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Exortação Apostólica
REDEMPTIONIS DONUM

II. VOCAÇÃO

«Jesus fitou-o com amor...»

3. «Jesus fitou-o com amor» (6) e disse-lhe: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois vem e segue-me». (7) Embora saibamos que estas palavras, ditas ao jovem rico, não foram acolhidas por ele, como «chamado», o seu conteúdo no entanto, merece uma atenta reflexão; elas apresentam, de facto, a estrutura interior da vocação.

«Jesus fitou-o com amor ...». Está aqui estampado o amor do Redentor: aquele amor que brota de toda a profundeza divino-humana da Redenção. Nele reflecte-se o eterno amor do Pai, que «amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que crê n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». (8) O Filho, imbuído por este amor, aceitou a missão do Pai no Espírito Santo e tornou-se o Redentor do mundo. E o amor do Pai revelou-se no Filho como amor que salva. É este amor precisamente que constitui o verdadeiro preço da Redenção do homem e do mundo. Os Apóstolos de Cristo falam com profunda emoção de tal preço da Redenção: «... não fostes resgatados... a preço de coisas corruptíveis, como a prata e o ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula», escreve São Pedro. (9) «Na verdade, fostes comprados por elevado preço», diz também São Paulo. (10)

O chamamento para seguir o caminho dos conselhos evangélicos nasce do encontro íntimo com o amor de Cristo, que é amor redentor. É com este amor, exactamente, que Cristo chama. Na estrutura da vocação, o encontro com este amor torna-se algo especificamente pessoal. Quando Cristo, «depois de vos ter fitado, vos amou», chamando cada um e cada uma de vós, amados Religiosos e Religiosas, aquele seu amor redentor foi dirigido a uma determinada pessoa, adquirindo ao mesmo tempo características esponsais: tornou-se amor de eleição. Tal amor abrange a pessoa toda, alma e corpo, seja homem ou mulher, com o seu único e irrepetível «eu» pessoal. Aquele que, doado eternamente ao Pai, «se dá» a si próprio no mistério de Redenção, eis que chama o homem, a fim de que este, por sua vez, se dê inteiramente a um serviço particular da obra da Redenção, mediante a agregação a uma Comunidade fraterna, reconhecida e aprovada pela Igreja. Não serão, porventura, um eco deste chamamento as palavras de São Paulo: «Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo ... e que vós não sois senhores de vós mesmos? Na verdade, fostes comprados por elevado preço». (11)

Sim: o amor de Cristo assenhoreou-se de cada um e de cada uma de vós, amados Religiosos e Religiosas, por aquele mesmo «preço» da Redenção. E em consequência disso, vós apercebestes-vos de que já não pertenceis a vós mesmos, mas a Ele. Esta nova consciência foi o fruto do «olhar amoroso» de Cristo no íntimo dos vossos corações. E vós correspondestes a esse olhar escolhendo Aquele que primeiro vos escolheu a cada um e a cada uma de vós, chamando-vos com a imensidade do seu amor redentor. Chamando «pelo nome», o seu chamamento faz sempre apelo àliberdade do homem. Cristo diz: «Se queres ...». A resposta a este chamamento, portanto, é uma escolha livre. Escolhestes a Jesus de Nazaré, o Redentor do mundo, ao escolherdes o caminho que Ele vos indicou.

«Se queres ser perfeito ...»

4. Este caminho também é chamado caminho da perfeição. Conversando com o jovem, Cristo diz: «Se queres ser perfeito ...»; de tal maneira que o conceito de «caminho da perfeição» tem a sua razão de ser na fonte do próprio Evangelho. Não ouvimos nós, de resto, no Sermão da Montanha: «Sede, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste»? (12) O chamamento do homem à perfeição foi pressentido, de alguma maneira, pelos pensadores e moralistas do mundo antigo e também sucessivamente, nas diversas épocas da história. O chamamento bíblico, porém, reveste-se de uma sua característica absolutamente original, e apresenta-se particularmente exigente, quando aponta ao homem a perfeição à semelhança do próprio Deus. (13) Sob esta forma, precisamente, o chamamento corresponde a toda a lógica interna da Revelação, segundo a qual o homem foi criado àimagem e semelhança do próprio Deus. Por conseguinte, deve buscar a perfeição que lhe é própria na linha desta imagem e semelhança. Escreverá São Paulo na Carta aos Efésios: «Sede, pois, imitadores de Deus, como convém a filhos muito amados; caminhai na caridade a exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a si mesmo a Deus, como oferenda e sacrifício de agradável odor». (14)

