A g n u s D e i

REDEMPTORIS MISSIO
João Paulo II
07.12.1990

II
O REINO DE DEUS

12. « Deus, rico em misericórdia, é Aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai. Foi o Seu próprio Filho Quem, em Si mesmo, no-l'O manifestou e deu a conhecer »,21 Isto escrevi-o eu, no início da Encíclica Dives in Misericordia, mostrando como Cristo é a revelação e a encarnação da misericórdia do Pai. A salvação consiste em crer e acolher o mistério do Pai e do Seu amor, que se manifesta e oferece em Jesus, por meio do Espírito. Assim se cumpre o Reino de Deus, preparado já no Antígo Testamento, realizado por Cristo e em Cristo, anunciado a todos os povos pela Igreja, que actua e reza para que ele se realize de modo perfeito e definitivo.

Na verdade, o Antigo Testamento atesta que Deus escolheu para Si e formou um povo, para revelar e cumprir o Seu plano de amor. Mas, ao mesmo tempo, Deus é criador e Pai de todos os homens, atende às necessidades de cada um, estende a Sua bênção a todos (cf. Gn 12, 3) e com todos selou uma aliança (cf. Gn 9, 1-17). Israel faz a experiência de um Deus pessoal e salvador (cf. Dt 4, 37; 7, 6-8; Is 43, 1-7), do Qual se torna testemunha e portavoz, no meio das nações. Ao longo da sua história, Israel toma consciência de que a sua eleição tem um significado universal (cf por ex.: Is 2, 2-5; 25, 6-8; 60, 1-6; Jer 3, 17; 16, 19).

Cristo torna presente o Reino

13. Jesus de Nazaré levou o plano de Deus ao seu pleno cumprimento. Depois de ter recebido o Espírito Santo no baptismo, Ele manifesta a sua vocação messianica nestes moldes: percorre a Galileia, « pregando a Boa Nova de Deus: 'Completou-se o tempo, o Reino de Deus está perto! Arrependei-vos, e acreditai na Boa Nova' » (Mc 1, 14-15; cf. Mt 4, 17; Lc 4, 43). A proclamação e a instauração do Reino de Deus são o objectivo da Sua missão: « pois foi para isso que fui enviado » (Lc 4, 43). Mais ainda: o próprio Jesus é a « Boa Nova », como afirma logo no início da missão, na sinagoga da Sua terra natal, aplicando a Si próprio as palavras de Isaías, sobre o Ungido, enviado pelo Espírito do Senhor (cf. Lc 4, 14-21). Sendo Ele a « Boa Nova », então em Cristo há identidade entre mensagem e mensageiro, entre o dizer, o fazer e o ser. A força e o segredo da eficácia da Sua acção está na total identificação com a mensagem que anuncia: proclama a « Boa Nova » não só por aquilo que diz ou faz, mas também pelo que é.

O ministério de Jesus é descrito no contexto das viagens na Sua terra. O horizonte da missão antes da Páscoa concentra-se em Israel; no entanto, Jesus oferece um novo elemento de importancia capital. A realidade escatológica não fica adiada para um remoto fim do mundo, mas está próxima e começa já a cumprir-se. O Reino de Deus aproxima-se (cf. Mc 1, 15), roga-se que venha (Mt 6, 10), a fé já o descobre operante nos sinais, isto é, nos milagres (cf. Mt 11, 4-5), nos exorcismos (cf. Mt 12, 25-28), na escolha dos Doze (cf. Mc 3, 13-19), no anúncio de Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). Nos encontros de Jesus com os pagãos, fica claro que o acesso ao Reino se faz pela fé e conversão (cf. Mc 1, 15), e não por mera proveniência étnica.

O Reino, inaugurado por Jesus, é o Reino de Deus: o próprio Jesus revela Quem é este Deus, para o Qual usa a expressão familiar « Abba », Pai (Mc 14, 36). Deus, revelado especialmente nas parábolas (cf. Lc 15, 3-32; Mt 20, 1-16), é sensível às necessidades e aos sofrimentos do homem: um Pai cheio de amor e compaixão, que perdoa e dá gratuitamente os benefícios que Lhe pedem.

