A g n u s D e i

REDEMPTORIS MATER
João Paulo II
25.03.1987

Parte II
A MÃE DE DEUS NO CENTRO DA IGREJA QUE ESTÁ A CAMINHO

1. A Igreja, Povo de Deus presente em todas as nações da terra

25. «A Igreja "prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus", (52) anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele venha (cf. 1 Cor 11,26)». (53) «Assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já chamado Igreja de Deus (cf. Esdr 13, 1; Núm 20, 4; Dt 23, 1 ss.), também o novo Israel... se chama Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18), porque Ele a adquiriu com o seu próprio sangue (cf. Act 20, 28), a encheu com o seu Espírito e a dotou com os meios adequados para a unidade visível e social. A todos aqueles que olham com fé para Jesus, como autor da salvação e princípio de unidade e de paz, Deus convocou-os e constituiu com eles a Igreja, a fim de que ela seja para todos e cada um sacramento visível desta unidade salvífica». (54)

O Concílio Vaticano II fala da Igreja que ainda está a caminho, estabelecendo uma analogia com o Israel da Antiga Aliança em peregrinação através do deserto. A peregrinação possui um carácter também externo, visível no tempo e no espaço, em que ela se efectua historicamente. A Igreja, de facto, «devendo estender-se a toda a terra», «entra na história dos homens, mas simultaneamente transcende os tempos e as fronteiras dos povos». (55) Porém, o carácter essencial desta peregrinação da Igreja é interior: trata-se de uma peregrinação mediante a fé, pela «virtude do Senhor ressuscitado», (56) de uma peregrinação no Espírito Santo, que foi dado à Igreja como Consolador invisível (paraklétos) (cf. Jo 14,26; 15, 26; e 16,7): «Por entre as tentações e tribulações que vai encontrando no seu peregrinar, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor, para que... não cesse nunca de renovar-se, com o auxílio do Espírito Santo, até que, pela Cruz, chegue àquela luz que não conhece ocaso». (57)

Precisamente ao longo desta caminhada-peregrinação eclesial, através do espaço e do tempo e, mais ainda, através da história das almas, Maria está presente, como aquela que é «feliz porque acreditou», como aquela que avançava na peregrinação da fé, participando como nenhuma outra criatura no mistério de Cristo. Diz ainda o Concílio que «Maria ... pela sua participação íntima na história da salvação, reúne, por assim dizer, e reflecte em si os imperativos mais altos da fé». (58) Ela é, entre todos os que acreditam, como um «espelho», em que se reflectem da maneira mais profunda e mais límpida «as maravilhas de Deus» (Act 2, 11).

26. Edificada por Cristo sobre os Apóstolos, a Igreja tornou-se plenamente cônscia destas «maravilhas de Deus» no dia do Pentecostes, quando os que estavam congregados no Cenáculo de Jerusalém «ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, segundo o Espírito Santo lhes concedia que se exprimissem» (Act 2, 4). A partir desse momento começa também aquela caminhada de fé, a peregrinação da Igreja através da história dos homens e dos povos. É sabido que, ao iniciar-se essa caminhada, Maria se encontrava presente; vemo-la no meio dos Apóstolos no Cenáculo de Jerusalém, «implorando com as suas orações o dom do Espírito». (59)

A sua caminhada de fé, em certo sentido, é mais longa. O Espírito Santo já tinha descido sobre ela, que se tornou sua fiel esposa na Anunciação, acolhendo o Verbo de Deus vivo, rendendo «o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando o voluntário assentimento à Sua revelação»; ou melhor, abandonando-se totalmente nas mãos de Deus, «mediante a obediência de fé», (60) pelo que respondeu ao Anjo: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Assim, a caminhada de fé de Maria, que vemos a orar no Cenáculo, é «mais longa» do que a dos outros que aí se encontravam reunidos: Maria «precede-os», «vai adiante» deles. (61) O momento do Pentecostes em Jerusalém foi preparado pelo momento da Anunciação em Nazaré. No Cenáculo, o «itinerário» de Maria encontra-se com a caminhada da fé da Igreja. E de que modo?