O chamamento à perfeição, portanto, pertence à própria essência da vocação cristã. E é sobre a base deste chamamento que é preciso compreender também as palavras de Cristo dirigidas ao jovem do Evangelho. Elas estão ligadas de modo especial ao mistério da Redenção do homem e do mundo. Esta, de facto, restitui a Deus a obra da Criação contaminada pelo pecado, indicando a perfeição que tem tudo o que foi criado e, de modo particular, o homem, no pensamento e na intenção do mesmo Deus. O homem, especialmente, deve ser doado e restituído a Deus, para poder ser restituído a si mesmo. Donde o eterno chamamento: «Volta para mim, pois te resgatei». (15) Assim, as palavras de Cristo: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres ...» introduzem-nos, sem dúvida, no âmbito do conselho evangélico da pobreza, que pertence à própria essência da vocação e da profissão religiosa.

Estas palavras podem ser entendidas ainda de uma maneira mais ampla e, em certo sentido, essencial. O Mestre de Nazaré convida o seu interlocutor a renunciar a um programa de vida no qual emerge, em primeiro plano, a categoria da posse, a categoria do «ter»; e, em vez disso, a aceitar um outro programa centrado no valor da pessoa humana, no «ser» pessoal, com toda a transcendência que lhe é própria.

Uma compreensão assim das palavras de Cristo constitui como que um plano de base mais amplo para o ideal da pobreza evangélica, especialmente daquela pobreza que, enquanto conselho evangélico, pertence ao conteúdo essencial das vossas núpcias místicas com o Esposo divino na Igreja. Ao lermos as palavras de Cristo à luz do princípio da superioridade do «ser» sobre o «ter» - especialmente quando este último é entendido no sentido materialista e utilitarista - nós atingimos quase as próprias bases antropológicas da vocação como resultam no Evangelho.

Na perspectiva do desenvolvimento da civilização contemporânea, está nisto uma descoberta particularmente actual. E por isso, a própria vocação ao «caminho da perfeição», tal como foi traçado pelo próprio Cristo, apresenta-se também actual. Dado que no âmbito da civilização hodierna, especialmente no contexto do mundo do bem-estar da sociedade de consumo, o homem sente profunda e dolorosamente a deficiência essencial de «ser» pessoal, que resulta para a sua humanidade da abundância do multiforme «ter», então ele passa a estar mais disposto para acolher esta verdade sobre a vocação, que foi expressa de uma vez para sempre no Evangelho. Sim, o chamamento que vós acolheis, amados Irmãos e Irmãs, quando entrais pelo caminho da profissão religiosa, toca as próprias raízes da humanidade, as raízes do destino do homem no mundo temporal. O «estado de perfeição» evangélico não vos separa destas raízes. Pelo contrário, é algo que vos permite ancorar mais seguramente naquilo por que o homem é homem, impregnando esta humanidade, entorpecida pelo pecado de diversas maneiras, com o fermento divino-humano do mistério da Redenção.

«Terás um tesouro no céu»

5. A vocação encerra em si a resposta à pergunta: para quê ser homem - e como sê-lo? Esta resposta confere à vida toda uma nova dimensão e determina o seu sentido definitivo. Este sentido emerge no horizonte do paradoxo evangélico acerca da vida que se perde quando se quer salvá-la, e que, ao contrário, se salva perdendo-a «por causa de Cristo e do Evangelho», como lemos em São Marcos. (16)