S. João diz-nos que « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16). Todo o homem, por isso, é convidado a « converter-se » e a « crer » no amor misericordioso de Deus por ele: o Reino crescerá na me dida em que cada homem aprender a dirigir-se a Deus, na intimidade da oração, como a um Pai (cf. Lc 11, 2; Mt 23, 9), e se esforçar por cumprir a Sua vontade (cf. Mt 7, 21).

Características e exigências do Reino

14. Jesus revela progressivamente as características e as exigências do Reino, através das suas palavras, das suas obras e da sua pessoa.

O Reino de Deus destina-se a todos os homens, pois todos foram chamados a pertencer-lhe. Para sublinhar este aspecto, Jesus aproximou-se sobretudo daqueles que eram marginalizados pela sociedade, dando-lhes preferência, ao anunciar a Boa Nova. No início do Seu ministério, proclama: fui enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). As vítimas da rejeição e do desprezo, declara: « bem-aventurados vós, os pobres » (Lc 6, 20), fazendo-lhes, inclusive, sentir e viver já uma experiência de libertação, estando com eles, partilhando a mesma mesa (cf. Lc 5, 30; 15, 2), tratando-os como iguais e amigos (cf. Lc 7, 34), procurando que se sentissem amados por Deus, e revelando deste modo imensa ternura pelos necessitados e pecadores (cf. Lc 15, 1-32).

A libertação e a salvação, oferecidas pelo Reino de Deus, atingem a pessoa humana tanto nas suas dimensões físicas como espirituais. Dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e perdoar. As múltiplas curas provam a Sua grande compaixão face às misérias humanas; mas significam também que, no Reino de Deus, não haverá doenças nem sofrimentos, e que a Sua missão, desde o início, visa libertar as pessoas daqueles. Na perspectiva de Jesus, as curas são também sinal da salvação espiritual, isto é, da libertação do pecado Realizando gestos de cura, Jesus convida à fé, à conversão, ao desejo do perdão (cf. Lc 5, 24) Recebida a fé, a cura impele a ir mais longe: introduz na salvação (cf. Lc 18, 42-43). Os gestos de libertação da possessão do demónio, mal supremo e símbolo do pecado e da rebelião contra Deus, são sinais de que o « Reino de Deus chegou até vós » (Mt 12, 28).

15. O reino pretende transformar as relações entre os homens, e realiza-se progressivamente à medida que estes aprendem a amar, perdoar, a servir-se mutuamente. Jesus retoma toda a Lei, centrando-a no mandamento do amor (cf. Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28). Antes de deixar os seus, dá-lhes um « mandamento novo »: « amai-vos uns aos outros como Eu vos amei » (Jo 13, 34; cf. 15, 12). 0 amor com que Jesus amou o mundo tem a sua expressão suprema, no dom da Sua vida pelos homens (cf. Jo 15, 13), que manifesta o amor que o Pai tem pelo mundo (cf. Jo 3, 16). Por isso a natureza do Reino é a comunhão de todos os seres humanos entre si e com Deus.

O Reino diz respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em resumo, o Reino de Deus é a manifestação e a actuação do Seu desígnio de salvação, em toda a sua plenitude.

