A g n u s D e i

REDEMPTORIS MISSIO
João Paulo II
07.12.1990

III
O ESPÍRITO SANTO PROTAGONISTA DA MISSÃO

21. « No ápice da missão messianica de Jesus, o Espírito Santo aparece-nos, no mistério pascal, em toda a Sua subjectividade divina, como Aquele que deve continuar agora a obra salvífica, radicada no sacrifício da cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada aos homens: aos Apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o sujeito protagonista transcendente da realização dessa obra, no espírito do homem e na história do mundo ».31

Verdadeiramente o Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial: a Sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes, como se vê na Igreja primitiva pela conversão de Cornélio (cf. At 10), pelas decisões acerca dos problemas surgidos (cf. At 15), e pela escolha dos territórios e povos (cf. At 16, 6 s). O Espírito Santo age através dos Apóstolos, mas, ao mesmo tempo, opera nos ouvintes: « pela Sua acção a Boa Nova ganha corpo nas consciências e nos corações humanos, expandindo-se na história. Em tudo isto, é o Espírito Santo que dá a vida ».32

O envio «até aos confins da terra » (At 1, 8)

22. Todos os evangelistas, ao narrarem o encontro de Cristo Ressuscitado com os Apóstolos, concluem com o mandato missionário: « foi-Me dado todo o poder no céu e na terra Ide, pois, ensinai todas as nações (...) Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo » (Mt 28, 18-20; cf. Mc 16, 15-18; Lc 24, 46-49; Jo 20, 21-23).

Esta missão é envio no Espírito, como se vê claramente no texto de S. João: Cristo envia os Seus, ao mundo, como o Pai O enviou a Ele; e, para isso, concede-lhes o Espírito. Lucas põe em estreita relação o testemunho que os Apóstolos deverão prestar de Cristo com a acção do Espírito, que os capacitará para cumprir o mandato recebido.

23. As várias formas do « mandato missionário » contêm pontos em comum, mas também acentuações próprias de cada evangelista; dois elementos , de facto , encontram- se em to das as versões. Antes de mais, a dimensão universal da tarefa confiada aos Apóstolos: « todas as nações » (Mt 28, 19); « pelo mundo inteiro, a toda a criatura » (Mc 16, 15); « todos os povos » (Lc 24, 47); « até aos confins do mundo » (At 1, 8). Em segundo lugar, a garantia, dada pelo Senhor, de que, nesta tarefa, não ficarão sozinhos, mas receberão a força e os meios para desenvolver a sua missão; estes são a presença e a potência do Espírito e a assistência de Jesus: « eles, partindo, foram pregar por toda a parte, e o Senhor cooperava com eles » (Mc 16, 20).

Quanto às diferenças de acentuação no mandato, Marcos apresenta a missão como proclamação ou kerigma: « anunciai o Evangelho » (Mc 16, 15). O seu evangelho tem como objectivo levar o leitor a repetir a confissão de Pedro: « Tu és o Cristo » (Mc 8, 29) e a dizer como o centurião romano diante de Jesus morto na cruz: « verdadeiramente este Homem era o Filho de Deus » (Mc 15, 39). Em Mateus, o acento missionário situa-se na fundação da Igreja e no seu ensinamento (cf. Mt 28, 19-20; 16, 18); nele, o mandato evidencia a proclamação do Evangelho, mas enquanto deve ser completada por uma específica catequese de ordem eclesial e sacramental. Em Lucas, a missão é apresentada como um testemunho (cf. Lc 24, 48; At 1, 8), principalmente da ressurreição (At 1, 22); o missionário é convidado a crer na potência transformadora do Evangelho e a anunciar a conversão ao amor e à misericórdia de Deus — que Lucas ilustra muito bem —, a experiência de uma libertação integral até à raiz de todo o mal, o pecado.

