A g n u s D e i

RECONCILIATIO ET PAENITENTIA
João Paulo II
02.12.1984

III
A PASTORAL DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO

Promoção da penitência e da reconciliação

23. Suscitar no coração do homem a conversão e a penitência e proporcionar-lhe o dom da reconciliação é a missão conatural da Igreja, como continuadora da obra redentora do seu divino Fundador. Trata-se de uma missão que não será cumprida só com algumas afirmações teóricas e com a proposta de um ideal ético não acompanhado por energias operativas; mas está destinada a expressar-se em funções ministeriais bem precisas, em ordem à prática concreta da penitência e da reconciliação.

A este ministério, fundado e iluminado pelos princípios de fé acima ilustrados, orientado para objectivos precisos e apoiado em meios adequados, podemos dar o nome de pastoral da penitência e da reconciliação. O seu ponto de partida é a convicção da Igreja, de que o homem, a quem se destinam todas as formas de pastoral, mas principalmente a pastoral da penitência e da reconciliação, é o homem marcado pelo pecado, retratado no exemplo significativo do rei David. Repreendido pelo profeta Natan, David aceita olhar de frente as suas próprias torpezas, confessando: «Pequei contra o Senhor». (115) E proclama: «Reconheço os meus pecados, tenho sempre diante de mim as minhas culpas». (116) Mas também suplica: «Purificai-me, Senhor, e ficarei limpo; lavai-me e ficarei mais branco do que a neve»; (117) e recebe a resposta da misericórdia divina: «O Senhor perdoou o teu pecado, não morrerás». (118)

A Igreja encontra-se, pois, diante do homem — de todo um mundo humano — ferido pelo pecado e por ele atingido naquilo que tem de mais íntimo, na profundidade do seu ser; mas, ao mesmo tempo, movido interiormente por um incontível desejo de libertação do pecado e também, especialmente se for cristão, consciente de que o mistério da piedade, Cristo Senhor, já está a actuar nele e no mundo com a força da Redenção.

A função reconciliadora da Igreja deve desenvolver-se, pois, segundo aquele nexo íntimo que conjunge estreitamente o perdão e a remissão dos pecados de cada homem com a reconciliação plena e fundamental da humanidade, que foi realizada pela Redenção. Este nexo leva-nos a compreender que, sendo o pecado o princípio activo da divisão — divisão entre o homem e o Criador, divisão no coração e no ser do homem, divisão entre os indivíduos e entre os grupos humanos, divisão entre o homem e a natureza criada por Deus — só a conversão do pecado é capaz de operar uma reconciliação profunda e duradoura onde quer que a divisão tenha penetrado.

Não é necessário repetir tudo o que já disse a respeito da importância deste ministério da reconciliação (119) e da correspondente pastoral que o põe em prática na consciência e na vida da Igreja. Esta, de facto, falharia num aspecto essencial do seu ser e deixaria por realizar uma sua função inabdicável, se não apregoasse, com clareza e firmeza, a tempo e fora de tempo, a «palavra da reconciliação» (120) e não proporcionasse ao mundo o dom da reconciliação. Mas, convém repeti-lo, a importância do serviço eclesial da reconciliação estende-se para além das fronteiras visíveis da Igreja, ao mundo inteiro.

Falar de pastoral da penitência e da reconciliação, portanto, equivale a referir-se ao conjunto das tarefas de que a Igreja está incumbida, a todos os níveis, para a promoção de uma e outra. Mais concretamente, falar desta pastoral significa recordar todas as actividades práticas, mediante as quais a Igreja, em todas e cada uma das suas componentes — Pastores e fiéis, a todos os níveis e em todos os campos — e com todos os meios à sua disposição — palavra e acção, ensino e oração — procura levar os homens, individualmente ou em grupo, à verdadeira penitência e introduzi-los assim no caminho da plena reconciliação.

Os Padres do Sínodo, como representantes dos seus Irmãos Bispos, guias do povo que lhes está confiado, debruçaram-se sobre esta pastoral nos seus elementos mais práticos e concretos. E é para mim motivo de alegria fazer-me eco deles, associando-me às suas inquietudes e esperanças, acolhendo os frutos dos seus esforços de procura e experiências e encorajando-os nos seus planos e realizações. Que eles possam encontrar nesta parte da Exortação Apostólica a contribuição que deram para o Sínodo, cuja utilidade desejaria tornar extensiva, mediante estas páginas, à Igreja inteira.

Desejaria, pois, pôr em evidência o essencial da pastoral da penitência e da reconciliação, salientando nela, com a Assembleia do Sínodo, os dois pontos seguintes:

  1. Os meios usados e as vias seguidas pela Igreja para promover a penitência e a reconciliação,

  2. O Sacramento por excelência da penitência e da reconciliação.

1. Meios e vias para a promoção da penitência e da reconciliação

24. Para promover a penitência e a reconciliação, a Igreja tem ao seu dispor dois meios, principalmente, que lhe foram confiados pelo seu próprio Fundador: a catequese e os Sacramentos. A utilização destes meios, considerada sempre pela Igreja plenamente conforme às exigências da sua missão salvífica e igualmente susceptível de corresponder às exigências e necessidades espirituais dos homens de todos os tempos, pode ser levada a efeito seguindo formas e modos antigos e novos, entre os quais será bom recordar, especialmente, o que, em continuidade com o meu Predecessor Paulo VI, podemos designar por método do diálogo.

O Diálogo

25. O diálogo é para a Igreja, em certo sentido, um meio e sobretudo um modo de desenvolver a sua acção no mundo contemporâneo.

De facto, o Concílio Vaticano II, depois de ter proclamado que «a Igreja, em virtude da missão que tem de iluminar todo o mundo com a mensagem evangélica e reunir num só Espírito todos os homens (...), torna-se sinal daquela fraternidade que permite e robustece um diálogo sincero», acrescenta que a mesma Igreja deve ser capaz de «estabelecer um diálogo cada vez mais frutuoso entre todos os que constituem o único Povo de Deus», (121) assim como de «estabelecer um diálogo com a sociedade humana». (122)

O meu Predecessor Paulo VI dedicou ao diálogo uma parte notável da sua primeira Encíclica Ecclesiam Suam, na qual o descreve e caracteriza significativamente como diálogo da salvação. (123)

Na verdade, a Igreja usa o método do diálogo para melhor conduzir os homens — aqueles que pelo Baptismo e a profissão de fé se reconhecem membros da comunidade cristã e aqueles que lhe são estranhos — à conversão e à penitência, pelos caminhos de uma profunda renovação da própria consciência e da própria vida à luz do mistério da Redenção e da Salvação, realizadas por Cristo e confiadas ao ministério da sua Igreja. O diálogo autêntico, por conseguinte, tem em vista, antes de mais, a regeneração de cada um, mediante a conversão interior e a penitência, sempre com profundo respeito pelas consciências e com a paciência e o processo gradual requeridos pelas condições dos homens do nosso tempo.

