A g n u s D e i

REDEMPTORIS MISSIO
João Paulo II
07.12.1990

VIII
A ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA

87. A actividade missionária exige uma espiritualidade específica, que diz respeito de modo particular, a quantos Deus chamou a serem missionários.

Deixar-se conduzir pelo Espírito

Tal espiritualidade exprime-se, antes de mais, no viver em plena docilidade ao Espírito, e em deixar-se plasmar interiormente por Ele, para se tornar cada vez mais semelhante a Cristo. Não se pode testemunhar Cristo sem espelhar a Sua imagem, que é gravada em nós por obra e graça do Espírito. A docilidade ao Espírito permitirá acolher os dons da fortaleza e do discernimento, que são traços essenciais da espiritualidade missionária.

Paradigmático é o caso dos Apóstolos, que durante a vida pública do Mestre, apesar do seu amor por Ele e da generosidade da resposta ao Seu chamamento, se mostram incapazes de compreender as Suas palavras, e renitentes em segui-l'O pelo caminho do sofrimento e da humilhação. O Espírito transformá-los-á em testemunhas corajosas de Cristo e anunciadores esclarecidos da Sua Palavra: será o Espírito que os conduzirá pelos caminhos árduos e novos da missão.

Hoje a missão continua a ser difícil e complexa, como no passado, e requer igualmente a coragem e a luz do Espírito: vivemos tantas vezes o drama da primitiva comunidade cristã, que via forças descrentes e hostis « coligarem-se contra o Senhor e contra o seu Cristo » (At 4, 26). Como então, hoje é necessário rezar para que Deus nos conceda o entusiasmo para proclamar o Evangelho. Temos de prescrutar os caminhos misteriosos do Espírito e, por Ele, nos deixarmos conduzir para a verdade total (cf. Jo 16, 13).

Viver o mistério de « Cristo enviado »

88. Nota essencial da espiritualidade missionária é a comunhão íntima com Cristo: não é possível compreender e viver a missão, senão na referência a Cristo, como Aquele que foi enviado para evangelizar. Paulo descreve assim o Seu viver: « tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus: Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus; mas despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhantes aos homens. Tido pelo aspecto como homem, humilhou-se a Si mesmo, feito obediente até à morte de cruz » (Fp 2, 5-8).

Aqui aparece descrito o mistério da encarnação e da redenção, como despojamento total de Si mesmo que leva Cristo a viver plenamente a condição humana e a aderir até ao fim ao desígnio do Pai. Trata-se de um aniquilamento que, todavia, está permeado de amor e exprime o amor. Muitas vezes a missão percorre esta mesma estrada, com o seu ponto de chegada aos pés da Cruz.

Ao missionário, pede-se que « renuncie a si mesmo e a tudo aquilo que antes possuía como seu, e se faça tudo para todos »:172 na pobreza que o torna livre para o Evangelho, no distanciar-se de pessoas e bens do seu ambiente originário para se fazer irmão daqueles a quem é enviado, levando-lhes Cristo salvador. A espiritualidade do missionário conduz a isto: « com os fracos, fiz-me fraco (...) Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a todo 0 custo. Tudo faço pelo Evangelho... » (1 Cor 9, 22-23).

Precisamente porque « enviado », o missionário experimenta a presença reconfortante de Cristo, que o acompanha em todos os momentos de sua vida: « não tenhas medo ( ... ) porque Eu estou contigo » (At 18, 9-10), e espera-o no coração de cada homem.

Amar a igreja e os homens como Jesus os amou

89. A espiritualidade missionária caracteriza-se, além disso, pela caridade apostólica - a de Cristo que veio « para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos » (Jo 11, 52), o Bom Pastor que conhece as suas ovelhas, procura-as e oferece a sua vida por elas (cf. Jo 10). Quem tem espírito missionárío sente o ardor de Cristo pelas almas e ama a Igreja como Cristo a amou.

O missionário é impelido pelo « zelo das almas », que se inspira na própria caridade de Cristo, feita de atenção, ternura, compaixão, acolhimento, disponibilidade e empenhamento pelos problemas da gente. O amor de Jesus en volvia o mais fundo da pessoa: Ele, que « sabia o que há em cada homem » (Jo 2, 25 ), amava a todos para lhes oferecer a redenção e sofria quando esta era rejeitada.

O missionário é o homem da caridade: para poder anunciar a todo o irmão que Deus o ama e que ele próprio pode amar, ele terá de usar de caridade para com todos, gastando a vida ao serviço do próximo. Ele é o « irmão universal », que leva consigo o espírito da Igreja, a sua abertura e amizade por todos os povos e por todos os homens, particularmente pelos mais pequenos e pobres. Como tal, supera as fronteiras e as divisões de raça, casta, ou ideologia: é sinal do amor de Deus no mundo, que é um amor, sem qualquer exclusão nem preferência.

