consciência crescente da interdependência entre os homens e as nações. O facto de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral.

Trata-se antes de tudo da interdependência apreendida como sistema determinante de relações no mundo contemporâneo, com as suas componentes - económica, cultural, política e religiosa - e assumida como categoria moral. Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e como «virtude», é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. Esta determinação está fundada na firme convicção de que as causas que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e aquela sede do poder de que se falou. Estas atitudes e estas «estruturas de pecado» só poderão ser vencidas - pressupondo o auxílio da graça divina - com uma atitude diametralmente oposta: a aplicacão em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para «perder-se» em benefício do próximo em vez de o explorar, e para «servi-lo» em vez de o oprimir para proveito próprio (cf. Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27).

39. A prática da solidariedade no interior de cada sociedade é válida, quando os seus membros se reconhecem uns aos outros como pessoas. Aqueles que contam mais, dispondo de uma parte maior de bens e de serviços comuns, hão-de sentir-se responsáveis pelos mais fracos e estar dispostos a compartilhar com eles o que possuem. Por seu lado, os mais fracos, na mesma linha de solidariedade, não devem adoptar uma atitude meramente passiva ou destrutiva do tecido social; mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes compete para o bem de todos. Os grupos intermédios, por sua vez, não deveriam insistir egoisticamente nos seus próprios interesses, mas respeitar os interesses dos outros.

Sinais positivos no mundo contemporâneo são, ainda, a maior consciência de solidariedade dos pobres entre si, as suas intervenções de apoio recíproco e as manifestações públicas no cenário social sem fazer recurso à violência, mas fazendo presentes as próprias necessidades e os próprios direitos perante a ineficácia e a corrupção dos poderes públicos. Em virtude do seu peculiar compromisso evangélico, a Igreja sente-se chamada a estar ao lado das multidões pobres, a discernir a justiça das suas solicitações e a contribuir para as satisfazer, sem perder de vista o bem dos grupos no quadro do bem comum.

O mesmo critério aplica-se, por analogia, nas relações internacionais. A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os bens da criação são destinados a todos: aquilo que a indústria humana produz, com a transformação das matérias-primas e com a contribuição do trabalho, deve servir igualmente para o bem de todos.

Superando os imperialismos de todo o género e os desígnios de conservar a própria hegemonia, as nações mais fortes e mais dotadas devem sentir-se moralmente responsáveis pelas outras, a fim de ser instaurado um verdadeiro sistema internacional, que se apoie no fundamento da igualdade de todos os povos e seja regido pelo indispensável respeito das suas legítimas diferenças. Os países economicamente mais débeis, ou que se encontram nos limites da sobrevivência, com a assistência dos outros povos e da comunidade internacional, hão-de ser postos em condições de dar também eles uma contribuição para o bem comum, mediante os seus tesouros de humanidade e de cultura que, de outro modo, se perderiam para sempre.

A solidariedade ajuda-nos a ver o «outro» - pessoa, povo ou nação - não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso «semelhante», um «auxílio» (cf. Gén 2, 18. 20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus. Daqui a importância de despertar a consciência religiosa dos homens e dos povos.

Assim, a exploração, a opressão e o aniquilamento dos outros são excluídos. Estes factos, na divisão actual do mundo em blocos contrapostos, vão confluir no perigo de guerra e na preocupação excessiva pela própria segurança, muitas vezes à custa da autonomia, da livre decisão e da própria integridade territorial das nações mais débeis, que estão abrangidas nas chamadas «zonas de influência» ou nos «cinturões de segurança».

As «estruturas de pecado» e os pecados que nelas vão convergir opõem-se com igual radicalidade à paz e ao desenvolvimento, porque o desenvolvimento, na conhecida expressão da Encíclica de Paulo VI, é «o novo nome da paz».(68)

Deste modo, a solidariedade que nós propomos é caminho para a paz e, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento. Com efeito, a paz do mundo é inconcebível se não se chegar, por parte dos responsáveis, ao reconhecimento de que a interdependência exige por si mesma a superação da política dos blocos, a renúncia a todas as formas de imperialismo económico, militar ou político, e a transformação da recíproca desconfiança em colaboração. Esta última, precisamente, é o procedimento próprio da solidariedade entre os indivíduos e entre as nações.

O lema do Pontificado do meu venerável predecessor Pio XII era Opus iustitiae pax: a paz é o fruto da justiça. Hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax: a paz é o fruto da solidariedade.

A meta da paz, tão desejada por todos, será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor.

40. A solidariedade é indubitavelmente uma virtude cristã. Na exposição que precede já foi possível entrever numerosos pontos de contacto entre ela e a caridade, sinal distintivo dos discípulos de Cristo (cf. Jo 13, 35).

À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: «dar a vida pelos próprios irmãos» (cf. 1 Jo 3, 16).

E então, a consciência da paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os homens em Cristo, «filhos no Filho», e da presença e da acção vivificante do Espírito Santo conferirá ao nosso olhar para o mundo como que um novo critério para o interpretar. Por cima dos vínculos humanos e naturais, já tão fortes e estreitos, delineia-se, à luz da fé, um novo modelo de unidade do género humano, no qual deve inspirar-se em última instância a solidariedade. Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra «comunhão». Esta comunhão, especificamente cristã, ciosamente preservada, alargada e enriquecida com o auxílio do Senhor, é a alma da vocação da Igreja para ser «sacramento», no sentido já indicado.

A solidariedade, portanto, deve contribuir para a realização deste desígnio divino, tanto no plano individual como no da sociedade nacional e internacional. Os «mecanismos perversos» e as «estruturas de pecado», de que falámos, só poderão ser vencidos mediante a prática daquela solidariedade humana e cristã, a que a Igreja convida e que ela promove incansavelmente. Só desta maneira muitas energias positivas poderão soltar-se inteiramente, em prol do desenvolvimento e da paz.

Muitos Santos canonizados pela Igreja oferecem admiráveis testemunhos desta solidariedade e podem servir de exemplo nas difíceis circunstâncias actuais. Entre todos, quereria recordar: São Pedro Claver, que se pôs ao serviço dos escravos, em Cartagena das Índias; e São Maximiliano Maria Kolbe, que ofereceu a sua vida em favor de um prisioneiro que lhe era desconhecido, no campo de concentração de Auschwitz-Oswiecim.