O diálogo pastoral, em vista da reconciliação, continua a ser hoje uma solicitude fundamental da Igreja em diversos âmbitos e a vários níveis.

Antes de mais, a Igreja promove um diálogo ecuménico, ou seja, um diálogo entre Igrejas e Comunidades eclesiais que se atêm à fé em Cristo, Filho de Deus e único Salvador, e um diálogo com as outras comunidades de homens que buscam a Deus e desejam estabelecer uma relação de comunhão com Ele.

Como base desse diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, e como condição da sua credibilidade e eficácia, deve haver um sincero esforço de diálogo permanente e renovado no interior da própria Igreja católica. Esta tem a consciência de ser, por natureza, sacramento da comunhão universal de caridade; (124) mas também sabe que existem no seu seio tensões que correm o risco de se transformar em factores de divisão.

A exortação dorida e firme, feita a seu tempo pelo meu Predecessor, com vista ao Ano Santo de 1975, (125) continua válida ainda no momento actual. Para se obter a superação dos conflitos e fazer com que as normais tensões não resultem nocivas para a unidade da Igreja, é preciso que todos nos confrontemos com a Palavra de Deus e, postas de parte as próprias maneiras de ver subjectivas, procuremos a verdade onde ela se encontra, ou seja, na mesma Palavra divina e na interpretação autêntica que dela nos dá o Magistério da Igreja. Sob esta luz, a escuta recíproca, o respeito e a abstenção de todo o juízo apressado, a paciência, a capacidade de evitar que a fé, que une, seja subordinada às opiniões, às modas e às opções ideológicas, que dividem, são outras tantas qualidades de um diálogo que, no interior da Igreja, deve ser assíduo, cheio de boa vontade e sincero. E é claro que não o seria, nem se tornaria num factor de reconciliação, sem a atenção ao Magistério e a aceitação do mesmo.

Aplicada deste modo, efectivamente, na busca da sua própria comunhão interna, a Igreja católica pode dirigir o apelo à reconciliação - como de há tempos já vem fazendo - às outras Igrejas com as quais não se verifica plena comunhão, bem como às outras religiões e até mesmo a quem simplesmente procura Deus com coração sincero.

À luz do Concílio e do Magistério dos meus Predecessores, cuja preciosa herança recebi e me esforço por conservar e pôr em actuação, posso afirmar que a Igreja católica, com todas as suas componentes, se empenha com lealdade no diálogo ecuménico, sem optimismos fáceis, mas também sem desalento e sem hesitações ou perdas de tempo. As regras fundamentais que ela procura seguir nesse diálogo são: por um lado, a persuasão de que somente um ecumenismo espiritual — ou seja, fundado na oração comum e na comum docilidade ao único Senhor — permitirá corresponder sincera e seriamente às outras exigências da acção ecuménica; (126) e, por outro lado, a convicção de que um certo irenismo em matéria doutrinal e sobretudo dogmática, poderia talvez levar a um a forma de convivência superficial e não duradoura, mas nunca àquela comunhão profunda e estável que todos desejamos. Chegar-se-á a esta comunhão, no momento em que a divina Providência quiser; mas para se chegar lá, a Igreja católica, pelo que lhe diz respeito, sabe que deve estar aberta e sensível a todos «os valores verdadeiramente cristãos, que promanam do património comum e se encontram também entre os irmãos de nós separados»; (127) mas sabe igualmente que deve colocar na base de um diálogo leal e construtivo a clareza na posição dos problemas, a fidelidade e a coerência com a fé transmitida e definida na esteira da tradição perene pelo seu Magistério. Apesar da ameaça dum aparente derrotismo e malgrado a inevitável lentidão que a inconsideração não poderá nunca corrigir, a Igreja católica continua a procurar com todos os outros Irmãos cristãos as vias da unidade, e com os seguidores das outras religiões um diálogo sincero. Que este diálogo inter-religioso possa fazer chegar pelo menos à superação das atitudes de hostilidade, de desconfiança, de mútua condenação e quiçá de mútuas invectivas. Nisto está uma condição preliminar para que possamos encontrar-nos pelo menos na fé num Deus único e na certeza da vida eterna para a alma imortal. Que o Senhor faça, em particular, com que o diálogo ecuménico leve a uma sincera reconciliação centralizada em tudo aquilo que já possamos ter em comum com as outras Igrejas cristãs: a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, Salvador e Senhor, a escuta da Palavra, o estudo da Revelação e o sacramento da Baptismo.

Na medida em que a Igreja for capaz de suscitar a concórdia activa — a unidade na variedade — no seu próprio interior e de se apresentar como testemunha e humilde artífice de reconciliação nas relações com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, ela tornar-se-á, segundo a expressiva definição de Santo Agostinho, «mundo reconciliado». (128) E então poderá ser sinal de reconciliação no mundo e para o mundo.

Com a consciência da imensa gravidade da situação criada pelas forças da divisão e da guerra, que constitui hoje uma séria ameaça, não só para o equilíbrio e a harmonia das Nações, mas também para a própria sobrevivência da humanidade, a Igreja sente-se no dever de oferecer e propor a sua colaboração específica para a superação dos conflitos e para o restabelecimento da concórdia.

Trata-se de um complexo e delicado diálogo de reconciliação, no qual a Igreja está empenhada, antes de mais, mediante a actividade da Santa Sé e dos seus diversos Organismos. A Santa Sé esforça-se quer por intervir junto dos governantes das Nações e dos responsáveis das várias Instituições internacionais, quer por associar-se a eles, dialogando com eles ou estimulando-os a um diálogo entre si, em favor da reconciliação no meio dos numerosos conflitos. E faz isto não com segundos fins ou interesses ocultos — dado que os não tem — mas «por uma preocupação humanitária», (129) pondo a sua estrutura institucional e a sua autoridade moral, absolutamente singulares, ao serviço da concórdia e da paz. Fá-lo na convicção de que, assim como «na guerra há duas facções que se levantam uma contra a outra», assim também «na questão da paz há sempre duas partes que necessariamente devem saber empenhar-se»; e nisto «se encontra o verdadeiro sentido do diálogo para a paz». (130)

No diálogo em favor da reconciliação, a Igreja também se empenha por intermédio dos Bispos, com a competência e a responsabilidade que lhes é própria, quer individualmente na orientação das respectivas Igrejas particulares, quer reunidos nas Conferências Episcopais, com a colaboração dos Presbíteros e de todas as componentes das Comunidades cristãs. Eles desempenham regularmente essas suas tarefas, quando promovem o diálogo que é indispensável e proclamam as exigências humanas e cristãs de reconciliação e de paz. Em comunhão com os seus Pastores, os leigos, que têm como «campo próprio da sua actividade evangelizadora o mundo vasto e complicado da politica, da realidade social e da economia (...), da vida internacional», (131) são chamados a empenhar-se directamente no diálogo ou em favor do diálogo para a reconciliação. Por intermédio deles, é ainda a Igreja que desenvolve a sua acção reconciliadora.