Por fim, como Cristo, o missionário deve amar a Igreja: « Cristo amou a Igreja e entregou-se a Si mesmo por ela » (Ef 5, 25). Este amor, levado até ao extremo de dar a vida, constitui um ponto de referência para ele (...) Só um amor profundo pela Igreja poderá sustentar o zelo do missionário: a sua obsessão de cada dia - a exemplo de S. Paulo - é « o cui dado de todas as Igrejas » (2 Cor 11, 28)! Para qualquer missionário e comunidade, « a fidelidade a Cristo não pode ser separada da fidelidade à Sua Igreja ».173

O verdadeiro missionário é o santo

90. O chamamento à missão deriva por sua natureza da vocação à santidade. Todo o missionário só o é autenticamente, se se empenhar no caminho da santidade: « a santidade deve-se considerar um pressuposto fundamental e uma condição totalmente insubstituível para se realizar a missão de salvação da Igreja ».174

A universal vocação à santidade está estritamente ligada à universal vocação à missão: todo o fiel é chamado à santidade e à missão. Este foi o voto ardente do Concílio ao desejar, « com a luz de Cristo reflectida no rosto da Igreja, iluminar todos os homens, anunciando o Evangelho a toda a criatura ».175 A espiritualidade missionária da Igreja é um caminho orientado para a santidade.

O renovado impulso para a missão ad gentes exige missionários santos. Não basta explorar com maior perspicácia as bases teológicas e bíblicas da fé, nem renovar os métodos pastorais, nem ainda organizar e coordenar melhor as forças eclesiais: é preciso suscitar um novo « ardor de santidade » entre os missionários e em toda a comunidade cristã, especialmente entre aqueles que são os colaboradores mais íntimos dos missionários.176

Pensemos, caros Irmãos e Irmãs, no ímpeto missionário das primitivas comunidades cristãs. Não obstante a escassez de meios de transporte e comunicação de então, o anúncio do Evangelho atingiu, em pouco tempo, os confins do mundo. E tratava-se da religião de um Homem morto na cruz, « escândalo para os judeus e loucura para os pagãos » (1 Cor 1, 23)! Na base deste dinamismo missionário, estava a santidade dos prímeiros cristãos e das primeiras comunidades.

91. Dirijo-me aos baptizados das jovens comunidades e das jovens Igrejas. Vós sois hoje a esperança desta nossa Igreja, que tem já dois mil anos: sendo jovens na fé, deveis ser como os primeiros cristãos, irradiando entusiasmo e coragem, numa generosa dedicação a Deus e ao próximo: numa palavra, deveis seguir pelo caminho da santidade. Só assim podereis ser sinal de Deus no mundo, revivendo em vossos Países a epopeia missionária da Igreja primitiva. E sereis também fermento de espírito missionário para as Igrejas mais antigas.

Por sua vez, os missionários reflictam sobre o dever da santidade, que o dom da vocação Ihes exige, renovando-se dia a dia em seu espírito, e actualizando também a sua formação doutrinal e pastoral. O missionário deve ser « um contemplativo na acção ». Encontra resposta aos problemas, na luz da palavra de Deus e na oração pessoal e comunitária. O contacto com os representantes das tradições espirituais não cristãs e, em particular, as da Ásia, persuadiu-me de que o fruto da missão depende em grande parte da contemplação. O missionário, se não é contemplativo, não pode anunciar Cristo de modo credível. Ele é uma testemunha da experiência de Deus e deve poder dizer como os Apóstolos: « O que nós contemplamos, ou seja o Verbo da vida ( ... ) nós vo-l'O anunciamos » (1 Jo 1, 1-3).

O missionário é o homem das Bem-aventuranças. Na verdade, no « discurso apostólico » (cf. Mt 10), Jesus dá instruções ao Doze, antes de os enviar a evangelizar, indicando-lhes os caminhos da missão: pobreza, humildade, desejo de justiça e paz, aceitação do sofrimento e perseguição, caridade que são precisamente as Bem-aventuranças, concretizadas na vida apostólica (Mt 5, 1-12). Vivendo as Bem-aventuranças, o missionário experimenta e demonstra concretamente que o Reino de Deus já chegou, e ele já o acolheu. A característica de qualquer vida missionária autêntica é a alegria interior que vem da fé. Num mundo angustiado e oprimido por tantos problemas, que tende ao pessimismo, o proclamador da « Boa Nova » deve ser um homem que encontrou, em Cristo, a verdadeira esperança.