À luz destas palavras reveste-se de plena evidência o chamamento de Cristo: «vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me». (17) Entre o termo «vai» e o sucessivo «vem e segue-me» estabelece-se uma relação íntima. Pode-se dizer que estas últimas palavras determinam a própria essência da vocação; com efeito, trata-se de seguir as pegadas de Cristo (sequi = palavra latina, de onde vem a sequela Christi). Os termos «vai ... vende ... dá-o» parecem determinar bem a condição que precede a vocação. No entanto, esta condicão não é, por outro lado, algo que esteja «fora» da vocação; mas já se encontra «no interior» da mesma. O homem, efectivamente, faz a descoberta do novo sentido da própria humanidade, não apenas para «seguir» a Cristo, mas na medida em que O segue. Quando «vende o que possui» e «o dá aos pobres», é então que ele descobre que aqueles bens e aquela «vida na abundância», de que já dispunha, não constituíam o tesouro junto do qual pudesse aquietar-se: o tesouro está no seu coração, por Cristo feito capaz de «dar» aos outros, dando-se a si próprio. Rico não é aquele que possui; mas sim aquele que «dá», aquele que é capaz de dar.

Aqui neste ponto o paradoxo evangélico adquire uma expressividade particular. Torna-se um programa do ser: ser pobre, no sentido dado a este «ser» pelo Mestre de Nazaré, significa tornar-se um dispensador de bem com a própria humanidade. Isto quer dizer, igualmente, descobrir «o tesouro». Este tesouro é indestrutível. Conjuntamente ao homem ele prolonga-se na dimensão da eternidade, pertence à escatologia divina do mesmo homem. Mediante este tesouro o homem passa a ter o seu futuro definitivo em Deus. Cristo disse: «terás um tesouro no céu». E este tesouro não é «um prémio» somente, depois da morte, pelas boas obras praticadas a exemplo do divino Mestre; mas é sobretudo o completamento escatológico daquilo que se escondia por detrás dessas boas obras, já aqui na terra, no «tesouro» interior do coração. O próprio Cristo, aliás, no Sermão da Montanha, (18) ao exortar a angariar tesouros no céu, acrescentava: «onde está o teu tesouro, ai estará também o teu coração». (19) Estas palavras indicam o carácter escatológico da vocação cristã e, mais ainda, o carácter escatológico da vocação que se realiza seguindo o caminho das núpcias espirituais com Cristo, mediante a prática dos conselhos evangélicos.

6. A estrutura desta vocação, conforme se depreende das palavras dirigidas ao jovem nos Evangelhos sinópticos, (20) configura-se mediante a descoberta do tesouro fundamental da própria humanidade, na perspectiva daqueloutro «tesouro» que o homem «terá no céu». E com esta perspectiva o tesouro substancial da própria humanidade fica associado ao facto de «ser dando-se a si próprio». O ponto de referência directo para uma vocação assim é a pessoa viva de Jesus Cristo. O chamamento ao caminho da perfeição recebe a sua configuração d'Ele e por Ele no Espírito Santo, o qual vai recordando sempre a pessoas diversas - homens e mulheres, em diferentes momentos da sua vida, mas prevalentemente na juventude - tudo o que Cristo «disse», (21) em particular aquilo que «disse» ao jovem que Lhe perguntava: Mestre, que devo eu fazer de bom, para obter a vida eterna?». (22) Mediante a resposta de Cristo, que «fitou com amor» o seu interlocutor, o fermento forte do mistério da Redenção penetra na consciência, no coração e na vontade de todo o homem que busca com verdade e sinceridade.

Deste modo, o chamamento a percorrer o caminho dos conselhos evangélicos tem sempre o seu início em Deus: «Não fostes vós que me escolhestes a mim: fui eu que vos escolhi a vós e vos constituí para que vades e produzais fruto e para que o vosso fruto seja duradouro», (23) A vocação, na qual o homem descobre totalmente a lei evangélica da doação inscrita na própria humanidade, é também ela um dom! É um dom repleto do conteúdo mais profundo do Evangelho; um dom em que se reflecte o perfil divino-humano do mistério da Redenção do mundo. «Nisto consiste o amor: não fomos nós que amámos a Deus; mas foi Ele que nos amou e nos enviou o seu Filho em expiação dos nossos pecados». (24)