Na regeneração dos corações, mediante a conversão e a penitência, portanto, está o pressuposto fundamental e a base segura para toda e qualquer renovação social e para a paz entre as Nações.

Há que relembrar, por fim, que da parte da Igreja e dos seus membros, o diálogo, seja qual for a forma sob a qual ele se desenrole — e existem e podem existir formas muito diversas, pois o próprio conceito de diálogo tem valor analógico — não poderá nunca partir de uma atitude de indiferença em relação à verdade; mas tem de ser, sobretudo, uma apresentação da verdade, feita serenamente e com respeito pela inteligência e pela consciência dos outros. O diálogo da reconciliação não poderá nunca substituir ou atenuar o anúncio da verdade evangélica, que tem como objectivo preciso a conversão, abandonando o pecado, e a comunhão com Cristo e com a Igreja; mas deverá servir para a sua transmissão e realização, através dos meios deixados por Cristo à Igreja para a pastoral da reconciliação: a catequese e a Penitência.

A Catequese

26. Na vasta área em que a Igreja tem a missão de actuar com o instrumento do diálogo, a pastoral da penitência e da reconciliação dirige-se aos membros do corpo da Igreja, primeiro que tudo, por uma adequada catequese sobre as duas realidades distintas e complementares, às quais os Padres sinodais deram uma particular importância e que puseram em realce, em algumas das Propostas («Propositiones») conclusivas: a penitência e a reconciliação, precisamente. A catequese é, pois, o primeiro meio a utilizar.

Na base desta recomendação do Sínodo, tão oportuna, encontra-se um pressuposto fundamental: aquilo que é pastoral não se opõe ao doutrinal, e a acção pastoral não pode prescindir do conteúdo doutrinal; pelo contrário, a ele vai buscar a sua substância e a sua validade real. Ora, se a Igreja é «coluna e sustentáculo da verdade» (132) e está posta no mundo como Mãe e Mestra, como poderia ela descurar a tarefa de ensinar a verdade que constitui um caminho de vida?

Dos Pastores da Igreja espera-se, pois, antes de mais, uma catequese sobre a reconciliação. Esta não pode deixar de fundamentar-se no ensino bíblico, em especial no do Novo Testamento, sobre a necessidade de reconstituir a aliança com Deus em Cristo Redentor e Reconciliador; e, à luz desta nova comunhão e desta nova amizade e no seu prolongamento, sobre a necessidade de reconciliar-se com o irmão, mesmo à custa de ter de interromper a oferta do sacrifício. (133) Jesus insiste muito neste tema da reconciliação fraterna, quando, por exemplo, convida a oferecer a outra face a quem nos bateu, ou a deixar também a capa a quem já se apossou da túnica; (134) ou quando inculca a lei do perdão, que cada um recebe na medida em que sabe perdoar, (135) perdão a oferecer também aos inimigos, (136) perdão a conceder setenta vezes sete, (137) ou seja, na prática, sem limite algum. Com estas condições, que só são realizáveis num clima genuinamente evangélico, é possível uma verdadeira reconciliação, quer entre os indivíduos, quer entre as famílias, as comunidades, as Nações e os povos. Destes dados bíblicos sobre a reconciliação promanará, naturalmente, uma catequese teológica, que integrará também na sua síntese os dados da psicologia, da sociologia e das outras ciências humanas, os quais podem servir para esclarecer as situações, enquadrar bem os problemas e persuadir os ouvintes ou leitores a tomarem resoluções concretas.

Dos Pastores da Igreja espera-se, ainda, uma catequese sobre a penitência. Também aqui a riqueza da mensagem bíblica deve ser a fonte. Esta mensagem acentua na penitência, primeiro que tudo, o seu valor de conversão, termo com o qual se procura traduzir a palavra do texto grego metánoia, (138) que literalmente significa um reviramento do espírito para o fazer voltar-se para Deus. São estes, aliás, os dois elementos fundamentais que emergem da parábola do filho perdido e reencontrado: o «cair em si» (139) e a decisão de voltar para o pai. Não pode haver reconciliação sem estas atitudes primordiais de conversão, e a catequese deve explicá-las com conceitos e expressões adaptados às várias idades e às diversas condições culturais, morais e sociais.

Trata-se de um primeiro valor da penitência, que se prolonga no segundo: penitência significa também arrependimento. Os dois sentidos da metánoia aparecem na significativa norma dada por Jesus: «Se o teu irmão se arrepender ( = voltar a ti), perdoa-lhe. E se te ofender sete vezes ao dia e sete vezes voltar a ti, dizendo: "Estou arrependido", hás-de perdoar-lhe». (140) Uma boa catequese deverá mostrar que o arrependimento, assim como a conversão, bem longe de ser um sentimento superficial, é uma verdadeira reviravolta da alma.

Um terceiro valor está contido ainda na penitência; trata-se do movimento pelo qual as anteriores atitudes de conversão e arrependimento se manifestam externamente: é o fazer penitência. Este significado é bem perceptível no termo metánoia, como é usado pelo Precursor, segundo o texto dos Sinópticos. (141) Fazer penitência quer dizer, além do mais, restabelecer o equilíbrio e a harmonia alterados pelo pecado, mudar de direcção mesmo à custa de sacrifícios.

Em suma, uma catequese sobre a penitência, o mais completa e adequada possível, é impreterível, num tempo como o nosso, em que as atitudes dominantes na psicologia e nos comportamentos sociais contrastam abertamente com o tríplice valor que foi ilustrado: mais do que nunca, o homem contemporâneo parece encontrar dificuldade em reconhecer os seus próprios erros e em decidir voltar atrás para retomar o caminho exacto, fazendo uma rectificação de marcha; parece experimentar grande relutância em dizer: «arrependo-me» ou «tenho muita pena»; parece recusar instintivamente, e muitas vezes irresistivelmente, tudo aquilo que é penitência, no sentido do sacrifício aceito e praticado para se corrigir do pecado. A este respeito, desejo sublinhar que, embora mitigada de há algum tempo a esta parte, a disciplina penitencial da Igreja não pode ser abandonada sem grave prejuízo, quer para a vida interior dos cristãos e da comunidade eclesial, quer para a sua capacidade de irradiação missionária. Não é raro que alguns não-cristãos fiquem surpreendidos com o fraco testemunho de verdadeira penitência da parte dos discípulos de Cristo. É claro, de resto, que a penitência cristã será autêntica, se for inspirada pelo amor, e não pelo mero temor; se consistir num sério esforço para crucificar o «homem velho», a fim de que possa renascer o «novo», por obra de Cristo; se seguir como modelo o mesmo Cristo, que, embora fosse inocente, escolheu o caminho da pobreza, da paciência, da austeridade e, pode dizer-se, da vida penitente.

