A g n u s D e i

REDEMPTORIS MATER
João Paulo II
25.03.1987

Parte III
MEDIAÇÃO MATERNA

1. Maria, Serva do Senhor

38. A Igreja sabe e ensina, com São Paulo, que um só é o nosso mediador: «Não há senão um só Deus e um só é também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» (1 Tim 2, 5-6). «A função maternal de Maria para com os homens de modo nenhum obscurece ou diminui esta única mediação de Cristo; mas até manifesta qual a sua eficácia» (94) é uma mediação em Cristo.

A Igreja sabe e ensina que «todo o influxo salutar da Santíssima Virgem em favor dos homens se deve ao beneplácito divino e ... dimana da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação, dela depende absolutamente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo que não impede o contacto imediato dos fiéis com Cristo, antes o facilita». (95) Este influxo salutar é apoiado pelo Espírito Santo, que, assim como estendeu a sua sombra sobre a Virgem Maria, dando na sua pessoa início à maternidade divina, assim também continuamente sustenta a sua solicitude para com os irmãos do seu Filho.

Efectivamente, a mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e possui um carácter especificamente maternal, que a distingue da mediação das outras criaturas que, de diferentes modos e sempre subordinados, participam na única mediação de Cristo; também a mediação de Maria permanece subordinada. (96) Se, na realidade, «nenhuma criatura pode jamais colocar-se no mesmo plano que o Verbo Incarnado e Redentor», também é verdade que «a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas uma cooperação multiforme, participada duma única fonte»; e assim, «a bondade de Deus, única, difunde-se realmente, de diferentes modos, nas criaturas». (97)

O ensino do Concílio Vaticano II apresenta a verdade da mediação de Maria como «participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo». Com efeito, lemos: «A Igreja não hesita em reconhecer abertamente essa função assim, subordinada; sente-a continuamente e recomenda-a ao amor dos fiéis, para que, apoiados nesta ajuda materna, eles estejam mais intimamente unidos ao Mediador e Salvador». (98) Tal função é, ao mesmo tempo, especial e extraordinária. Ela promana da sua maternidade divina e pode ser comprendida e vivida na fé somente se nos basearmos na plena verdade desta maternidade. Sendo Maria, em virtude da eleição divina, a Mãe do Filho consubstancial ao Pai e «cooperadora generosa» na obra da Redenção, ela tornou-se para nós «mãe na ordem da graça». (99) Esta função constitui uma dimensão real da sua presença no mistério salvífico de Cristo e da Igreja.

39. Sob este ponto de vista, temos necessidade de voltar, mais uma vez, à consideração do acontecimento fundamental na economia da salvação, ou seja, a Incarnação do Verbo de Deus, no momento da Anunciação. É significativo que Maria, reconhecendo nas palavras do mensageiro divino a vontade do Altíssimo e submetendo-se ao seu poder, diga: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). O primeiro momento da submissão à única mediação «entre Deus e os homens» - a mediação de Jesus Cristo - é a aceitação da maternidade por parte da Virgem de Nazaré. Maria consente na escolha divina para se tornar, por obra do Espírito Santo, a Mãe do Filho de Deus. Pode dizer-se que este consentimento que ela dá à maternidade é fruto sobretudo da doção total a Deus na virgindade. Maria aceitou a eleição para ser mãe do Filho de Deus, guiada pelo amor esponsal, o amor que «consagra» totalmente a Deus uma pessoa humana. Em virtude desse amor, Maria desejava estar sempre e em tudo «doada a Deus», vivendo na virgindade. As palavras: «Eis a serva do Senhor!» comprovam o facto de ela desde o princípio ter aceitado e entendido a própria maternidade como dom total de si, da sua pessoa, ao serviço dos desígnios salvíficos do Altíssimo. E toda a participação materna na vida de Jesus Cristo, seu Filho, ela viveu-a até ao fim de um modo correspondente à sua vocação para a virgindade.

A maternidade de Maria, profundamente impregnada da atitude esponsal de «serva do Senhor», constitui a dimensão primária e fundamental daquela sua mediação que a Igreja Ihe reconhece, proclama (100) e continuamente «recomenda ao amor dos fiéis» porque confia muito nela. Com efeito, importa reconhecer que, primeiro do que quaisquer outros, o próprio Deus, o Pai eterno, se confiou à Virgem de Nazaré, dando-lhe o próprio Filho no mistério da Incarnação. Esta sua eleição para a sublime tarefa e suprema dignidade de Mãe do Filho de Deus, no plano ontológico, tem relação com a própria realidade da união das duas naturezas na Pessoa do Verbo (união hipostática). Este facto fundamental de ser Mãe do Filho de Deus, é desde o princípio uma abertura total à pessoa de Cristo, a toda a sua obra e a toda a sua missão. As palavras: «Eis a serva do Senhor!» testemunham esta abertura de espírito em Maria, que une em si, de maneira perfeita, o amor próprio da virgindade e o amor característico da maternidade, conjuntos e como que fundidos num só amor.