João é o único que fala explicitamente de « mandato » — palavra equivalente a « missão » — e une directamente a missão confiada por Jesus aos seus discípulos, com aquela que Ele mesmo recebeu do Pai: « assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Jesus, dirigindo-se ao Pai, diz: « assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo » (Jo 17, 18). Todo o sentido missionário do Evangelho de S. João se pode encontrar na « Oração Sacerdotal »: a vida eterna é « que Te conheçam a Ti, único Deus Verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jo 17, 3). O fim último da missão é fazer participar na comunhão que existe entre o Pai e o Filho: os discípulos devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai e no Filho, para que o mundo conheça e creia (cf. Jo 17, 21.23). Trata-se de um texto de grande alcance missionário, fazendo-nos entender que somos missionários sobretudo por aquilo que se é, como Igreja que vive profundamente a unidade no amor, e não tanto por aquilo que se diz ou faz.

Portanto os quatro Evangelhos, na unidade fundamental de mesma missão, manifestam todavia um pluralismo, que reflecte as diversas experiências e situações das primeiras comunidades cristãs. Também esse pluralismo é fruto do impulso dinamico do Espírito, convidando a prestar atenção aos vários carismas missionários e às múltiplas condições ambientais e humanas. No entanto, todos os evangelistas sublinham que a missão dos discípulos é colaboração com a de Cristo: « Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo » (Mt 28, 20). Assim a missão não se baseia na capacidade humana, mas na força de Cristo ressuscitado.

O Espírito guia a missão

24. A missão da Igreja, tal como a de Jesus, é obra de Deus, ou, usando uma expressão frequente em S. Lucas, é obra do Espírito Santo. Depois da ressurreição e ascenção de Jesus, os Apóstolos viveram uma intensa experiência que os transformou: o Pentecostes. A vinda do Espírito Santo fez deles testemunhas e profetas (cf. At 1, 8; 2, 17-18), infundindo uma serena audácia, que os leva a transmitir aos outros a sua experiência de Jesus e a esperança que os anima. O Espírito deu-lhes a capacidade de testemunhar Jesus « sem medo ».33

Quando os evangelizadores saiem de Jerusalém, o Espírito assume ainda mais a função de « guia » na escolha tanto das pessoas como dos itinerários da missão. A Sua acção manifesta-se especialmente no impulso dado à missão que, de facto, se estende, segundo as palavras de Cristo, desde Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e vai até aos confins do mundo.

Os Actos dos Apóstolos referem seis « discursos missionários », em miniatura, que foram dirigidos aos judeus, nos primórdios da Igreja (cf. At 2, 22-39; 3, 12-26; 4, 9-12; 5, 29-32; 10, 34-43; 13, 16-41). Estes discursos-modelo, pronunciados por Pedro e por Paulo, anunciam Jesus, convidam a « converter-se », isto é, a acolher Jesus na fé e a deixar-se transformar n'Ele, pelo Espírito.

Paulo e Barnabé são impelidos pelo Espírito para a missão entre os pagãos (cf At 13, 46-48), mesmo no meio de tensões e problemas. Como devem viver os pagãos convertidos, a sua fé em Jesus? Ficam eles vinculados à tradição do judaismo e à lei da circuncisão? No primeiro Concílio, que reune em Jerusalem, à volta dos Apóstolos, os membros das diversas Igrejas, é tomada uma decisão considerada como emanada do Espírito Santo: não é necessário que o pagão se submeta à lei judaica para ser cristão (cf At 15, 5-11.28) A partir desse momento, a Igreja abre as suas portas e torna-se a casa onde todos podem entrar e sentir-se à vontade, conservando as próprias tradições e cultura, desde que não estejam em contraste com o Evangelho.

25. Os missionários, seguindo esta linha de acção, tiveram presente os anseios e as esperanças, as aflições e os sofrimentos, a cultura do povo, para lhe anunciar a salvação em Cristo. Os discursos de Listra e de Atenas (cf. At 14, 15-17; 17, 22-31) são considerados modelo para a evangelização dos pagãos: neles, Paulo « dialoga » com os valores culturais e religiosos dos diferentes povos. Aos habitantes da Licaónia, que praticavam uma religião cósmica, Paulo lembra experiências religiosas que se referiam ao cosmos; com os Gregos, discute sobre filo sofia e cita os seus poetas (cf. At 17, 18.26-28). O Deus que vem revelar, já está presente nas suas vidas: de facto, foi Ele Quem os criou, e é Ele que misteriosamente conduz os povos e a história; no entanto, para reconhecerem o verdadeiro Deus, é necessário que abandonem os falsos deuses que eles próprios fabricaram, e se abram Àquele que Deus enviou para iluminar a sua ignorância e satisfazer os anseios dos seus corações (cf. At 17, 27-30). São discursos que oferecem exemplos de inculturação do Evangelho.