Dos Pastores da Igreja espera-se ainda — como recordou o Sínodo — uma catequese sobre a consciência e a sua formação. É um tema de viva actualidade, também este, visto que, no meio dos abalos a que está sujeita a cultura do nosso tempo, com muita frequência é agredido, posto à prova, perturbado e obscurecido esse santuário interior, ou seja, o eu mais íntimo do homem: a sua consciência. Para uma catequese sapiente sobre a consciência podem encontrar-se indicações preciosas, quer nos Doutores da Igreja, quer na teologia do Concílio Vaticano II e, especialmente, em dois dos seus Documentos: sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (142) e sobre a Liberdade Religiosa. (143) Nesta mesma linha, o Sumo Pontífice Paulo VI pronunciou-se muitas vezes, para recordar a natureza e o papel da consciência na nossa vida. (144) Eu próprio, seguindo as suas pegadas, não deixo passar ocasião alguma para fazer luz sobre esta altíssima componente da grandeza e dignidade do homem, (145) sobre esta «espécie de sentido moral, que nos leva a distinguir o bem do mal (...), como que os olhos da alma, capacidade visual do espírito, em condições de guiar os nossos passos no caminho do bem; e insisto na necessidade de «formar cristãmente a própria consciência pessoal», a fim de esta não se tornar «numa força destruidora da humanidade verdadeira (da pessoa), mas ser sempre o lugar sagrado onde Deus lhe revela o seu verdadeiro bem». (146)

Também se espera que a catequese dos Pastores da Igreja incida sobre outros pontos, de não menor relevância para a reconciliação:

  • Sobre o sentido do pecado, que — como disse — não pouco se tem vindo a atenuar no nosso mundo.

  • Sobre a tentação e as tentações: o próprio Senhor Jesus, Filho de Deus, «provado em tudo, à nossa semelhança, excepto no pecado», (147) quis ser tentado pelo Maligno, (148) para indicar que, assim como ele, também os seus discípulos seriam submetidos à tentação; e, ainda, para mostrar como é necessário comportar-se na tentação. Para quem implora do Pai não ser tentado acima das próprias forças (149) e não sucumbir à tentação, (150) para quem não se expõe às ocasiões de pecado, o facto de ser submetido à tentação não significa ter pecado; mas é, prevalentemente, uma ocasião para crescer na fidelidade e na coerência, pela humildade e pela vigilância.

  • Sobre o jejum: este pode praticar-se em formas antigas e novas, como sinal de conversão, de arrependimento e de mortificação pessoal; e, ao mesmo tempo, sinal de união com Cristo crucificado e de solidariedade com os que passam fome e que sofrem.

  • Sobre a esmola: trata-se de um meio para tornar efectiva a caridade, partilhando aquilo que se possui com aqueles que sofrem as consequências da pobreza.

  • Sobre o nexo íntimo que concatena a superação das divisões no mundo com a comunhão plena com Deus e entre os homens, finalidade escatológica da Igreja.

  • Sobre as circunstâncias concretas em que a reconciliação (na família, na comunidade civil, nas estruturas sociais) se deve realizar; e, particularmente, sobre as quatro reconciliações que consertam as quatro fracturas fundamentais: reconciliação do homem com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com o mundo criado.

E a Igreja não pode omitir, ainda, sem grave mutilação da sua mensagem essencial, uma constante catequese sobre as realidades que a linguagem cristã tradicional designa como os quatro novíssimos do homem: morte, juízo (particular e universal), inferno e paraíso. Numa cultura que tende a encerrar o homem nas suas vicissitudes terrestres, mais ou menos bem sucedidas, aos Pastores da Igreja é solicitada uma catequese que abra e ilumine, com as certezas da fé, o além da vida presente: para lá das misteriosas portas da morte, delineia-se uma eternidade de alegria na comunhão com Deus, ou de pena no afastamento d'Ele. Somente nesta visão escatológica é possível ter a medida exacta do pecado e sentir-se resolutamente impelido para a penitência e a reconciliação.

Não faltarão nunca aos Pastores de almas zelosos e dotados de inventiva as ocasiões para ministrar esta catequese assim, ampla e variada, tendo em conta a diversidade de cultura e de formação religiosa daqueles a quem se dirigem. Com frequência, proporcionam essas ocasiões as próprias leituras bíblicas e os ritos da Santa Missa e dos outros Sacramentos, bem como as próprias circunstâncias em que estes são celebrados. Muitos outras iniciativas podem ser tomadas com o mesmo objectivo, tais como: pregações, palestras, debates, encontros e cursos de cultura religiosa, etc., o que já sucede em muitas partes. Desejo aqui assinalar, em especial, a importância e a eficácia, que revestem para uma tal catequese, as antigas missões populares. Se forem adaptadas às peculiares exigências do nosso tempo, elas podem ser, hoje como ontem, um válido instrumento de educação na fé, também pelo que diz respeito ao sector da penitência e da reconciliação.

Dada a grande importância que tem a reconciliação, fundada sobre a conversão, no campo delicado da relações humanas e da convivência social a todos os níveis, incluindo o internacional, não pode faltar à catequese o precioso contributo da doutrina social da Igreja. O atento e preciso ensino dos meus Predecessores, a partir do Papa Leão XIII, ao qual veio unir-se a contribuição substanciosa da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II e juntar-se a dos vários Episcopados, solicitados por diversas circunstâncias dos respectivos países, constitui um vasto e sólido corpo de doutrina a respeito das múltiplas exigências inerentes à vida da comunidade humana, às relações entre os indivíduos, famílias e grupos nos seus diversos âmbitos, e à própria constitução de uma sociedade que queira ser coerente com a lei moral, que é fundamento da civilização.

Na base deste ensino social da Igreja encontra-se, obviamente, a luz que ela vai buscar à Palavra de Deus: a respeito dos direitos e deveres dos indivíduos, da família e da comunidade; a respeito do valor da liberdade e das dimensões da justiça; a respeito do primado da caridade; a respeito da dignidade da pessoa humana e das exigências do bem comum, que deve ser tido em vista pela política e pela própria economia. É sobre estes princípios fundamentais do magistério social, que confirmam e reapresentam os ditames universais da razão e da consciência dos povos que se apoia, em grande parte, a esperança duma solução pacífica de tantos conflitos sociais e, em definitivo, da reconciliação universal.

Os Sacramentos

27. O segundo meio de instituição divina, que é oferecido pela Igreja à pastoral da penitência e da reconciliação, é constituído pelos Sacramentos.

No misterioso dinamismo dos Sacramentos, tão rico de simbolismos e de conteúdos, é possível perceber um aspecto nem sempre posto em realce: cada um deles, além da sua graça própria, é também sinal de penitência e reconciliação; e, por isso, em cada um deles, é possível reviver estas dimensões espirituais.