Entre aqueles que eram assíduos à oração no Cenáculo, preparando-se para ir «por todo o mundo» depois de receber o Espírito Santo, alguns tinham sido chamados por Jesus, uns após outros, sucessivamente, desde os primórdios da sua missão em Israel. Onze dentre eles tinham sido constituídos Apóstolos; e a estes Jesus tinha transmitido a missão que ele próprio recebera do Pai: «Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós» (Jo 20, 21), tinha Ele dito aos mesmos Apóstolos depois da Ressurreição. E, passados quarenta dias, antes de voltar para o Pai, tinha acrescentado ainda: «quando o Espírito Santo tiver descido sobre vós..., sereis minhas testemunhas até às extremidades da terra» (cf. Act 1, 8). Esta missão dos Apóstolos teve início a partir do momento da sua saída do Cenáculo de Jerusalém. A Igreja nasce e começa então a crescer, mediante o testemunho que Pedro e os demais Apóstolos dão acerca de Cristo crucificado e ressuscitado (cf. Act 2, 31-34; 3, 15-18; 4, 10-12; 5, 30-32).

Maria não recebeu directamente esta missão apostólica. Não se encontrava entre aqueles que Jesus enviou «por todo o mundo para ensinar todas as gentes» (cf. Mt 28, 19), quando lhes conferiu tal missão. Estava, porém, no Cenáculo, onde os Apóstolos se preparavam para assumir esta sua missão com a vinda do Espírito da Verdade: Maria estava com eles. No meio deles ela era «assídua na oração» como Mãe de Jesus» (cf. Act 1, 13-14), ou seja, de Cristo crucificado e ressuscitado. E esse primeiro núcleo daqueles que se voltavam «com fé para Jesus Cristo, autor da salvação», (62) estava consciente de que o mesmo Jesus era o Filho de Maria e que ela era sua Mãe; e como tal desde o momento da concepção e do nascimento, ela era uma testemunha especial do mistério de Jesus, daquele mistério que tinha sido expresso e confirmado diante dos seus olhos com a Cruz e a Ressurreição. A Igreja, portanto, desde o primeiro momento, «olhou» para Maria através de Jesus, como também «olhou» para Jesus através de Maria. Ela foi para a Igreja de então e de sempre uma testemunha singular dos anos da infância de Jesus e da sua vida oculta em Nazaré, período em que ela «conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19; Lc 2, 51).

Mas na Igreja de então como na Igreja de sempre, Maria foi e é, sobretudo, aquela que é «feliz porque acreditou»: foi quem primeiro acreditou. Desde o momento da Anunciação e da concepção e depois do nascimento na gruta de Belém, Maria acompanhou passo a passo Jesus, na sua materna peregrinação de fé. Acompanhou-o ao longo dos anos da sua vida oculta em Nazaré; acompanhou-o também durante o período da separação externa, quando ele começou a dedicar-se às «obras e ao ensino» (cf. Act 1, 1 ) no seio de Israel; e acompanhou-o, sobretudo, na experiência trágica do Gólgota. E agora, enquanto Maria se encontrava com os Apóstolos no Cenáculo de Jerusalém, nos albores da Igreja, recebia confirmação a sua fé, nascida das palavras da Anunciação. O Anjo tinha-lhe dito então: «Conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande ... e reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33). Os acontecimentos do Calvário, havia pouco ainda, tinham envolvido em trevas esta promessa; e contudo, mesmo aos pés da Cruz, não tinha desfalecido a fé de Maria. Ela, ainda ali, permanecia aquela que, como Abraão, «acreditou, esperando contra toda a esperança» (Rom 4, 18). E assim, depois da Ressurreição, a esperança tinha desvelado o seu verdadeiro rosto e a promessa tinha começado a transformar-se em realidade. Com efeito, Jesus, antes de voltar para o Pai, dissera aos Apóstolos: «Ide e ensinai todas as gentes... Eis que eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo» (cf. Mt 28, 19. 20). Dissera assim aquele que, com a sua Ressurreição, se tinha revelado como o triunfador da morte, como o detentor de um reinado «que não terá fim», conforme o Anjo tinha anunciado.

