A g n u s D e i

SOLLICITUDO REI SOCIALIS
João Paulo II
30.12.1987

II
NOVIDADE DA ENCÍCLICA POPULORUM PROGRESSIO

5. Já aquando da sua publicação, o documento do Papa Paulo VI atraiu a atenção da opinião pública pela sua novidade. Deu-se o ensejo de verificar, concretamente e com grande clareza, as características mencionadas, da continuidade e do renovamento, no âmago da doutrina social da Igreja. Por isso, o intuito de descobrir numerosos aspectos deste ensinamento, mediante uma releitura atenta da Encíclica, constituirá o fio condutor das presentes reflexões.

Mas, primeiramente, desejo deter-me na data de publicação: o ano de 1967. O próprio facto de o Papa Paulo VI ter tomado a decisão de publicar uma Encíclica social naquele ano, convida a considerar o documento em relação com o Concílio Euménico Vaticano II, que tinha sido encerrado a 8 de Dezembro de 1965.

6. Neste facto devemos ver algo mais do que uma simples proximidade cronológica. A Encíclica Populorum Progressio apresenta-se, de certo modo, como um documento de aplicação dos ensinamentos do Concílio. E isto, não apenas porque ela faz contínuas referências aos textos conciliares, (8) mas porque brota da preocupação da Igreja que inspirou todo o trabalho conciliar - de modo particular a Constituição pastoral Gaudium et Spes - ao coordenar e desenvolver não poucos temas do seu ensinamento social.

Podemos dizer, portanto, que a Encíclica Populorum Progressio é como que a resposta ao apelo conciliar, contido logo no início da Constituição Gaudium et Spes: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos do Cristo; e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração». (9) Estas palavras exprimem o motivo fundamental que inspirou o grande documento do Concílio, o qual parte da verificação do estado de miséria e de subdesenvolvimento, em que vivem milhões e milhões de seres humanos.

Esta miséria e este subdesenvolvimento são, com outros nomes, as «tristezas e as angústias» de hoje, «sobretudo dos pobres»; diante deste vasto panorama de dor e de sofrimento, o Concílio quis abrir horizontes de alegria e de esperança. E foi este mesmo objectivo que teve em vista a Encíclica de Paulo VI, em plena fidelidade à inspiração conciliar.

7. Até mesmo na ordem temática, a Encíclica, atendo-se à grande tradição do ensinamento social da Igreja, retoma de maneira directa a exposição nova e a rica síntese, que o Concílio elaborou, nomeadamente na Constituição Gaudium et Spes.

Quanto aos conteúdos e aos temas, repropostos pela Encíclica, devem salientar-se: a consciência do dever que tem a Igreja, «perita em humanidade», de «escrutar os sinais dos tempos e de interpretá-los à luz do Evangelho»; (10) a consciência, igualmente profunda, da sua missão de «serviço», distinta da função do Estado, mesmo quando ela se preocupa com a sorte das pessoas em concreto; (11) a referência às diferenças clamorosas nas situações destas mesmas pessoas; (12) a confirmação do ensinamento conciliar, eco fiel da tradição secular da Igreja, a respeito da «destinação universal dos bens»; (13) o apreço pela cultura e pela civilização técnica que contribuem para a libertação do homem, (14) sem deixar de reconhecer os seus limites; (15) por fim, sobre o tema do desenvolvimento, que é específico da Encíclica, a insistência no «dever gravíssimo» que incumbe às nações mais desenvolvidas, de «ajudar os países que estão em vias de desenvolvimento». (16) O próprio conceito de desenvolvimento, proposto pela Encíclica, promana directamente da maneira como a Constituição pastoral põe este problema. (17)

Estas e outras referências explícitas à Constituição pastoral levam à conclusão de que a Encíclica se apresenta como uma aplicação do ensinamento conciliar em matéria social ao problema específico do desenvolvimento e do subdesenvolvimento dos povos.

8. A breve análise, agora feita, ajuda-nos a avaliar melhor a novidade da Encíclica, que se pode condensar em três pontos.