O Baptismo é, certamente, uma ablução salvífica que — como diz São Pedro — tem valor «não (como) purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma boa consciência». (151) É morte, sepultura e ressurreição com Cristo, morto, sepultado e ressuscitado. (152) É dom do Espírito Santo por intermédio de Cristo. (153) Mas esta dimensão constitutiva essencial e original do Baptismo, longe de eliminar, enriquece o elemento penitencial já presente no baptismo que o próprio Jesus recebeu de João «para se cumprir toda a justiça»: (154) um facto, portanto, de conversão e reintegração na justa ordem das relações com Deus, de reconciliação com Deus, com o apagamento da mancha original e a consequente inserção na grande família dos reconciliados.

Paralelamente, o Crisma, também como confirmação do Baptismo e, juntamente com ele, como Sacramento de iniciação, ao conferir a plenitude do Espírito Santo e ao encaminhar a vida cristã à idade adulta, significa e realiza, por isso exactamente, uma maior conversão do coração e uma mais íntima e efectiva inserção na assembleia dos reconciliados, que é a Igreja de Cristo.

A definição que dá Santo Agostinho da Eucaristia, como sacramento de piedade, sinal de unidade e vínculo da caridade («sacramentum pietatis, signum unitatis, vinculum caritatis»), (155) põe em evidência os efeitos de santificação pessoal (piedade) e de reconciliação comunitária (unidade e caridade), que derivam da própria essência do Mistério eucarístico, como renovação incruenta do sacrifício da Cruz e fonte de salvação e de reconciliação para todos os homens. É necessário, todavia, recordar que a Igreja, guiada pela fé neste augusto Sacramento, ensina que nenhum fiel cristão, consciente de estar em pecado grave, pode receber a Eucaristia sem ter obtido antes o perdão de Deus. Assim se lê na Instrução Eucharisticum Mysterium, a qual, devidamente aprovada pelo Papa Paulo VI, confirma todo o ensino do Concílio de Trento: «a Eucaristia há-de ser proposta aos fiéis "como antídoto que nos liberta das culpas de cada dia e nos preserva dos pecados mortais", e seja-lhes indicada a maneira conveniente para se utilizarem das partes penitênciais da liturgia da Missa. "A quem quiser comungar, seja recordado... o preceito: examine-se cada qual a si mesmo (1 Cor 11, 28). E a prática da Igreja demonstra que esse exame é necessário, para que ninguém, consciente de estar em pecado mortal, por mais contrito que se julgue, se aproxime da Sagrada Eucaristia antes da Confissão sacramental". E se alguém vier a encontrar-se em caso de necessidade e não tiver a possibilidade de se confessar, faça antes (de comungar) um acto de contrição perfeita». (156)

O Sacramento da Ordem destina-se a dar à Igreja os Pastores, os quais, além de mestres e guias, são chamados a ser também testemunhas e operadores de unidade, construtores da família de Deus, defensores e preservadores da comunhão desta família contra os fermentos de divisão e de dispersão.

O Sacramento do Matrimónio, exaltação do amor humano sob a acção da graça, é sinal, sim, do amor de Cristo pela Igreja, mas também da vitória que Ele concede aos esposos obterem sobre as forças que deformam e destroem o amor, de tal forma que a família, nascida deste Sacramento, se torna sinal também da Igreja reconciliada e reconciliadora, para um mundo reconciliado em todas as suas estruturas e instituições.

Por fim, a Unção dos Enfermos, na provação da doença e da velhice, especialmente na hora derradeira do cristão, é sinal da definitiva conversão ao Senhor, bem como da total aceitação da dor e da morte como penitência pelos pecados. E nisto actua-se a suprema reconciliação com o Pai.

Entre os Sacramentos, porém, há um, que, muito embora frequentemente chamado confissão, por motivo da acusação dos pecados que nele se faz, mais propriamente pode considerar-se o Sacramento da Penitência por antonomásia, como de facto se chama; e, por isso, é o Sacramento da conversão e da reconciliação. Foi deste Sacramento que a recente Assembleia do Sínodo tratou, em particular, dada a importância que ele tem para a reconciliação.

2. O Sacramento da Penitência e da Reconciliação

28. Em todas as fases e a todos os níveis do seu decurso, o Sínodo considerou com a máxima atenção aquele sinal sacramental que representa e ao mesmo tempo realiza a penitência e a reconciliação. Este Sacramento não esgota em si mesmo, certamente, os conceitos de conversão e reconciliação. A Igreja, de facto, desde as suas origens, conhece e valoriza numerosas e variadas formas de penitência: algumas litúrgicas ou paralitúrgicas, que vão do acto penitencial da Missa às funções propiciatórias e às peregrinações; outras, de carácter ascético, como o jejum. No entanto, de todos esses actos nenhum é mais significativo, mais divinamente eficaz e mais elevado e ao mesmo tempo acessível no seu rito, do que o Sacramento da Penitência.

Desde a sua preparação e, sucessivamente, nas numerosas intervenções que se sucederam no seu decorrer, nos trabalhos de grupo e nas Propostas («Propositiones») finais, o Sínodo teve em conta a afirmação pronunciada muitas vezes em tons diversos e com diverso conteúdo: o Sacramento da Penitência está em crise; e desta crise tomou a devida nota. Recomendou uma aprofundada catequese, mas também, uma não menos aprofundada análise de carácter teológico, histórico, psicológico, sociológico e jurídico acerca da penitência em geral e do Sacramento da Penitência em particular. Com tudo isso teve a intenção de esclarecer os motivos da crise e abrir caminhos no sentido de uma sua solução positiva, para benefício da humanidade. Entretanto, do próprio Sínodo a Igreja recebeu uma confirmação clara da sua fé no que respeita ao Sacramento, pelo qual é dada a cada cristão e a toda a comunidade dos fiéis a certeza do perdão graças ao poder do Sangue redentor de Cristo.

É bom renovar e reafirmar esta fé num momento em que poderia debilitar-se, perder algo da sua integridade ou entrar numa zona de penumbra e de silêncio, ameaçada como se encontra pela já mencionada crise, no que ela tem de negativo. Insidiam, de facto, o Sacramento da Confissão: por um lado, o obscurecimento da consciência moral e religiosa, a atenuação do sentido do pecado, a adulteração do conceito do arrependimento, a escassa propensão para uma vida autenticamente cristã; por outro lado, a mentalidade, às vezes difundida, de que se poderia obter o perdão directamente de Deus, mesmo de modo ordinário, sem receber o Sacramento da Reconciliação, bem como a rotina de uma prática sacramental algumas vezes destituída de verdadeiro fervor e sem espontaneidade espiritual, originada, talvez, por uma consideração errada e degenerada dos efeitos do Sacramento.

Convém, portanto, recordar os principais aspectos deste grande Sacramento.