27. Agora, nos albores da Igreja, no princípio da sua longa caminhada mediante a fé, que se iniciava em Jerusalém com o Pentecostes, Maria estava com todos aqueles que então constituíam o gérmen do «novo Israel». Estava presente no meio deles como uma testemunha excepcional do mistério de Cristo. E a Igreja era assídua na oração juntamente com ela e, ao mesmo tempo, «contemplava-a à luz do Verbo feito homem». E assim viria a ser sempre. Com efeito, sempre que a Igreja «penetra mais profundamente no insondável mistério da Incarnação», ela pensa na Mãe de Cristo com entranhada veneração e piedade. (63) Maria faz parte indissoluvelmente do mistério de Cristo; e faz parte também do mistério da Igreja desde o princípio, desde o dia do seu nascimento. Na base daquilo que a Igreja é desde o inicio, daquilo que ela deve tornar-se continuamente, de geração em geração, no seio de todas as nações da terra, encontra-se «aquela que acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45). Esta fé de Maria, precisamente, que assinala o início da nova e eterna Aliança de Deus com a humanidade em Jesus Cristo, esta sua fé heróica «precede» o testemunho apostólico da Igreja e permanece no coração da mesma Igreja, escondida como uma herança especial da revelação de Deus. Todos aqueles que, de geração em geração, aceitando o testemunho apostólico da Igreja, começam a participar nessa herança misteriosa, participam, em certo sentido, na fé de Maria.

As palavras de Isabel «feliz daquela que acreditou», continuam a acompanhar a Virgem Maria também no Pentecostes; seguem-na de época para época, para onde quer que se estenda, através do testemunho apostólico e do serviço da Igreja, o conhecimento do mistério salvífico de Cristo. E assim se cumpre a profecia do Magnificat: «Hão-de me chamar bem-aventurada todas as gerações, porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. É santo o seu nome» (Lc 1, 48-49). Ao conhecimento do mistério de Cristo segue-se, efectivamente, a bênção de sua Mãe, sob a forma de especial veneração para com a Theotókos. E nessa veneração estão incluídas sempre as palavras abençoadoras da sua fé. Com efeito, a Virgem de Nazaré, segundo as palavras de Isabel na altura da Visitação, tornou-se ditosa sobretudo mediante essa sua fé. Aqueles que, de geração em geração, no seio de diversos povos e nações, acolhem com fé o mistério de Cristo, Verbo Incarnado e Redentor do mundo, não só se voltam com veneração e recorrem confiadamente a Maria como a sua Mãe, mas na sua fé procuram também o apoio para a própria fé. E precisamente esta participação viva na fé de Maria decide de uma sua presença especial na peregrinação da Igreja, como novo Povo de Deus espalhado por toda a terra.

28. Como diz o Concílio, «Maria ... pela sua participação íntima na história da salvação... quando é exaltada e honrada, atrai os fiéis ao seu Filho e ao sacrifício dele, bem como ao amor do Pai» (64) Por isso, a fé de Maria, atendo-nos ao testemunho apostólico da Igreja, torna-se, de alguma maneira, incessantemente a fé do Povo de Deus que está a caminho: a fé das pessoas e das comunidades, dos encontros e das assembleias e, enfim, dos diversos grupos que existem na Igreja. Trata-se de uma fé que se transmite mediante o conhecimento e o coração ao mesmo tempo; de uma fé que se adquire ou readquire continuamente mediante a oração. É por isso que, «também na sua acção apostólica, a Igreja olha com razão para aquela que gerou Cristo, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo e nasceu da Virgem precisamentepara nascer e crescer também no coração dos fiéis, por meio da Igreja». (65)

Hoje, quando nesta peregrinação de fé já nos aproximamos do final do Segundo Milénio cristão, a Igreja, por intermédio do magistério do Concílio Vaticano II, chama a atenção para aquilo que ela reconhece ser, em si mesma: um «só Povo de Deus ... que se encontra radicado em todas as nações do mundo»; e, igualmente, para a verdade segundo a qual todos os féis, embora «espalhados pelo mundo, comunicam com os restantes por meio do Espírito Santo», (66) de sorte que pode dizer-se que nesta união se realiza continuamente o mistério do Pentecostes. Ao mesmo tempo, os apóstolos e os discípulos do Senhor, em todas as nações da terra, «entregam-se assiduamente à oração, em companhia de Maria, a mãe de Jesus» (cf. Act 1, 14). Constituindo de geração em geração o «sinal do Reino» que «não é deste mundo», (67) eles estão cônscios de que no meio deste mundo devem congregar-se em torno daquele Rei, ao qual foram dadas em posse as nações, para seu domínio (cf. Sl 2, 8), e ao qual Deus e Senhor deu «o trono de David, seu pai», de modo que ele «reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim» (cf. Lc 1, 33).