Por isso, Maria tornou-se não só a «mãe-nutriz» do Filho do homem, mas também a «cooperadora generosa, de modo absolutamente singular», (101) do Messias e Redentor. Ela — como já foi dito — avançava na peregrinação da fé e, nessa sua peregrinação até aos pés da Cruz, foi-se realizando, ao mesmo tempo, com as suas acções e os seus sofrimentos, a sua cooperação materna e esponsal em toda a missão do Salvador. Ao longo do caminho de tal colaboração com a obra do Filho-Redentor, a própria maternidade de Maria veio a conhecer uma transformação singular, sendo cada vez mais cumulada de «caridade ardente» para com todos aqueles a quem se destinava a missão de Cristo. Mediante essa «caridade ardente», visando cooperar, em união com Cristo, na restauração «da vida sobrenatural nas almas», (102) Maria entrava de modo absolutamente pessoal na única mediação «entre Deus e os homens», que é a mediação do homem Cristo Jesus. Se ela mesma foi quem primeiro experimentou em si os efeitos sobrenaturais desta mediação única - já aquando da Anunciação ela tinha sido saudada como «cheia de graça» - então tem de se dizer que, em virtude desta plenitude da graça e de vida sobrenatural, ela estava particularmente predisposta para a «cooperação» com Cristo, único mediador da salvação humana. E tal cooperação é precisamente esta mediação subordinada à mediação de Cristo.

No caso de Maria trata-se de uma mediação especial e excepcional, fundada na sua «plenitude de graça», que se traduzia na total disponibilidade da «serva do Senhor». Em correspondência com essa disponibilidade interior da sua Mãe, Jesus Cristo preparava-a cada vez mais para ela se tornar para os homens «mãe na ordem da graça». Isto acha-se indicado, pelo menos de maneira indirecta, em certos pormenores registados pelos Sinópticos (cf. Lc 11, 28; 8, 20-21; Mc 3, 32-35; Mt 12, 47-50) e, mais ainda, pelo Evangelho de São João (cf. 2, 1-12; 19, 25-27), como já procurei pôr em evidência. A este propósito, são particularmente eloquentes as palavras pronunciadas por Jesus do alto da Cruz, referindo-se a Maria e a João.

40. Depois dos acontecimentos da Ressurreição e da Ascensão, Maria, entrando com os Apóstolos no Cenáculo enquanto esperavam o Pentecostes, estava aí presente como Mãe do Senhor glorificado. Era não só aquela que «avançou na peregrinação da fé» e conservou fielmente a sua união com o Filho «até à Cruz», mas também a «serva do Senhor» deixada por seu Filho como mãe no seio da Igreja nascente: «Eis a tua mãe». Assim começou a estabelecer-se um vínculo especial entre esta Mãe e a Igreja. Com efeito, a Igreja nascente era fruto da Cruz e da Ressurreição do seu Filho. Maria, que desde o princípio se tinha entregado sem reservas à pessoa e à obra do Filho, não podia deixar de derramar sobre a Igreja, desde os inícios, esta sua doação materna. Depois da «partida» do Filho a sua maternidade permanece na Igreja, como mediação materna: intercedendo por todos os seus filhos, a Mãe coopera na obra salvífica do Filho-Redentor do mundo. De facto, o Concílio ensina: «a maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à consumação perpétua de todos os eleitos». (103) Com a morte redentora do seu Filho, a mediação materna da serva do Senhor revestiu-se de uma dimensão universal, porque a obra da Redenção abrange todos os homens. Assim se manifesta, de modo singular, a eficácia da única e universal mediação de Cristo «entre Deus e os homens». A cooperação de Maria participa, com o seu carácter subordinado, na universalidade da mediação do Redentor, único Mediador. Isto é claramente indicado pelo Concílio com as palavras acima citadas.