«A quem perdoardes»

29. O primeiro dado fundamental é-nos proporcionado pelos Livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, no que diz respeito à misericórdia do Senhor e ao seu perdão. Nos Salmos e na pregação dos Profetas o nome de misericordioso é talvez o que mais frequentemente se atribui ao Senhor, em oposição ao persistente cliché, segundo o qual o Deus do Antigo Testamento é apresentado sobretudo como severo e punidor. Assim, nos Salmos, um longo discurso sapiencial, remontando à tradição do Êxodo, reevoca a acção benigna de Deus no meio do seu povo. Tal acção, apesar da sua representação antropomórfica, é talvez uma das mais eloquentes proclamações vetero-testamentárias da misericórdia divina. Basta aqui recordar o versículo: «E Ele, misericordioso, perdoava-lhes a falta e não os exterminava; antes, muitas vezes conteve a sua cólera e não deixou acender-se o seu furor, recordando que eram simples carne, sopro que se esvai e não volta». (157)

Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, vindo como o Cordeiro que tira e carrega sobre si o pecado do mundo, (158) aparece como aquele que tem poder, quer de julgar, (159) quer de perdoar os pecados (160) e que veio não para condenar, mas para perdoar e salvar. (161)

Ora este poder de perdoar os pecados Jesus confere-o, mediante o Espírito Santo, a simples homens, sujeitos também eles próprios à insídia do pecado, isto é, aos seus Apóstolos: «Recebei o Espírito Santo: a quem perdoardes os pecados ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes ficar-lhes-ão retidos».(162) Esta é uma das mais formidáveis novidades evangélicas! Jesus confere tal poder aos Apóstolos também como transmissível — assim o entendeu a Igreja desde o seu dealbar — aos seus sucessores, investidos pelos mesmos Apóstolos na missão e na responsabilidade de continuar a sua obra de anunciadores do Evangelho e de ministros da obra redentora de Cristo.

Aqui aparece em toda a sua grandeza a figura do ministro do Sacramento da Penitência, chamado, por antiquíssimo costume, o confessor.

Como no altar onde celebra a Eucaristia e como em cada um dos Sacramentos, o Sacerdote, ministro da Penitência, age «in persona Christi». O mesmo Cristo, por ele tornado presente e que por meio dele actua o mistério da remissão dos pecados, é Aquele que aparece como irmão do homem, (163) pontífice misericordioso, fiel e cheio de compaixão, (164) pastor decidido a procurar a ovelha perdida, (165) médico que cura e conforta, (166) mestre único que ensina a verdade e indica os caminhos de Deus, (167) juiz dos vivos e dos mortos, (168) que julga segundo a verdade e não segundo as aparências. (169)

Trata-se, sem dúvida, do ministério mais difícil e delicado, do mais cansativo e exigente; mas também de um dos mais belos e consoladores ministérios do Sacerdote; e, precisamente por isto, atendendo à vigorosa chamada do Sínodo, nunca me cansarei de pedir aos meus Irmãos, Bispos e Presbíteros, o seu fiel e diligente desempenho. (170)

Perante a consciência do fiel, que a ele se abre, com um misto de tremor e de confiança, o confessor é chamado a uma tarefa sublime que é serviço à causa da penitência e da reconciliação humana: conhecer as fraquezas e as quedas, de um determinado fiel, avaliar o seu desejo de recuperação e os esforços para a conseguir, discernir a acção do Espírito santificador no seu coração, comunicar-lhe o perdão que só Deus pode conceder, «celebrar» a sua reconciliação com o Pai representada na parábola do filho pródigo, reinserir esse pecador resgatado na comunhão eclesial com os irmãos e advertir paternalmente esse penitente com um firme, encorajador e amigável «doravante não tornes a pecar». (171)

Para o exercício eficaz de tal ministério, o confessor tem de possuir necessariamente qualidades humanas de prudência, discreção, discernimento e firmeza temperada pela mansidão e bondade. Deve ter, ainda, séria e cuidada preparação, não fragmentária mas integral e harmónica, nos diversos ramos da teologia, na pedagogia e na psicologia, na didáctica catequética, na metodologia do diálogo e, sobretudo, no conhecimento vivo e comunicativo da Palavra de Deus. Mas é mais necessário ainda que ele viva uma vida espiritual intensa e genuína. Para guiar os outros pelos caminhos da perfeição cristã, o ministro da Penitência deve percorrer, ele próprio, primeiro, este caminho; e mais com obras do que com palavras exuberantes, dar mostras de real experiência da oração vivida, de prática das virtudes evangélicas teologais e morais, de fiel obediência à vontade de Deus, de amor à Igreja e de docilidade ao seu Magistério.

Todo este aparato de dotes humanos, de virtudes cristãs e de capacidades pastorais não se improvisa nem se adquire sem esforço. Para o ministério da Penitência sacramental cada Sacerdote deve ser preparado desde os anos do Seminário: juntamente com o estudo da teologia dogmática, moral, espiritual e pastoral (que são sempre uma só teologia), com as ciências do homem e com a metodologia do diálogo e, especialmente, do colóquio pastoral. Há-de, ainda, ser iniciado e amparado nas primeiras experiências. Deverá cuidar sempre do próprio aperfeiçoamento e actualização, com o estudo permanente. Que tesouros de graça, de verdadeira vida e de irradiação espiritual não adviriam à Igreja, se cada Sacerdote se mostrasse cuidadoso em nunca faltar, por negligência ou desculpas várias, ao encontro com os fiéis no confessionário e tivesse ainda maior cuidado de nunca aí se sentar sem preparação, ou sem as indispensáveis qualidades humanas e condições espirituais e pastorais!

A este propósito não posso deixar de evocar, com devota admiração, as figuras de extraordinários apóstolos do confessionário, como São João Nepomuceno, São João Maria Vianney, São José Cafasso e São Leopoldo de Castelnuovo, para falar só de alguns mais conhecidos, que a Igreja inscreveu no album dos seus Santos. Mas desejo igualmente prestar homenagem à inumerável pléiade de confessores santos e quase sempre anónimos, aos quais se ficou a dever a salvação de tantas almas, por eles ajudadas na conversão, na luta contra o pecado e as tentações, no progresso espiritual e, em definitivo, na santificação. Não hesito em afirmar que os grandes Santos canonizados sairam geralmente desses confessionários e, com os Santos, o património espiritual da Igreja e o próprio florescimento de uma civilização impregnada de espírito cristão! Honra seja, portanto, a este silencioso exército de irmãos nossos, que bem serviram e servem cada dia a causa da reconciliação, mediante o ministério da Penitência sacramental!