Sob o impulso do Espírito, a fé cristã abre-se decididamente às nações pagãs, e o testemunho de Cristo expande-se em direcção aos centros mais importantes do Mediterraneo oriental, para chegar depois a Roma e ao extremo ocidente. É o Espírito que impele a ir sempre mais além, não só em sentido geográfico, mas também ultrapassando barreiras étnicas e religiosas, até se chegar a uma missão verdadeiramente universal.

O Espírito torna missionária toda a Igreja

26. O Espírito impele o grupo dos crentes a « constituirem comunidades », a serem Igreja. Depois do primeiro anúncio de Pedro no dia de Pentecostes e as conversões que se seguiram, forma-se a primeira comunidade (cf. At 2, 42-47; 4, 32-35).

Com efeito, uma das finalidades centrais da missão é reunir o povo de Deus na escuta do Evangelho, na comunhão fraterna, na oração e na Eucaristia. Viver a « comunhão fraterna » (koinonía) significa ter « um só coração e uma só alma » (At 4, 32), instaurando uma comunhão sob os aspectos humano, espiritual e material. A verdadeira comunidade cristã sente necessidade de distribuir os próprios bens, para que não haja necessitados, e todos possam ter acesso a esses bens, « conforme as necessidades de cada um » (At 2, 45; 4, 35). As primeiras comunidades, onde reinava « a alegria e a simplicidade de coração » (At 2, 46), eram dinamicamente abertas e missionárias: « gozavam da estima de todo o povo » (At 2, 47). Antes ainda da acção, a missão é testemunho e irradiação.34

27. Os Actos dos Apóstolos mostram que a missão primeiro se dirigia a Israel, e depois aos pagãos. Para a actuação dessa missão, aparece antes de tudo o grupo dos Doze que, como um corpo guiado por Pedro, proclama a Boa Nova. Depois temos a comunidade dos crentes que, com o seu modo de viver e agir, dá testemunho do Senhor e converte os pagãos (cf. At 2, 46-47). Existem também enviados especiais, destinados a anunciar o Evangelho. Assim a comunidade cristã de Antioquia envia os seus membros em missão: depois de ter jejuado, rezado e celebrado a Eucaristia, ela faz notar que o Espírito escolheu Paulo e Barnabé para serem enviados (cf At 13, 1-4). Logo, nas suas origens, a missão foi vista como um compromiso comunitário e uma responsabilidade da Igreja local, que necessita de « missionários » para se expandir em direcção a novas fronteiras. Ao lado destes enviados, havia outros que testemunhavam espontaneamente a novidade que tinha transformado as suas vidas e uniam à Igreja apostólica, as comunidades em formação.

A leitura dos Actos mostra-nos que, no início da Igreja, a missão ad gentes, embora contando com missionários integralmente dedicados a ela por vocação especial, todavia era considera da como o fruto normal da vida cristã, graças ao compromisso de cada crente actuado através do testemunho pessoal e do anúncio explícito, sempre que possível.

O Espírito está presente e operante em todo o tempo e lugar

28. O Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e nos seus membros, mas a Sua presença e acção são universais, sem limites de espaço nem de tempo.35 O Concílio Vaticano II lembra a obra do Espírito no coração de cada homem, cuidando e fazendo germinar as « sementes do Verbo », presentes nas iniciativas religiosas e nos esforços humanos à procura da verdade, do bem, e de Deus.36