De facto — lemos ainda — depois de elevada ao céu, Maria não abandonou este papel de salvação, mas com a sua múltipla intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna».(104) Com este carácter de a intercessão», que se manifestou pela primeira vez em Caná da Galileia, a mediação de Maria continua na história da Igreja e do mundo. Lemos que Maria, «com a sua caridade materna, cuida dos irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam e se debatem entre perigos e angústias, até que sejam conduzidos à pátria bem-aventurada». (105) Deste modo, a maternidade de Maria perdura incessantemente na Igreja, como mediação que intercede; e a Igreja exprime a sua fé nesta verdade invocando-a sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, (Perpétuo) Socorro e Medianeira. (106)

41. Pela sua mediação, subordinada à mediação do Redentor, Maria contribui de maneira especial para a união da Igreja peregrina na terra com a realidade escatológica e celeste da comunhão dos santos, tendo já sido «elevada ao Céu». (107) A verdade da Assunção, definida por Pio XII, é reafirmada pelo Vaticano II, que exprime a fé da Igreja nestes termos: «Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da sua vida terrena, foi assumida à glória celeste em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como Rainha do universo, para que se conformasse mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores (cf. Apoc 19, 16) e vencedor do pecado e da morte», (108) Com esta doutrina, Pio XII situava-se na continuidade da Tradição, que ao longo da história da Igreja teve expressões múltiplas, tanto no Oriente como no Ocidente.

Com o mistério da Assunção ao Céu, actuaram-se em Maria definitivamente todos os efeitos da única mediação de Cristo, Redentor do mundo e Senhor ressuscitado: «Todos receberão a vida em Cristo. Cada um, porém, na sua ordem: primeiro Cristo, que é a primícia; depois, à sua vinda, aqueles que pertencem a Cristo» (1 Cor 15, 22-23). No mistério da Assunção exprime-se a fé da Igreja, segundo a qual Maria está «unida por um vínculo estreito e indissolúvel a Cristo», pois, se já como mãe-virgem estava a Ele unida singulamente na sua primeira vinda, pela sua contínua cooperação com Ele o estará também na expectativa da segunda: «Remida dum modo mais sublime, em atenção aos méritos de seu Filho», (109) ela tem também aquele papel, próprio da Mãe, de medianeira de clemência, na vinda definitiva, quando todos os que são de Cristo forem vivificados e quando «o último inimigo a ser destruído será a morte» (1 Cor 15, 26). (110)

Com tal exaltação da «excelsa Filha de Sião» (111) mediante a Assunção ao Céu, está conexo o mistério da sua glória eterna. A Mãe de Cristo, efectivamente, foi glorificada como «Rainha do universo». (112) Ela, que na altura da Anunciação se definiu «serva do Senhor», permaneceu fiel ao que este nome exprime durante toda a vida terrena, confirmando desse modo ser uma verdadeira «discípula» de Cristo, que teve ocasião de acentuar fortemente o carácter de serviço da sua missão: o Filho do homem «não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate de muitos» (Mt 20, 28). Por isso, Maria tornou-se a primeira entre aqueles que, «servindo a Cristo também nos outros, conduzem os seus irmãos, com humildade e paciência, àquele Rei, servir ao qual é reinar»; (113) e alcançou plenamente aquele «estado de liberdade real» que é proprio dos discípulos de Cristo: servir quer dizer reinar!

«Cristo, tendo-se feito obediente até à morte, foi por isso mesmo exaltado pelo Pai (cf. Flp 2, 8-9) e entrou na glória do seu Reino; a ele estão submetidas todas as coisas, até que ele se sujeite a si mesmo e consigo todas as criaturas ao Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 27-28)». (114) Maria, serva do Senhor, tem parte neste Reino do Filho. (115) A glória de servir não cessa de ser a sua exaltação real: elevada ao céu, não suspende aquele seu serviço salvífico em que se exprime a mediação materna, «até à consumação perpétua de todos os eleitos». (116) Assim, aquela que, aqui na terra, «conservou fielmente a sua união com o Filho até à Cruz», permanece ainda unida a ele, uma vez que «tudo lhe está submetido, até que ele sujeite ao Pai a sua pessoa e todas as criaturas». Mais, com a sua Assunção ao Céu, Maria está como que envolvida por toda a realidade da comunhão dos santos; e a sua própria união com o Filho na glória está toda propendente para a plenitude definitiva do Reino, quando a Deus for tudo em todos».

Também nesta fase a mediação materna de Maria não deixa de estar subordinada àquele que é o único Mediador, até à definitiva actuação «da plenitude dos tempos»: «a de em Cristo recapitular todas as coisas» (Ef 1, 10).