Em Cristo ressuscitado, o Reino cumpre-se e é proclamado

16. Ao ressuscitar Jesus dos mortos, Deus venceu a morte, e n'Ele inaugurou definitivamente o Seu Reino. Durante a vida terrena, Jesus é o profeta do Reino e, depois da Sua paixão, ressurreição e ascenção aos céus, participa do poder de Deus, e do Seu domínio sobre o mundo (cf Mt 28, 18; At 2, 36; Ef 1, 18-21). A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a Sua acção e missão, um alcance universal. Os discípulos constatam que o Reino já está presente na pessoa de Jesus, e pouco a pouco vai-se instaurando no homem e no mundo, por uma misteriosa ligação com a Sua pessoa. Assim depois da ressurreição, eles pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus; Filipe, na Samaria, « anunciava a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo » (At 8, 12). Paulo, em Roma, « anunciava o Reino de Deus e ensinava o que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo » (At 28, 31). Também os primeiros cristãos anunciam « o Reino de Cristo e de Deus » (Ef 5, 5; cf. Ap 11, 15; 12, 10), ou então « o Reino eterno de Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo » (2 Ped 1, 11). Sobre o anúncio de Jesus Cristo, com o Qual o Reino se identifica, se concentra a pregação da Igreja primitiva. Como outrora, é preciso unir hoje o anúncio do Reino de Deus (o conteúdo do « kerigma » de Jesus) e a proclamação da vinda de Jesus Cristo (o « kerigma » dos apóstolos). Os dois anúncios completam-se e iluminam-se mutuamente.

O Reino em relação a Cristo e à Igreja

17. Hoje fala-se muito do Reino, mas nem sempre em consonancia com o sentir da Igreja. De facto, existem concepções de salvação e missão que podem ser designadas « antropocêntricas », no sentido redutivo da palavra, por se concentrarem nas necessidades terrenas do homem. Nesta perspectiva, o Reino passa a ser uma realidade totalmente humanizada e secularizada, onde o que conta são os programas e as lutas para a libertação socio-económica, política e cultural, mas sempre num horizonte fechado ao transcendente. Sem negar que, a este nível, também existem valores a promover, todavia estas concepções permanecem nos limites de um reino do homem, truncado nas suas mais autênticas e profundas dimensões, espelhando-se facilmente numa das ideologias de progresso puramente terreno. O Reino de Deus, pelo contrário, « não é deste mundo (...) não é daqui debaixo » (Jo 18, 36).

Existem também concepções que propositadamente colocam o acento no Reino, autodenominando-se de « reino-cêntricas », pretendendo com isso fazer ressaltar a imagem de uma Igreja que não pensa em si, mas dedica-se totalmente a testemunhar e servir o Reino. E uma « Igreja para os outros » — dizem — como Cristo é o homem para os outros. A tarefa da Igreja é orientada num duplo sentido: por um lado promover os denominados « valores do Reino », como a paz, a justiça,a liberdade, a fraternidade, por outro, favorecer o diálogo entre os povos, as culturas, as religiões, para que, num mútuo enriquecimento, ajudem o mundo a renovar-se e a caminhar cada vez mais na direcção do Reino.

Ao lado de aspectos positivos, essas concepções revelam frequentemente outros negativos. Antes de mais, silenciam o que se refere a Cristo: o Reino, de que falam, baseia-se num « teocentrismo », porque — como dizem — Cristo não pode ser entendido por quem não possui a fé n'Ele, enquanto que povos, culturas e religiões se podem encontrar na mesma e única realidade divina, qualquer que seja o seu nome. Pela mesma razão, realçam o mistério da criação, que se reflecte na variedade de culturas e crenças, mas omitem o mistério da redenção. Mais ainda, o Reino, tal como o entendem eles, acaba por marginalizar ou desvalorizar a Igreja, como reacção a um suposto eclesiocentrismo do passado, por considerarem a Igreja apenas um sinal, aliás passível de ambiguidade.

18. Ora este não é o Reino de Deus, que conhecemos pela Revelação: ele não pode ser separado de Cristo nem da Igreja.

Como já se disse, Cristo não só anunciou o Reino, mas, n'Ele, o próprio Reino se tornou presente e plenamente se realizou. E não apenas através das Suas palavras e obras: « o Reino manifesta-se principalmente na própria pessoa de Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, que veio 'para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos' (Mc 10, 45) ».22 O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível.23 Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregado, acabando por se distorcer quer o sentido do Reino, que corre o risco de se transformar numa meta puramente humana ou ideológica, quer a identidade de Cristo, que deixa de aparecer como o Senhor, a Quem tudo se deve submeter (cf. 1 Cor 15, 27).