O Espírito oferece ao homem « luz e forças que lhe permitem corresponder à sua altíssima vocação »; graças a Ele, « o homem chega, por meio da fé, a contemplar e saborear o mistério dos planos divinos »; mais ainda, « devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal ».37 Seja como for, a Igreja sabe que o homem, solicitado incessantemente pelo Espírito de Deus, nunca poderá ser totalmente indiferente ao problema da religião, mantendo sempre o desejo de saber, mesmo se confusamente, qual o significado da sua vida, da sua actividade, e da sua morte.38 O Espírito está, portanto, na própria origem da questão existencial e religiosa do homem, que surge não só de situações contingentes, mas sobretudo da estrutura própria do seu ser.39

A presença e acção do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões. Com efeito, Ele está na base dos ideais nobres e das iniciativas benfeitoras da humanidade peregrina: « com admirável providência, o Espírito dirige o curso dos tempos e renova a face da terra ».40

Cristo ressuscitado, « pela virtude do Seu Espírito, actua já nos corações dos homens, não só despertando o desejo da vida futura, mas também alentando, purificando e robustecendo a família humana para tornar mais humana a sua própria vida e submeter a terra inteira a este fim »,41 É ainda o Espírito que infunde as « sementes do Verbo », presentes nos ritos e nas culturas, e as faz maturar em Cristo.42

29. Assim o Espírito que « sopra onde quer » (Jo 3, 8) e que « já estava a operar no mundo, antes da glorificação do Filho »,43 que « enche o universo, abrangendo tudo e de tudo tem conhecimento » (Sab 1, 7), induz-nos a estender o olhar, para podermos melhor considerar a Sua acção, presente em todo o tempo e lugar.44 É uma referência que eu próprio sigo muitas vezes e que me guiou nos encontros com os mais diversos povos. As relações da Igreja com as restantes religiões baseiam-se num duplo aspecto: « respeito pelo homem na sua busca de resposta às questões mais profundas da vida, e respeito pela acção do Espírito nesse mesmo homem ».45 0 encontro interreligioso de Assis, excluída toda e qualquer interpretação equívoca, reforçou a minha convicção de que « toda a oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo, que está misteriosamente presente no coração dos homem ». 46

Este Espírito é o mesmo que agiu na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, e actua na Igreja. Não é de modo nenhum uma alternativa a Cristo, nem vem preencher uma espécie de vazio, como algumas vezes se sugere existir, entre Cristo e o Logos. Tudo quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões, assume um papel de preparação evangélica,47 e não pode deixar de se referir a Cristo, Verbo feito carne pela acção do Espírito, « a fim de, como Homem perfeito, salvar todos os homens e recapitular em Si todas as coisas ». 48

A acção universal do Espírito, portanto, não poder ser separada da obra peculiar que Ele desenvolve no Corpo de Cristo, que é a Igreja.

Sempre é o Espírito que actua, quer quando dá vida à Igreja impelindo-a a anunciar Cristo, quer quando semeia e desenvolve os seus dons em todos os homens e povos, conduzindo a Igreja à descoberta, promoção e acolhimento desses dons, através do diálogo. Qualquer presença do Espírito deve ser acolhida com estima e gratidão, mas o discerni-la compete à Igreja, à qual Cristo deu o Seu Espírito para a guiar até à verdade total (cf. Jo 16, 13).

A actividade missionária està ainda no início

30. O nosso tempo, com uma humanidade em movimento e insatisfeita, exige um renovado impulso na actividade missionária da Igreja. Os horizontes e as possibilidades da missão alargam-se, e é-nos pedida, a nós cristãos, a coragem apostólica, apoiada sobre a confiança no Espírito. Ele é o protagonista da missão!

Na história da humanidade, há numerosas viragens que estimulam o dinamismo missionário, e a Igreja, guiada pelo Espírito, sempre respondeu com generosidade e clarividência. Também não faltaram os frutos! Pouco tempo atrás, celebrou-se o milénio da evangelização da Rússia e dos povos eslavos, estando para se celebrar o quincentésimo aniversário da evangelização das Américas; foram entretanto comemorados, de forma solene, os centenários das primeiras missões em vários Países da Ásia, da África e da Oceania. A Igreja deve hoje enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo: A todos os cristãos, às Igrejas particulares e à Igreja universal, pede-se a mesma coragem que moveu os missionários do passado, a mesma disponibilidade para escutar a voz do Espírito.