2. Maria na vida da Igreja e de cada cristão

42. O Concílio Vaticano II, situando-se na linha da Tradição, projectou uma nova luz sobre o papel da Mãe de Cristo na vida da Igreja. «A bem-aventurada Virgem Maria ... pelo dom da maternidade divina, que a une com o seu Filho Redentor, e ainda pelas suas graças e funções singulares, encontra-se também intimamente unida à Igreja: a Mãe de Deus é a figura da Igreja... e isso, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo». (117) Já vimos anteriormente que Maria permanece desde o princípio com os Apóstolos, enquanto esperam o Pentecostes, e que, sendo a «feliz porque acreditou», de geração em geração ela está presente no meio da Igreja que faz a sua peregrinação na fé, sendo para ela igualmente modelo da esperança que não decepciona (cf. Rom 5, 5).

Maria acreditou que se cumpririam aquelas coisas que lhe tinham sido ditas da parte do Senhor. Como Virgem, acreditou que conceberia e daria à luz um filho: o «Santo», ao qual corresponde o nome de «Filho de Deus», o nome de «Jesus» (= Deus que salva). Como serva do Senhor, permaneceu perfeitamente fiel à pessoa e à missão deste seu Filho. Como Mãe, «pela sua fé e obediência... gerou na terra o próprio Filho de Deus, sem ter conhecido homem, mas por obra e graça do Espírito Santo». (118)

Por estes motivos «Maria ... é com razão honrada pela Igreja com culto especial; ... já desde os tempos mais antigos, a Santíssima Virgem é venerada com o título de «Mãe de Deus» e sob a sua protecção se acolhem os fiéis, que a imploram em todos os perigos e necessidades», (119) Este culto é absolutamente singular: contém em si e exprime aquele vínculo profundo que existe entre a Mãe de Cristo e a Igreja. (120) Como virgem e mãe, Maria permanece um «modelo perene» para a Igreja. Pode, portanto, dizer-se que sobretudo sob este aspecto, isto é, como modelo ou, melhor, como «figura», Maria, presente no mistério de Cristo, permanece também constantemente presente no mistério da Igreja. Com efeito, também a Igreja «é chamada mãe e virgem»; e estes nomes têm profunda justificação bíblica e teológica. (121)

43. A Igreja «torna-se mãe ... pela fiel recepção da palavra de Deus» (122) Como Maria, que foi a primeira a acreditar, acolhendo a palavra de Deus que lhe foi revelada na Anunciação e a ela permanecendo fiel em todas as provações até à Cruz, assim também a Igreja se torna mãe quando, acolhendo com fidelidade a palavra de Deus, pela pregação e pelo baptismo, gera para uma vida nova e imortal os filhos, concebidos por obra do Espírito Santo e nascidos de Deus». (123) Esta característica «materna» da Igreja foi expressa dum modo particularmente vívido pelo Apóstolo das Gentes, quando escreveu: «Meus filhinhos, por quem sofro novamente as dores de parto, até que Cristo não se tenha formado em vós»! (Gál 4, 19). Nestas palavras de São Paulo está contida uma indicação interessante: da consciência que tinha a Igreja primitiva da função maternal, que andava ligada ao seu serviço apostólico entre os homens. Tal consciência permitia e constantemente permite à Igreja encarar o mistério da sua vida e da sua missão à luz do exemplo da Genetriz do Filho de Deus, que é «o primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8, 29).

A Igreja, em certo sentido, apreende de Maria também o que é a própria maternidade: ela reconhece esta dimensão maternal da própria vocação, como algo ligado essencialmente à sua natureza sacramental, «contemplando a sua santidade misteriosa, imitando a sua caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai». (124) O facto de a Igreja ser sinal e instrumento da íntima união com Deus tem a sua base na maternidade que lhe é própria: porque, vivificada pelo Espírito Santo, «gera» filhos e filhas da família humana para uma vida nova em Cristo. Com efeito, assim como Maria está ao serviço do mistério da Incarnação, também a Igreja permanece ao serviço do mistério da adopção como filhos mediante a graça.

Ao mesmo tempo, a exemplo de Maria, a Igreja permanece a virgem fiel ao próprio Esposo: «Também ela é virgem, que guarda íntegra e pura a fé jurada ao Esposo», (125) A Igreja, de facto, é a esposa de Cristo, como resulta das Cartas paulinas (cf. Ef 5, 21-33; 2 Cor 11, 2) e da maneira como São João a designa: «a Esposa do Cordeiro» (Apoc 21, 9). Se a Igreja como esposa «guarda a fé jurada a Cristo», esta fidelidade, embora no ensino do Apóstolo se tenha tornado imagem do matrimónio (cf. Ef 5, 23-33), possui também o valor de ser o tipo da total doação a Deus no celibato «por amor do Reino dos céus», ou seja, da virgindade consagrada a Deus (cf. Mt 19, 11-12; 2 Cor 11, 2). Esta virgindade precisamente, a exemplo da Virgem de Nazaré, é fonte de uma especial fecundidade espiritual: é fonte da maternidade no Espírito Santo.