Neste tempo de vigília, Maria, mediante a mesma fé que a tornou feliz a ela, especialmente a partir do momento da Anunciação, está presente na missão da Igreja, presente na obra da Igreja que introduz no mundo do Reino do seu Filho. (68) Esta presença de Maria, nos dias de hoje, como aliás ao longo de toda a história da Igreja, encontra múltiplos meios de expressão. Possui também um multiforme raio de acção: mediante a fé e a piedade dos fiéis; mediante as tradições das famílias cristãs ou «igrejas domésticas», das comunidades paroquiais e missionárias, dos institutos religiosos e das dioceses; e mediante o poder de atracção e irradiação dos grandes santuários, onde não apenas as pessoas individualmente ou grupos locais, mas por vezes inteiras nações e continentes procuram o encontro com a Mãe do Senhor, com Aquela que é feliz porque acreditou, que é a primeira entre aqueles que acreditaram e por isso se tornou a Mãe do Emanuel. Na mesma linha se enquadra o apelo da Terra da Palestina, pátria espiritual de todos os cristãos, porque foi a pátria do Salvador do mundo e da sua Mãe; de igual modo, o apelo dos numerosos templos que a fé cristã ergueu no decorrer dos séculos em Roma e no mundo inteiro; e, ainda, o apelo de centros como Guadalupe, Lourdes, Fátima e os outros espalhados pelos diversos países, entre os quais, como poderia eu deixar de recordar o da minha terra natal, Jasna Góra? Talvez se pudesse falar de uma «geografia» específica da fé e da piedade marianas, a qual abrange todos estes lugares de particular peregrinação do Povo de Deus; este busca o encontro com a Mãe de Cristo, procurando achar no clima de especial irradiação da presença materna «daquela que acreditou», a consolidação da própria fé.

Com efeito, na fé de Maria, já aquando da Anunciação e de forma completa aos pés da Cruz, reabriu-se para o homem um certo espaço interior, no qual o eterno Pai pode locupletar-nos com «toda a sorte de bênçãos espirituais»: o espaço da «nova e eterna Aliança» (69) Este espaço subsiste na Igreja que, em Cristo, é como que «um sacramento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano». (70)

É pela fé, pois, aquela fé que Maria professou na Anunciação «como serva do Senhor» e com a qual constantemente «precede» o Povo de Deus que está a caminho sobre a terra, que a Igreja «tende eficaz e constantemente à recapitulação de toda a humanidade... sob a Cabeça, Cristo, na unidade do seu Espírito». (71)

2. A caminhada da Igreja e a unidade de todos os Cristãos

29. «O Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a acção em vista de que todos, segundo o modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente num só rebanho e sob um só pastor». (72) A caminhada da Igreja, especialmente na nossa época, está marcada pelo sinal do Ecumenismo: os cristãos procuram as vias para reconstituir aquela unidade que Cristo invocava do Pai para os seus discípulos nas vésperas da sua paixão: «para que todos sejam uma coisa só. Assim como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, também eles sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste» (Jo 17, 21). A unidade dos discípulos de Cristo, portanto, é um sinal influente para suscitar a fé do mundo; ao passo que a sua divisão constitui um escândalo. (73)

O movimento ecuménico, com base numa consciência mais lúcida e difundida da urgência de se chegar à unidade de todos os cristãos, teve a sua expressão culminante, por parte da Igreja católica, na obra do Concílio Vaticano II: é preciso que os mesmos cristãos aprofundem em si próprios e em cada uma das suas comunidades aquela «obediência de fé» de que Maria Santíssima é o primeiro e o mais luminoso exemplo. E uma vez que ela «brilha agora diante do Povo de Deus ainda peregrinante como sinal de esperança segura e de consolação», «é motivo de uma grande alegria e de consolação para o sagrado Concílio o facto de não faltar entre os irmãos desunidos quem tribute à Mãe do Senhor e Salvador a devida honra, sobretudo entre os Orientais». (74)