O Sacramento do Perdão

30. Pela revelação do valor deste ministério e do poder de perdoar os pecados, conferido por Cristo aos Apóstolos e aos seus sucessores, desenvolveu-se na Igreja a consciência do sinal do perdão, concedido mediante o Sacramento da Penitência; ou seja, a certeza, de que o próprio Senhor Jesus instituíu e confiou à Igreja — qual dom da sua benignidade e da sua «filantropía», (172) a proporcionar a todos os homens — um especial Sacramento para a remissão dos pecados cometidos depois do Baptismo.

A prática deste Sacramento, pelo que se refere à sua celebração e à sua forma, conheceu um longo processo de desenvolvimento, como atestam os mais antigos sacramentários, as actas dos Concílios e dos Sínodos episcopais, a pregação dos Padres e o ensino dos Doutores da Igreja Mas quanto à substância do Sacramento, permaneceu sempre sólida e imutável, na consciência da Igreja, a certeza de que, por vontade de Cristo, o perdão é oferecido a cada um por meio da absolvição sacramental, dada pelos ministros da Penitência; esta certeza é reafirmada com particular vigor, quer pelo Concílio de Trento, (173) quer pelo Concílio Vaticano II: «Aqueles que se aproximam do Sacramento da Penitência recebem da misericórdia de Deus o perdão das ofensas que lhe fizeram e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja, à qual infligiram uma ferida com o pecado: a Igreja que coopera na sua conversão com a caridade, com o exemplo e a oração». (174) E como dado essencial da fé sobre o valor e a finalidade da Penitência deve reafirmar-se que «o nosso Salvador Jesus Cristo instituiu na sua Igreja o Sacramento da Penitência, para que os fiéis caidos no pecado depois do Baptismo recebessem a graça e se reconciliassem com Deus». (175)

A fé da Igreja neste Sacramento comporta algumas outras verdades fundamentais, que são ineludíveis. O rito sacramental da Penitência, na sua evolução e variação de formas práticas, sempre conservou e realçou claramente essas verdades. O Concílio Vaticano II, ao prescrever a reforma deste rito, tinha em vista fazer com que ele exprimisse ainda com mais clareza tais verdades, (176) o que se verificou com o novo Ritual da Penitência. (177) Este, de facto, assumiu na sua integridade a doutrina da tradição coligida pelo Concílio de Trento, transferindo-a do seu particular contexto histórico (o de um esforço corajoso de esclarecimento doutrinal, defronte aos graves desvios em relação ao genuino ensino da Igreja) para a traduzir fielmente em termos mais adequados ao contexto do nosso tempo.

Algumas convicções fundamentais

31. As menciondas verdades, reafirmadas com energia e clareza pelo Sínodo e presentes nas Propostas («Propositiones»), podem resumir-se nas convicções de fé, que a seguir enuncio e à volta das quais se reúnem todas as outras afirmações da doutrina católica sobre o Sacramento da Penitência.

  1. A primeira convicção é que, para um cristão, o Sacramento da Penitência é a via ordinária para obter o perdão e a remissão dos seus pecados graves cometidos depois do Baptismo. O divino Salvador e a sua acção salvífica, certamente, não estão ligados a um sinal sacramental, de maneira a não poderem em qualquer tempo e circunstância da história da salvação agir fora e acima dos Sacramentos. Mas na escola da fé aprendemos que o mesmo Salvador quis e dispôs que os humildes e preciosos Sacramentos da fé sejam ordinariamente os meios eficazes, pelos quais passa e opera o seu poder redentor. Seria portanto insensato, além de presunçoso, querer prescindir arbitrariamente dos instrumentos de graça e de salvação que o Senhor dispôs e, no caso específico, pretender receber o perdão, pondo de lado o Sacramento, instituído por Cristo exactamente para o perdão. A renovação dos ritos, levada a efeito depois do Concílio, não deixa margem para qualquer confusão ou alteração neste sentido. A mesma renovação devia e deve servir, segundo a intenção da Igreja, para suscitar em cada um de nós umnovo impulso para a renovação da nossa atitude interior, ou seja, para a compreensão mais profunda da natureza do Sacramento da Penitência; para um seu acolhimento mais repassado de fé, não ansioso mas confiante; para uma maior frequência do Sacramento, que se apresenta totalmente impregnado pelo amor misericordioso do Senhor.

  2. A segunda convicção diz respeito à função do Sacramento da Penitência para aqueles que a ele recorrem. Segundo a mais antiga concepção da Tradição trata-se de uma espécie de acto judicial; mas este acto decorre junto de um tribunal mais de misericórdia, do que de estrita e rigorosa justiça, pelo que não é comparável aos tribunais humanos, (178) senão por analogia; ou seja, na medida em que o pecador aí descobre os seus pecados e a sua própria condição de criatura sujeita ao pecado; se compromete a renunciar e a combater o pecado; aceita a pena (penitência sacramental) que o confessor lhe impõe e dele recebe a absolvição.

    Ao reflectir, porém, sobre a função deste Sacramento, a consciência da Igreja vislumbra nele, além do carácter judicial, no sentido acima aludido, um carácter terapêutico ou medicinal. E isto relaciona-se com o facto, frequente no Evangelho, da apresentação de Cristo como médico, (179) enquanto a sua obra redentora é muitas vezes chamada, desde a antiguidade cristã, «remédio da salvação» («medicina salutis»). «Eu quero curar, não acusar», dizia Santo Agostinho, referindo-se ao exercício da pastoral penitêncial, (180) e é graças ao remédio da confissão que a experiência do pecado não degenera em desespero. (181) O Ritual da Penitência alude a este aspecto medicinal do Sacramento, (182) ao qual o homem contemporâneo é talvez mais sensível, vendo no pecado o que ele comporta de erro, obviamente, e mais ainda aquilo que ele indica relacionado com a fraqueza e enfermidade humanas.

    Tribunal de misericórdia ou lugar de cura espiritual, sob ambos os aspectos o Sacramento exige um conhecimento do íntimo do pecador, para o poder julgar e absolver, para tratar dele e o curar. E precisamente por isto, implica, da parte do penitente, a acusação sincera e completa dos pecados, que tem assim uma razão de ser, não só inspirada em fins ascéticos (como exercício de humildade e de mortificação), mas inerente à própria natureza do Sacramento.

  3. A terceira convicção que desejo aqui salientar, diz respeito às realidades ou partes que compõem o sinal sacramental do perdão e da reconciliação. Algumas destas realidades são actos do penitente, de importância diversa, mas cada um deles indispensável ou para a validade ou para a integridade ou para o fruto do sinal.