Mas a Igreja guarda também a fé recebida de Cristo: a exemplo de Maria, que guardava e meditava no seu coração (cf. Luc 2, 19. 51) tudo o que dizia respeito ao seu divino Filho, ela está empenhada em guardar a Palavra de Deus, apurando as suas riquezas com discernimento e prudência, para dar sempre da mesma, ao longo dos tempos, testemunho fiel a todos os homens. (126)

44. Existindo esta relação de exemplaridade, a Igreja descobre-se em Maria e procura tornar-se semelhante a ela: «A imitação da Mãe do seu Senhor e por virtude do Espírito Santo, conserva virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança e sincera a caridade» (127) Maria está presente, portanto, no mistério da Igreja como modelo. Mas o mistério da Igreja consiste também em gerar os homens para uma vida nova e imortal: é a sua maternidade no Espírito Santo. E nisto, Maria não é só modelo e figura da Igreja; mas é muito mais do que isso. Com efeito, «ela coopera com amor de mãe para a regeneração e formação» dos filhos e filhas da mãe Igreja. A maternidade da Igreja realiza-se não só segundo o modelo e a figura da Mãe de Deus, mas também com a sua «cooperação». A Igreja vai haurir copiosamente nesta cooperação de Maria, isto é, na mediação materna que é característica de Maria, no sentido de que já na terra ela cooperou na regeneração e formação dos filhos e das filhas da Igreja, sempre como Mãe daquele Filho» que Deus constituiu o primogénito entre muitos irmãos». (128)

Para isto «cooperou - como ensina o Concílio Vaticano II - com amor de mãe. (129) Descobre-se aqui o valor real das palavras de Jesus, na hora da Cruz, à sua Mãe: «Mulher, eis o teu filho», e ao discípulo: «Eis a tua mãe» (Jo 19, 26-27). São palavras que determinam o lugar de Maria na vida dos discípulos de Cristo e exprimem — como já disse — a sua nova maternidade como Mãe do Redentor: a maternidade espiritual, que nasceu do mais íntimo do mistério pascal do Redentor do mundo. Trata-se de uma maternidade na ordem da graça, porque invoca o dom do Espírito Santo que suscita os novos filhos de Deus, remidos pelo sacrifício de Cristo: daquele mesmo Espírito que, conjuntamente com a Igreja, também Maria recebeu no dia do Pentecostes.

Esta sua maternidade é particularmente advertida e vivida pelo povo cristão no Banquete sagrado - celebração litúrgica do mistério da Redenção - no qual se torna presente Cristo, no seu verdadeiro Corpo nascido da Virgem Maria.

Com boa razão, pois, a piedade do povo cristão vislumbrou sempre uma ligação profunda entre a devoção à Virgem Santíssima e o culto da Eucaristia: pode comprovar-se este facto, na liturgia, tanto ocidental como oriental, na tradição das Famílias religiosas, na espiritualidade dos movimentos contemporâneos, mesmo dos movimentos juvenis, e na pastoral dos santuários marianos. Maria conduz os fiéis à Eucaristia.

45. É algo essencial à maternidade o facto de ela envolver a pessoa. Ela determina sempre uma relação única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe com o filho e do filho com a mãe. Mesmo quando uma só «mulher» é mãe de muitos filhos, a sua relação pessoal com cada um deles caracteriza a maternidade na sua própria essência. Cada um dos filhos, de facto, é gerado de modo único e irrepetível; e isto é válido tanto para a mãe como para o filho. Cada um dos filhos é circundado, de modo único e irrepetível, daquele amor materno em que se baseia a sua formação e maturação em humanidade.

Pode dizer-se que «a maternidade na ordem da graça» tem analogia com o que «na ordem da natureza» caracteriza a união da mãe com o filho. A luz disto, torna-se mais compreensível o motivo pelo qual, no testamento de Cristo no Gólgota, esta maternidade de sua Mãe é por Ele expressa no singular, em relação a um só homem: «Eis o teu filho».