30. Os cristãos sabem que a unidade entre eles só poderá ser reencontrada verdadeiramente se estiver fundada sobre a unidade da sua fé. Eles devem resolver discordâncias não leves de doutrina, quanto ao mistério e ao ministério da Igreja e quanto à função de Maria na obra da salvação. (75) Os diálogos já entabulados pela Igreja católica com as Igrejas orientais e com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente (76) vão convergindo, cada vez mais, para estes dois aspectos inseparáveis do próprio mistério da salvação. Se o mistério do Verbo Incarnado nos faz vislumbrar o mistério da maternidade divina e se a contemplação da Mãe de Deus, por sua vez, nos introduz numa compreensão mais profunda do mistério da Incarnação, o mesmo se deve dizer do mistério da Igreja e da função de Maria na obra da salvação. Ao aprofundar um e outro e ao tentar esclarecer um por meio do outro, os cristãos, desejosos de fazer — como lhes recomenda a sua Mãe — o que Jesus lhes disser (cf. Jo 2, 5), poderão progredir juntos naquela «peregrinação da fé» de que Maria é sempre o exemplo e que deve conduzi-los à unidade, querida pelo seu único Senhor e tão desejada por aqueles que estão prontos a ouvir atentamente o que o Espírito diz hoje às Igrejas (cf. Apoc 2, 7. 11. 17).

Entretanto, é um bom presságio que estas Igrejas e Comunidades eclesiais estejam concordes em pontos fundamentais da fé cristã, também pelo que diz respeito à Virgem Maria. Elas, de facto, reconhecem-na como Mãe do Senhor e acham que isso faz parte da nossa fé em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ademais, volvem para ela o olhar, aceitando ser Aquela que, aos pés da Cruz, acolhe o discípulo amado como seu filho, o qual, por sua vez, a recebe a ela como mãe.

Por que, então, não olhar todos conjuntamente para a nossa Mãe comum, que intercede pela unidade da família de Deus e que a todos «precede», à frente do longo cortejo das testemunhas da fé no único Senhor, o Filho de Deus, concebido no seu seio virginal por obra do Espírito Santo?

31. Desejo realçar, por outro lado, quanto a Igreja católica, a Igreja ortodoxa e as antigas Igrejas orientais se sentem profundamente unidas no amor e louvor à Theotókos. Não só «os dogmas fundamentais da fé cristã acerca da Trindade e do Verbo de Deus, que assumiu a carne da Virgem Maria, foram definidos nos Concílios ecuménicos celebrados no Oriente», (77) mas também no seu culto litúrgico «os Orientais exaltam com hinos esplêndidos Maria sempre Virgem ... e Santíssima Mãe de Deus». (78)

Os irmãos destas Igrejas passaram por vicissitudes complexas; mas a sua história foi sempre animada por um vivo desejo de empenhamento cristão e de irradiação apostólica, embora muitas vezes marcada por perseguições, mesmo cruentas. É uma história de fidelidade ao Senhor, uma autêntica «peregrinação da fé» através dos lugares e dos tempos, nos quais os cristãos orientais sempre se voltaram com ilimitada confiança para a Mãe do Senhor, a celebraram com louvores e a invocaram constantemente com orações. Nos momentos difíceis da sua existência cristã atribulada, «eles refugiaram-se sob a sua protecção», (79) conscientes de encontrarem nela um poderoso auxílio. As Igrejas que professam a doutrina de Éfeso, proclamam a Virgem Maria «verdadeira Mãe de Deus», por isso mesmo que «nosso Senhor Jesus Cristo, nascido do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, nos últimos tempos, por nós e para nossa salvação, foi gerado pela Virgem Maria Mãe de Deus segundo a humanidade», (80) Os Padres gregos e a tradição bizantina, contemplando a Virgem Santíssima à luz do Verbo feito homem, procuraram penetrar na profundidade daquele vínculo que une Maria, enquanto Mãe de Deus, a Cristo e à Igreja: ela é uma presença permanente em toda a amplidão do mistério salvífico.