O primeiro é constituído pelo próprio facto de se tratar de um documento emanado pela máxima autoridade da Igreja católica e destinado, simultaneamente, à mesma Igreja e «a todos os homens de boa vontade», (18) sobre um assunto que à primeira vista é só económico e social: o desenvolvimento dos povos. Aqui o termo «desenvolvimento» é tirado do vocabulário das ciências sociais e económicas. Sob este aspecto, a Encíclica Populorum Progressio situa-se directamente na esteira da Encíclica Rerum Novarum, que trata da «condição dos operários». (19) Considerados superficialmente, ambos os temas poderiam parecer alheios à legítima preocupação da Igreja, vista como instituição religiosa; aliás, o do «desenvolvimento» ainda mais do que o da «condição operária».

Em continuidade com a Encíclica de Leão XIII, é preciso reconhecer ao documento de Paulo VI o mérito de ter salientado o carácter ético e cultural da problemática relativa ao desenvolvimento e, igualmente, a legitimidade e a necessidade da intervenção da Igreja em tal campo.

Desta forma, a doutrina social cristã reivindicou mais uma vez o seu carácter de aplicação da Palavra de Deus à vida dos homens e da sociedade, assim como às realidades terrenas que com elas se relacionam, oferecendo «princípios de reflexão», «critérios de julgamento» e «directrizes de acção». (20) Ora, no documento de Paulo VI encontram-se estes três elementos, com uma orientação predominantemente prática, isto é, ordenada para o comportamento moral.

Por conseguinte, quando a Igreja se ocupa do «desenvolvimento dos povos» não pode ser acusada de exorbitar do seu próprio campo de competência e, muito menos, do mandato recebido do Senhor.

9. O segundo ponto em que há novidade na Populorum Progressio, refere-se a uma amplitude de horizontes abertos quanto ao conjunto do que comummente se designa como «questão social».

Na verdade, a Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII já tinha enveredado pelo caminho desses horizontes mais amplos; (21) e o Concílio, na Constituição Gaudium et Spes, tinha-se feito eco disso. (22) Contudo, o magistério social da Igreja ainda não tinha chegado a afirmar, com toda a clareza, que a «questão social tinha adquirido uma dimensão mundial», (23) nem tinha feito desta afirmação e da análise que a acompanha uma «directriz de acção», como faz o Papa Paulo VI na sua Encíclica.

Uma tomada de posição assim tão explícita apresenta uma grande riqueza de conteúdo, que convém aqui fazer ver.

Antes de tudo, é preciso eliminar um possível equívoco. Reconhecer que a «questão social» assumiu uma dimensão mundial não significa de modo algum que se tenha atenuado a sua força de incidência, ou que tenha perdido a sua importância em âmbito nacional e local. Significa, pelo contrário, que as problemáticas, nas empresas de trabalho ou no movimento operário e sindical de um determinado país ou região, não devem ser consideradas ilhas dispersas, sem comunicação, mas que dependem em medida crescente do influxo de factores que existem para além dos confins regionais e das fronteiras nacionais.

Infelizmente, sob o aspecto económico, os países em vias de desenvolvimento são muito mais do que os desenvolvidos: as multidões humanas privadas dos bens e dos serviços proporcionados pelo desenvolvimento, são bastante mais numerosas do que as que dispõem deles.

Estamos, pois, diante dum grave problema de distribuição desigual dos meios de subsistência, destinados na origem a todos os homens; e o mesmo se diga também dos benefícios que deles derivam. E isto acontece não por responsabilidade das populações em dificuldade nem, menos ainda, por uma espécie de fatalidade, dependente das condições naturais ou do conjunto das circunstâncias.

A Encíclica de Paulo VI, ao declarar que a questão social adquiriu uma dimensão mundial, propõe-se, antes de mais nada, apontar um facto de ordem moral, que tem o seu fundamento na análise objectiva da realidade. Segundo as próprias palavras da Encíclica, «cada um deve tomar consciência» deste facto, (24) precisamente porque ele concerne de modo directo a consciência, que é a fonte das decisões morais.