Pode dizer-se, ainda, que nestas mesmas palavras está plenamente indicado o motivo da dimensão mariana da vida dos discípulos de Cristo: não só de São João, que naquela hora estava aos pés da Cruz, juntamente com a Mãe do seu Mestre, mas também de todos os demais discípulos de Cristo e de todos os cristãos. O Redentor confia sua Mãe ao discípulo e, ao mesmo tempo, dá-lha como mãe. A maternidade de Maria que se torna herança do homem é um dom: um dom que o próprio Cristo faz a cada homem pessoalmente. O Redentor confia Maria a João, na medida em que confia João a Maria. Aos pés da Cruz teve o seu início aquela especial entrega do homem à Mãe de Cristo, que ao longo da história da Igreja foi posta em prática e expressa de diversas maneiras. Quando o mesmo Apóstolo e Evangelista, depois de ter referido as palavras dirigidas por Jesus do alto da Cruz à Mãe e a si próprio, acrescenta: «E, a partir daquele momento, o discípulo levou-a para sua casa» (Jo 19, 27), esta afirmação quer dizer, certamente, que ao discípulo foi atribuído um papel de filho e que ele tomou ao seu cuidado a Mãe do Mestre que amava. E uma vez que Maria lhe foi dada pessoalmente a ele como mãe, a afirmação indica, embora indirectamente, tudo o que exprime a relação íntima de um filho com a mãe. E tudo isto pode encerrar-se na palavra «entrega». A entrega é a resposta ao amor duma pessoa e, em particular, ao amor da mãe.

A dimensão mariana da vida de um discípulo de Cristo exprime-se, de modo especial, precisamente mediante essa entrega filial em relação à Mãe de Cristo, iniciada com o testamento do Redentor no alto do Gólgota. Confiando-se filialmente a Maria, o cristão, como o Apóstolo São João, acolhe «entre as suas coisas próprias» (130) a Mãe de Cristo e introdu-la em todo o espaço da própria vida interior, isto é, no seu «eu» humano e cristão: «levou-a para sua casa». Assim procura entrar no âmbito de irradiação em que se actua aquela «caridade materna», com que a Mãe do Redentor «cuida dos irmãos do seu Filho», (131) para cuja regeneração e formação ela coopera», (132) segundo a medida do dom própria de cada um, pelo poder do Espírito de Cristo. Assim se vai actuando também aquela maternidade segundo o Espírito, que se tornou função de Maria aos pés da Cruz e no Cenáculo.

46. Esta relação filial, este entregar-se de um filho à Mãe, não só tem o seu início em Cristo, mas pode dizer-se que está definitivamente orientado para ele. Pode dizer-se, ainda, que Maria continua a repetir a todos as mesmas palavras, que disse outrora em Caná da Galileia: «Fazei o que ele vos disser». Com efeito, é ele, Cristo, o único Mediador entre Deus e os homens; é ele «o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6); e é aquele que o Pai doou ao mundo, para que o homem «não pereça mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). A Virgem de Nazaré tornou-se a primeira «testemunha» deste amor salvífico do Pai e deseja também permanecer a sua humilde serva sempre e em toda a parte. Em relação a todos e cada um dos cristãos e a cada um dos homens, Maria é a primeira na fé: é «aquela que acreditou»; e, precisamente com esta sua fé de esposa e de mãe, ela quer actuar em favor de todos os que a ela se entregam como filhos. E é sabido que quanto mais estes filhos perseveram na atitude de entrega e mais progridem nela, tanto mais Maria os aproxima das «insondáveis riquezas de Cristo» (Ef 3, 8). E, de modo análogo, também eles reconhecem cada vez mais em toda a sua plenitude a dignidade do homem e o sentido definitivo da sua vocação, porque «Cristo ... revela também plenamente o homem ao homem». (133)

Esta dimensão mariana da vida cristã assume um relevo particular no que respeita à mulher e à condição feminina. Com efeito, a feminilidade encontra-se numa relação singular com a Mãe do Redentor, assunto que poderá ser aprofundado num outro contexto. Aqui desejaria somente salientar que a figura de Maria de Nazaré projecta luz sobre a mulher enquanto tal, pelo facto exactamente de Deus, no sublime acontecimento da Incarnação do Filho, se ter confiado aos bons préstimos, livres e activos da mulher. Pode, portanto, afirmar-se que a mulher, olhando para Maria, nela encontrará o segredo para viver dignamente a sua feminilidade e levar a efeito a sua verdadeira promoção. A luz de Maria, a Igreja lê no rosto da mulher os reflexos de uma beleza, que é espelho dos mais elevados sentimentos que o coração humano pode albergar: a totalidade do dom de si por amor; a força que é capaz de resistir aos grandes sofrimentos; a fidelidade sem limites, a perosidade incansável e a capacidade de conjugar a intuição penetrante com a palavra de apoio e encorajamento.