As tradições coptas e etiópicas foram introduzidas nessa contemplação do mistério de Maria por São Cirilo de Alexandria; e, por sua vez, celebraram-na com uma abundante florescência poética. (81) O génio poético de Santo Efrém, o Sirio, denominado «a cítara do Espirito Santo», cantou infatigavelmente a Virgem Maria, deixando um rasto ainda visível em toda a tradição da Igreja siríaca. (82) No seu panegírico da Theotókos, São Gregório de Narek, uma das mais fúlgidas glórias da Arménia, com vigoroso estro poético, aprofundou os diversos aspectos do mistério da Incarnação; e cada um destes aspectos é para ele ocasião de cantar e exaltar a dignidade extraordinária e a beleza esplendorosa da Virgem Maria, Mãe do Verbo Incarnado. (83)

Não é para admirar, pois, que Maria tenha um lugar privilegiado no culto das antigas Igrejas orientais, com uma abundância admirável de festas e de hinos.

32. Na liturgia bizantina, em todas as horas do Ofício divino, o louvor da Mãe anda unido ao louvor do Filho e ao louvor que, por meio do Filho, se eleva ao Pai no Espírito Santo. Na anáfora ou oração eucarística de São João Crisóstomo, imediatamente depois da epiclése, a comunidade reunida canta desta forma à Mãe de Deus: «É verdadeiramente justo proclamar-vos bem-aventurada, ó Deípara, que sois felicíssima, toda pura e Mãe do nosso Deus. Nós vos magnificamos: a vós, que sois mais digna de honra do que os querubins e incomparavelmente mais gloriosa do que os serafins! A vós que, sem perder a vossa virgindade, destes ao mundo o Verbo de Deus! A vós, que sois verdadeiramente a Mãe de Deus»!

Semelhantes louvores, que em cada celebração da liturgia eucarística se elevam a Maria Santíssima, forjaram a fé, a piedade e a oração dos fiéis. No decorrer dos séculos tais louvores impregnaram todas as expressões da sua espiritualidade, suscitando neles uma devoção profunda para com a «Santíssima Mãe de Deus».

33. Este ano ocorre o XII centenário do segundo Concílio Ecuménico de Niceia (a. 787), no qual, para resolução da conhecida controvérsia acerca do culto das imagens sagradas, foi definido que, segundo o ensino dos santos Padres e segundo a tradição universal da Igreja, se podiam propôr à veneração dos fiéis, conjuntamente com a Cruz, as imagens da Mãe de Deus, dos Anjos e dos Santos, tanto nas igrejas como nas casas ou ao longo dos caminhos. (84) Este costume foi conservado em todo o Oriente e também no Ocidente: as imagens da Virgem Maria têm um lugar de honra nas igrejas e nas casas. Maria é representada: ou como trono de Deus, que sustenta o Senhor e o doa aos homens (Theotókos); ou como caminho que leva a Cristo e o mostra (Odigitria); ou como orante, em atitude de intercessão e sinal da presença divina nos caminhos dos fiéis, até ao dia do Senhor (Deisis); ou como protectora, que estende o seu manto sobre os povos (Pokrov); ou, enfim, como Virgem misericordiosa e cheia de ternura (Eleousa). Ela é representada, habitualmente, com o seu Filho, o Menino Jesus, que tem nos braços: é a relação com o Filho que glorifica a Mãe. Algumas vezes, ela abraça-o com ternura (Glykofilousa); outras vezes, está hiératica e parece absorvida na contemplação daquele que é o Senhor da história (cf. Apoc 5, 9-14). (85)