Neste quadro, a novidade da Encíclica não consiste tanto na afirmação, de carácter histórico, da universalidade da questão social, quanto na avaliação moral desta realidade. Portanto, os responsáveis da coisa pública, os cidadãos dos países ricos pessoalmente considerados, de modo especial se forem cristãos, têm a obrigação moral - de acordo com o respectivo grau de responsabilidade - de ter em consideração, nas decisões pessoais e governamentais, esta relação de universalidade, esta interdependência que subsiste entre os seus comportamentos e a miséria e o subdesenvolvimento de tantos milhões de homens. Com maior precisão, a Encíclica de Paulo VI traduz a obrigação moral nos termos de «dever de solidariedade»; (25) e esta afirmação, embora no mundo muitas situações tenham mudado, tem hoje a mesma força e validade que tinha quando foi escrita.

Por outro lado, sem sair das linhas desta visão moral, a novidade da Encíclica consiste ainda na orientação de fundo, em virtude da qual a própria concepção do desenvolvimento, se for considerado na perspectiva da interdependência universal, muda de forma notável. O verdadeiro desenvolvimento não pode consistir na simples acumulação de riqueza e na maior disponibilidade dos bens e dos serviços, se isso for obtido à custa do subdesenvolvimento das multidões, e sem a consideração devida pelas dimensões sociais, culturais e espirituais do ser humano. (26)

10. Como terceiro ponto, a Encíclica trouxe uma contribuição notável de novidade à doutrina social da Igreja, no seu conjunto, e à própria concepção de desenvolvimento. Esta novidade pode encontrar-se numa frase, que se lê no parágrafo conclusivo do documento e que pode ser considerada como a fórmula que a resume, além de ser aquilo que lhe dá uma classificação histórica: «o desenvolvimento é o novo nome da paz». (27)

Na realidade, se a questão social adquiriu uma dimensão mundial, foi porque a exigência de justiça só pode ser satisfeita neste mesmo plano. Não atender a tal exigência poderia propiciar o irromper duma tentação de resposta violenta, por parte das vítimas da injustiça, como acontece na origem de muitas guerras. As populações excluídas da repartição equitativa dos bens, destinados originariamente a todos, poderiam perguntar-se: por que não responder com a violência a quantos são os primeiros a tratar-nos com violência? E se a situação se examinar à luz da divisão do mundo em blocos ideológicos - já existente em 1967 - com as consequentes repercussões e dependências económicas e políticas que isso acarreta, o perigo revela-se muito maior.

A esta prirneira consideração sobre o dramático conteúdo da fórmula da Encíclica acrescenta-se outra, a que o mesmo documento faz alusão: (28) como justificar o facto de que ingentes somas de dinheiro, que poderiam e deveriam ser destinadas a incrementar o desenvolvimento dos povos, em vez disso são utilizadas para o enriquecimento de indivíduos ou grupos, ou então para aumentar os arsenais de armas, quer nos países desenvolvidos, quer naqueles que estão em vias de desenvolvimento, alterando assim as verdadeiras prioridades? Isto é ainda mais grave se se tiverem em conta as dificuldades que, não raro, obstaculizam a passagem directa dos capitais destinados a prestar ajuda aos países a braços com a necessidade. Se «o desenvolvimento é o novo nome da paz», a guerra e os preparativos militares são o maior inimigo do desenvolvimento integral dos povos.

Sendo assim, à luz da expressão do Papa Paulo VI, somos convidados a rever o conceito de desenvolvimento, que não coincide certamente com o que algumas vezes se faz, limitando-se a satisfazer as necessidades materiais, mediante o aumento dos bens, sem prestar atenção aos sofrimentos da maioria e fazendo do egoísmo das pessoas e das nações a principal motivação. Como perspicazmente nos recorda a Carta de São Tiago: é daqui que «vêm as guerras e os conflitos ... Das paixões que lutam nos vossos membros. Cobiçais e não conseguis possuir...» (Tg 4, 1-2).

Pelo contrário, num mundo diverso, dominado pela solicitude do bem comum de toda a humanidade, ou seja pela preocupação com o «desenvolvimento espiritual e humano de todos», e não com a busca do proveito particular, a paz seria possível, como fruto de uma «justiça mais perfeita entre os homens». (29)

Esta novidade da Encíclica tem também um valor permanente e actual, tomando em conta a mentalidade de hoje, que é tão sensível ao vínculo que existe entre o respeito da justiça e a instauração da verdadeira paz.