47. Durante o Concílio, o Papa Paulo VI afirmou solenemente que Maria é Mãe da Igreja, «isto é, Mãe de todo o povo cristão, tanto dos fiéis como dos Pastores». (134) Mais tarde, em 1968, na Profissão de Fé conhecida com o nome de «Credo do Povo de Deus», repetiu essa afirmação de forma ainda mais compromissiva, usando as palavras: «Nós acreditamos que a Santíssima Mãe de Deus, nova Eva, Mãe da Igreja, continua no Céu a sua função maternal em relação aos membros de Cristo, cooperando no nascimento e desenvolvimento da vida divina nas almas dos remidos». (135)

O magistério do Concílio acentuou que a verdade sobre a Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, constitui um subsídio eficaz para o aprofundamento da verdade sobre a Igreja. O mesmo Papa Paulo VI, ao tomar a palavra a propósito da Constituição Lumen Gentium, que acabava de ser aprovada pelo Concílio, disse: «O conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre a Bem -aventurada Virgem Maria constituirá sempre uma chave para a compreensão exacta do mistério de Cristo e da Igreja», (136) Maria está presente na Igreja como Mãe de Cristo e, ao mesmo tempo, como a Mãe que o próprio Cristo, no mistério da Redenção, deu ao homem na pessoa do Apóstolo São João. Por isso, Maria abraça, com a sua nova maternidade no Espírito, todos e cada um na Igreja; e abraça também todos e cada um mediante a Igreja. Neste sentido, Maria, Mãe da Igreja, é também modelo da Igreja. Esta, efectivamente - como preconiza e solicita o Papa Paulo VI - deve ir «buscar na Virgem Mãe de Deus a forma mais autêntica da perfeita imitação de Cristo». (137)

Graças a este vínculo especial, que une a Mãe de Cristo à Igreja, esclarece-se melhor o mistério daquela «mulher» que, desde os primeiros capítulos do Livro do Génesis até ao Apocalipse, acompanha a revelação do desígnio salvífico de Deus em relação à humanidade. Maria, de facto, presente na Igreja como Mãe do Redentor, participa maternalmente naquele «duro combate contra os poderes das trevas ..., que se trava ao longo de toda a história humana», (138) E em virtude desta sua identificação eclesial com a «mulher vestida de sol» (Apoc 12, 1), (139) pode dizer-se que «a Igreja alcançou já na Virgem Santíssima aquela perfeição, que faz que ela se apresente sem mancha nem ruga»; todavia, os cristãos, levantando os olhos com fé para Maria, ao longo da sua peregrinação na terra «continuam ainda a esforçar-se por crescer na santidade». (140) Maria, a excelsa filha de Sião, ajuda a todos os seus filhos - onde quer que vivam e como quer que vivam - a encontrar em Cristo o caminho para a casa do Pai.

Por conseguinte, a Igreja mantém, em toda a sua vida, uma ligação com a Mãe de Deus que abraça, no mistério salvífico, o passado, o presente e o futuro; e venera-a como Mãe espiritual da humanidade e Advogada na ordem da graça.

3. O sentido do Ano Mariano

48. O vínculo especial da humanidade com esta Mãe foi precisamente o que me levou a proclamar na Igreja, no período que antecede a conclusão do Segundo Milénio do nascimento de Cristo, um Ano Mariano. Uma iniciativa semelhante a esta já se verificou no passado, quando o Papa Pio XII proclamou o ano de 1954 como Ano Mariano, para dar realce à excepcional santidade da Mãe de Cristo, expressa nos mistérios da sua Imaculada Conceição (definida exactamente um século antes) e da sua Assunção ao Céu. (141)

Seguindo a linha do Concílio Vaticano II, anima-me o desejo de pôr em relevo a presença especial da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja. Esta é uma dimensão fundamental que dimana da Mariologia do Concílio, de cujo encerramento já nos separam mais de vinte anos. O Sínodo extraordinário dos Bispos, que se realizou em 1985, exortou a todos a seguirem fielmente o magistério e as indicações do Concílio. Pode dizer-se que em ambos - . no Concílio e no Sínodo - está contido aquilo que o Espírito Santo deseja «dizer à Igreja» (cf. Apoc 2, 7.17.29; 3, 6.13.22) na fase presente da história.