Convém também recordar a Ícone de Nossa Senhora de Vladimir, que constantemente acompanhou a peregrinação de fé dos povos da antiga «Rus'». Aproxima-se o primeiro Milénio da conversão ao Cristianismo daquelas nobres terras: terras de gente humilde, de pensadores e de santos. As Ícones são veneradas ainda hoje na Ucrânia, na Bielo-Rússia (ou Rússia Branca) e na Rússia, sob diversos títulos: são imagens que atestam a fé e o espírito de oração daquele povo bondoso, que adverte a presença e a protecção da Mãe de Deus. Nessas Ícones a Virgem Maria resplandece como reflexo da beleza divina, morada da eterna Sabedoria, figura da orante, protótipo da contemplação e imagem da glória: tenta-se representar aquela que, desde o início da sua vida terrena, possuindo a ciência espiritual inacessível aos raciocínios humanos, com a fé alcançou o conhecimento mais sublime. Recordo, ainda, a Ícone da Virgem do Cenáculo, em oração com os Apóstolos, aguardando a vinda do Espírito: não poderia ela tornar-se sinal de esperança para todos aqueles que, no diálogo fraterno, querem aprofundar a própria obediência da fé?

34. Tamanha riqueza de louvores, acumulada pelas diversas formas da grande tradição da Igreja, poderia ajudar-nos a fazer com que a mesma Igreja torne a respirar plenamente «com os seus dois pulmões»: o Oriente e o Ocidente. Como já afirmei, por mais de uma vez, isso é necessário mais do que nunca, nos dias de hoje. Seria um valioso auxílio para fazer progredir o diálogo em vias de actuação entre a Igreja católica e as Igrejas e as Comunidades eclesiais do Ocidente. (86) E seria também a via para a Igreja que está a caminho poder cantar e viver de modo mais perfeito o seu «Magnificat».

3. O «Magnificat» da Igreja que está a caminho

35. Na fase actual da sua caminhada, a Igreja procura, pois, reencontrar a união de todos os que professam a própria fé em Cristo, para manifestar a obediência ao seu Senhor que orou por esta unidade, antes do seu iminente sacrifício. Ela vai avançando na «sua peregrinação... e anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele venha». (87) «Prosseguindo entre as tentações e tribulações da caminhada, a Igreja é apoiada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor, para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza humana, mas permaneça digna esposa do seu Senhor e, com o auxílio do Espírito Santo, não cesse de se renovar a si própria até que, pela Cruz, chegue á luz que não conhece ocaso». (88)

A Virgem Maria está constantemente presente nesta caminhada de fé do Povo de Deus em direcção à luz. Demonstra-o de modo especial o cântico do «Magnificat», que, tendo jorrado da profundidade da fé de Maria na Visitação, não cessa de vibrar no coração da Igreja ao longo dos séculos. Prova-o a sua recitação quotidiana na liturgia das Vésperas e em muitos outros momentos de devoção, quer pessoal, quer comunitária.

«A minha alma glorifica o Senhor,
e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,
porque olhou para a humildade da sua serva.
De hoje em diante todas as gerações
hão-de me chamar bem-aventurada.
Porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. E santo é o seu nome:
a sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos com os desígnios
que eles conceberam;
derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes
encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.
Socorreu Israel, seu servo,
recordando-se da sua misericórdia,
como tinha prometido aos nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre»
(Lc 1, 46-55).

36. Quando Isabel saudou a jovem parente, que acabava de chegar de Nazaré, Maria respondeu com o Magnificat. Na sua saudação, Isabel tinha chamado a Maria: primeiro, «bendita» por causa do «fruto do seu ventre»; e depois, «feliz» (bem-aventurada) por causa da sua fé (cf. Lc 1, 42. 45 ). Estas duas palavras abençoantes referiam-se directamente ao momento da Anunciação. Agora, na Visitação, quando Isabel, na sua saudação, dá um testemunho daquele momento culminante, a fé de Maria enriquece-se de uma nova consciência e de uma nova expressão. Aquilo que no momento da Anunciação permanecia escondido na profundidade da «obediência da fé» dir-se-ia que agora daí irrompe, como uma chama clara e vivificante do espírito. As palavras usadas por Maria, no limiar da casa de Isabel, constituem uma profissão inspirada desta sua fé, na qual se exprime a resposta à palavra da revelação, com a elevação religiosa e poética de todo o seu ser no sentido de Deus. Nessas palavras sublimes, que são ao mesmo tempo muito simples e totalmente inspiradas nos textos sagrados do povo de Israel, (89) transparece a experiência pessoal de Maria, o êxtase do seu coração. Resplandece nelas um clarão do mistério de Deus, a glória da sua inefável santidade, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem.