De igual modo, não podemos separar o Reino, da Igreja. Com certeza que esta não é fim em si própria, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento. Mesmo sendo distinta de Cristo e do Reino, a Igreja todavia está unida indissoluvelmente a ambos. Cristo dotou a Igreja, Seu Corpo, da plenitude de bens e de meios da salvação; o Espírito Santo reside nela, dá-lhe a vida com os Seus dons e carismas, santifica, guia e renova-a continuamente.24 Nasce daí uma relação única e singular que, mesmo sem excluir a obra de Cristo e do Espírito fora dos confins visíveis da Igreja, confere a esta um papel específico e necessário. Disto provém a ligação especial da Igreja com o Reino de Deus e de Cristo, que ela t em « a mis s ão de anunciar e est ab elecer em todos os povos ».25

19. Nesta visão de conjunto, é que se compreende a realidade do Reino. É verdade que ele exige a promoção dos bens humanos e dos valores, que podem mesmo ser chamados « evangélicos », porque intimamente ligados à Boa Nova. Mas essa promoção, que a Igreja também toma a peito realizar, não deve ser separada nem contraposta às outras suas tarefas fundamentais, como são o anúncio de Cristo e Seu Evangelho, a fundação e desenvolvimento de comunidades que actuem entre os homens a imagem viva do Reino. Isto não nos deve fazer recear que se possa cair numa forma de eclesiocentrismo. Paulo VI, que afirmou existir « uma profunda ligação entre Cristo, a Igreja e a evangelização »,26 disse também que a Igreja « não é fim em si própria, pelo contrário, deseja intensamente ser toda de Cristo, em Cristo e para Cristo, e toda dos homens, entre os homens e para os homens ».27

A Igreja ao serviço do Reino

20. A Igreja está efectiva e concretamente ao serviço do Reino. Em primeiro lugar, serve-o com o anúncio que chame à conversão: este é o primeiro e fundamental serviço à vinda do Reino para cada pessoa e para a sociedade humana. A salvação escatológica começa já agora, na novidade de vida em Cristo: « a todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu o poder de se tornarem filhos de Deus » (Jo 1, 12).

A Igreja serve ainda o Reino, fundando comunidades, constituindo Igrejas particulares, levando-as ao amadurecimento da fé e da caridade, na abertura aos outros, no serviço à pessoa e à sociedade, na compreensão e estima das instituições humanas.

A Igreja, além disso, serve o Reino, difundindo pelo mundo os «valores evangélicos», que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os «valores evangélicos » e se abra à acção do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica.28

As múltiplas perspectivas do Reino de Deus 29 não enfraquecem os fundamentos e as finalidades missionárias; pelo contrário, fortificam e expandem-nas. A Igreja é sacramento de salvação para toda a humanidade; a sua acção não se limita àqueles que aceitam a sua mensagem. Ela é força actuante no caminho da humanidade rumo ao Reino escatológico, é sinal e promotora dos valores evangélicos entre os homens.30 Neste itinerário de conversão ao projecto de Deus, a Igreja contribui com o seu testemunho e actividade, expressa no diálogo, na promoção humana, no compromisso pela paz e pela justiça, na educação, no cuidado dos doentes, na assistência aos pobres e mais pequenos, mantendo sempre firme a prioridade das realidades transcendentes e espirituais, premissas da salvação escatológica.

A Igreja serve o Reino tembém com a sua intercessão, uma vez que aquele, por sua natureza, é dom e obra de Deus, como lembram as parábolas evangélicas e a própria oração que Jesus nos ensinou. Devemos suplicá-lo, para que seja acolhido e cresça em nós; mas devemos simultaneamente cooperar a fim de que seja aceite e se consolide entre os homens, até Cristo « entregar o Reino a Deus Pai », altura essa em que « Deus será tudo em todos » (1 Cor 15, 24.28).