Neste contexto, o Ano Mariano deverá promover também uma leitura nova e aprofundada daquilo que o Concílio disse sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja, a que se referem as considerações contidas na presente Encíclica. Com esta perspectiva, trata-se não só da doutrina da fé, mas também da vida de fé; e, portanto, da autêntica «espiritualidade mariana», vista à luz da Tradição e, especialmente, daquela espiritualidade a que nos exorta o Concílio. (142) Além disso, a espiritualidade mariana, assim como a devoção correspondente, tem uma riquíssima fonte na experiência histórica das pessoas e das diversas comunidades cristãs, que vivem no seio dos vários povos e nações, sobre toda a face da terra. A este propósito, é-me grato recordar, dentre as muitas testemunhas e mestres de tal espiritualidade, a figura de São Luís Maria Grignion de Montfort, (143) o qual propõe aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viverem fielmente os compromissos baptismais. E registo ainda aqui, de bom grado, que também nos nossos dias não faltam novas manifestações desta espiritualidade e devoção.

Há, portanto, pontos de referência seguros para os quais olhar e aos quais ater-se, no contexto deste Ano Mariano.

49. A celebração do mesmo Ano Mariano terá início na Solenidade do Pentecostes no dia 7 de Junho próximo. Trata-se, efectivamente, não apenas de recordar que Maria «precedeu» o ingresso de Cristo Senhor na história da humanidade, mas também de salientar, à luz de Maria, que, desde que se realizou o mistério da Incarnação, a história da humanidade entrou «na plenitude dos tempos» e que a Igreja é o sinal desta plenitude. Como Povo de Deus, a Igreja vai fazendo, mediante a fé, a peregrinação no sentido da eternidade no meio de todos os povos e nações, peregrinação que começou no dia do Pentecostes. A Mãe de Cristo, que esteve presente no princípio do «tempo da Igreja» quando, durante os dias de espera do Espírito Santo, era assídua na oração no meio dos Apóstolos e dos discípulos do seu Filho, «precede» constantemente a Igreja nesta sua caminhada através da história da humanidade. Ela é também aquela que, precisamente como serva do Senhor, coopera sem cessar na obra da salvação realizada por Cristo, seu Filho.

Assim, por meio deste Ano Mariano, a Igreja é chamada não só a recordar tudo o que no seu passado testemunha a especial cooperação materna da Mãe de Deus na obra da salvação em Cristo Senhor, mas também a preparar para o futuro, na parte que lhe toca, os caminhos desta cooperação salvífica, dado que, com o final do Segundo Milénio cristão, se abre como que uma nova perspectiva.

50. Como já tivemos ocasião de recordar, também entre os irmãos desunidos muitos honram e celebram a Mãe do Senhor, especialmente entre os Orientais. É uma luz mariana projectada sobre o Ecumenismo. Mas desejaria aqui recordar ainda, em particular, que durante o Ano Mariano ocorrerá o Milénio do Baptismo de São Vladimiro, Grão-Príncipe de Kiev (a. 988), que deu início ao Cristianismo nos territórios da «Rússia» de então e, em seguida, em todos os territórios da Europa oriental; e que, por esta via, mediante a obra de evangelização, o Cristianismo se estendeu também para além da Europa, até aos territórios setentrionais do Continente asiático. Desejaríamos, portanto, especialmente durante este Ano, unir-nos na oração com todos aqueles que celebram o Milénio desse Baptismo, ortodoxos e católicos, renovando e confirmando com o Concílio, a vivência de sentimentos de alegria e consolação, pelo facto de que «os Orientais ... acorrem a venerar a Mãe de Deus, sempre Virgem, com fervor ardente e ânimo devoto». (144) Embora experimentemos ainda os efeitos dolorosos da separação, que se deu alguns decénios depois (a. 1054), podemos dizer que diante da Mãe de Cristo nos sentimos verdadeiros irmãos e irmãs no âmbito daquele Povo messiânico chamado a ser uma única família de Deus sobre a face da terra, como já tive ocasião de anunciar no passado dia de Ano Novo: «Desejamos reconfirmar esta herança universal de todos os filhos e filhas desta terra». (145)

Ao anunciar o Ano de Maria, eu precisava ainda que o seu encerramento será no ano seguinte, na solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, querendo realçar «o sinal grandioso no céu» de que fala o Apocalipse. Deste modo, queremos também pôr em prática a exortação do Concílio, que olha para Maria como um «sinal de esperança segura e de consolação para o Povo de Deus peregrino». E essa exortação foi espressa pelo Concílio com as seguintes palavras: «Dirijam todos os fiés súplicas instantes à Mãe de Deus e Mãe dos homens, para que ela, que assistiu com suas orações aos começos da Igreja, também agora, no Céu, exaltada acima de todos os bem-aventurados e dos anjos, interceda junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todas as famílias dos povos, quer as que ostentam o nome cristão, quer as que ignoram ainda o seu Salvador, se reúnam felizmente, em paz e concórdia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade». (146)