Maria é a primeira a participar nesta nova revelação de Deus e, mediante ela, nesta nova «autodoação» de Deus. Por isso proclama: «Grandes coisas fez em mim ... e santo é o seu nome». As suas palavras reflectem a alegria do espírito, difícil de exprimir: «O meu espírito exulta em Deus, meu Salvador». Porque «a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos... em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação». (90) No arroubo do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude de Cristo. Está consciente de que em si está a cumprir-se a promessa feita aos pais e, em primeiro lugar, em favor de «Abraão e da sua descendência para sempre»: que em si, portanto, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica, na qual «de geração em geração» se manifesta Aquele que, como Deus da Aliança, «se recorda da sua misericórdia».

37. A Igreja, que desde o início modela a sua caminhada terrena pela caminhada da Mãe de Deus, repete constantemente, em continuidade com ela, as palavras do Magnificat. Nas profundidades da fé da Virgem Maria na Anunciação e na Visitação, a Igreja vai haurir a verdade acerca do Deus da Aliança; acerca de Deus que é Todo-poderoso e faz «grandes coisas» no homem: «santo é o seu nome». No Magnificat, ela vê debelado nas suas raízes o pecado do princípio da história terrena do homem e da mulher: o pecado da incredulidade e da «pouca fé» em Deus. Contra a «suspeita» que o «pai da mentira» fez nascer no coração de Eva, a primeira mulher, Maria, a quem a tradição costuma chamar «nova Eva» (91) e verdadeira «mãe dos vivos», (92) proclama com vigor a não ofuscada verdade acerca de Deus: o Deus santo e omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas, aquele que «fez grandes coisas» nela, Maria, assim como em todo o universo. Deus, ao criar, dá a existência a todas as realidades; e ao criar o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e da semelhança consigo, de modo singular em relação a todas as demais criaturas terrestres. E não se detendo na sua vontade de doação, não obstante o pecado do homem, Deus dá-se no Filho: «Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16) Maria é a primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se actuará plenamente mediante «as obras e os ensinamentos» (cf. Act 1, 1) do seu Filho e, definitivamente, mediante a sua Cruz e Ressurreição.

A Igreja, que, embora entre «tentações e tribulações», não cessa de repetir com Maria as palavras do Magnificat, «escora-se» na força da verdade sobre Deus, proclamada então com tão extraordinária simplicidade; e, ao mesmo tempo, deseja iluminar com esta mesma verdade acerca de Deus os difíceis e por vezes intrincados caminhos da existência terrena dos homens. A caminhada da Igreja, portanto, já quase no final do Segundo Milénio cristão, implica um empenhamento renovado na própria missão. Segundo Aquele que disse de si: «(Deus) mandou-me a anunciar aos pobres a boa nova» (cf. Lc 4, 18), a Igreja tem procurado, de geração em geração, e procura ainda hoje cumprir esta mesma missão.

O seu amor preferencial pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que «derruba os poderosos dos tronos e exalta os humildes... enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias ... dispersa os soberbos... e conserva a sua misericórdia para com aqueles que o temem».

Maria está profundamente impregnada do espírito dos «pobres de Javé» que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (Sl 25; 31; 35; e 55). Ela, na verdade, proclama o advento do mistério da salvação, a vinda do «Messias dos pobres» (cf. Is 11, 4; 61, 1). Haurindo certeza do coração de Maria, da profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, a Igreja renova em si, sempre para melhor, essa própria certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus.

A Igreja, portanto, está bem cônscia - e na nossa época esta sua certeza reforça-se de modo particular - não só de que não podem ser separados estes dois elementos da mensagem contida no Magnificat, mas também de que deve outrossim ser salvaguardada cuidadosamente a importância que têm os «pobres» e a «opção em favor dos pobres» na palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente conexos com o sentido cristão da liberdade e da libertação. Maria, «totalmente dependente de Deus e toda ela orientada para Ele, ao lado do seu Filho, é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos. É para Maria que a Igreja, da qual ela é Mãe e modelo, deve olhar, a fim de compreender na sua integralidade o sentido da própria missão». (93)