    Uma condição indispensável, primeiro que tudo, é a rectidão e a limpidez da consciência do penitente. Um homem não se põe a caminho para uma verdadeira e genuína penitência, enquanto não perceber que o pecado contrasta com a norma ética, inscrita no íntimo do próprio ser; (183) enquanto não reconhecer ter feito a experiência pessoal e responsável de uma tal oposição; enquanto não disser não apenas «o pecado existe», mas «eu pequei»; enquanto não admitir que o pecado introduziu na sua consciência uma divisão, que avassala todo o seu ser e o separa de Deus e dos irmãos. O sinal sacramental desta limpidez da consciência é o acto tradicionalmente chamado exame de consciência, acto que deveria ser sempre, não tanto uma introspecção psicológica ansiosa, mas o confronto sincero e sereno com a lei moral interior, com as normas evangélicas propostas pela Igreja, com o próprio Jesus Cristo, que é para nós mestre e modelo de vida e com o Pai celeste que nos chama ao bem e à perfeição. (184)

    Mas o acto essencial da Penitência, da parte do penitente, é a contrição, ou seja, um claro e decidido repúdio do pecado cometido, juntamente com o propósito de não o tornar a cometer, (185) pelo amor que se tem a Deus e que renasce com o arrependimento. Entendida deste modo a contrição é, pois, o princípio e a alma da conversão, daquela metánoia evangélica que reconduz o homem a Deus, como o filho pródigo que volta ao pai, e que tem no Sacramento da Penitência o seu sinal visível e aperfeiçoador da própria atrição. Por isso, «desta contrição do coração depende a verdade da penitência». (186)

    Supondo e chamando a atenção para tudo aquilo que a Igreja, inspirada pela palavra de Deus, ensina acerca da contrição, está-me particularmente a peito, neste ponto, salientar um aspecto de tal doutrina, para que seja melhor conhecido e mais tido presente. Não raro se considera a conversão e a contrição sob o aspecto das inegáveis exigências que elas comportam e da mortificação que impõem em ordem a uma radical mudança de vida. Mas é bom recordar e acentuar que contrição e conversão são, sobretudo, uma aproximação da santidade de Deus, um reencontro da própria verdade interior, obscurecida e transtornada pelo pecado, um libertar-se no mais profundo de si próprio e, por isso, um reconquistar a alegria perdida, a alegria de ser salvado, (187) que a maioria dos homens do nosso tempo já não sabe saborear.

    Compreende-se, assim, que desde os primeiros tempos cristãos, em ligação com os Apóstolos e com Cristo, a Igreja tenha incluído no sinal sacramental da Penitência a acusação dos pecados. Esta aparece como tão relevante que, desde há séculos, o nome usual do Sacramento foi e é ainda agora o de confissão. Acusar os próprios pecados é exigido, antes de mais, pela necessidade do pecador ser conhecido por aquele que no Sacramento exerce o papel de juiz, o qual deve avaliar, quer a gravidade dos pecados, quer o arrependimento do penitente; e, simultaneamente, o papel de médico, que deve conhecer o estado do enfermo para tratar dele e o curar. Mas a confissão individual tem também o valor de sinal: sinal do encontro do pecador com a mediação eclesial na pessoa do ministro; sinal do seu pôr-se a descoberto diante de Deus e da Igreja como pecador, do esclarecer-se a si mesmo sob o olhar de Deus. A acusação dos pecados, portanto, não pode ser reduzida a qualquer tentativa de autolibertação psicológica, ainda que esta corresponda a uma necessidade legítima e natural de abrir-se com alguém, o que é algo ínsito no coração do homem. Trata-se de um gesto litúrgico, solene na sua dramaticidade, humilde e sóbrio na grandeza do seu significado. É o gesto do filho pródigo que volta para junto do pai e por ele é acolhido com o beijo da paz; gesto de lealdade e de coragem; gesto de entrega de si mesmo, passando além do pecado, à misericórdia que perdoa. (188)

    Compreende-se, então, por que é que a acusação dos pecados deve ser ordinariamente individual e não colectiva, tal como o pecado é um facto profundamente pessoal. Ao mesmo tempo, porém, esta acusação arranca, de certo modo, o pecado do segredo do coração e, por conseguinte, do âmbito da pura individualidade, pondo em relevo o seu carácter social, uma vez que, mediante o ministro da Penitência, é a Comunidade eclesial, lesada pelo pecado, que acolhe de novo o pecador arrependido e perdoado.

    O outro momento essencial do Sacramento da Penitência, compete, por sua vez, ao confessor juiz e médico, imagem de Deus Pai que acolhe aquele que regressa e lhe perdoa: é a absolvição. As palavras que a exprimem e os gestos que a acompanham no antigo e no novo Ritual da Penitência, revestem-se de uma significativa simplicidade na sua grandeza. A fórmula sacramental: «Eu te absolvo...», a imposição das mãos e o sinal da cruz traçado sobre o penitente manifestam que naquele momento o pecador contrito e convertido entra em contacto com o poder e a misericórdia de Deus. É em tal momento que, em resposta ao penitente, a Santíssima Trindade se torna presente para apagar o seu pecado e restituir-lhe a inocência; e a força salvífica da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus é comunicada ao mesmo penitente, como «misericórdia mais forte do que a culpa e a ofensa», como a designei na Encíclica Dives in Misericordia. Deus é sempre o principal ofendido pelo pecado — «Pequei só contra Vós!» («tibi soli peccavi!») — e só Deus pode perdoar. Por isso, a absolvição que o Sacerdote, ministro do perdão, embora também ele pecador, concede ao penitente, é o sinal eficaz da intervenção do Pai em cada absolvição e da «ressurreição» da «morte espiritual» que se renova todas as vezes que é actuado o Sacramento da Penitência. Só a fé pode assegurar que naquele momento todos e cada um dos pecados são perdoados e apagados pela misteriosa intervenção do Salvador.

    A satisfação é o acto final que coroa o sinal sacramental da Penitência. Em alguns países, o que o penitente perdoado e absolvido aceita cumprir depois de ter recebido a absolvição, chama-se precisamente penitência. Qual é o significado desta satisfação que se dá ou desta penitência que se faz? Não é certamente o preço que se paga pelo pecado absolvido e pelo perdão alcançado: nenhum preço humano pode equivaler ao que se obteve, fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo. As obras de satisfação — que, embora conservando um carácter de simplicidade e de humildade, deveriam tornar-se mais expressivas de tudo aquilo que significam — querem dizer algo de precioso: são o sinal docompromisso pessoal que o cristão assumiu com Deus, no Sacramento, de começar uma existência nova (e por isso não deveriam reduzir-se somente a algumas fórmulas a recitar, mas consistir em obras de culto, de caridade, de misericórdia e de reparação); incluem a ideia de que o pecador perdoado é capaz de unir a sua própria mortificação física e espiritual, procurada ou ao menos aceite, à Paixão de Jesus que lhe alcançou o perdão; recordam que, mesmo depois da absolvição, permanece no cristão uma zona de sombra devida às feridas do pecado, à imperfeição do amor no arrependimento, ao enfranquecimento das faculdades espirituais em que continua ainda activo um foco infeccioso de pecado, que é preciso combater sempre com a mortificação e a penitência. Tal é o significado da humilde mas sincera satisfação. (189)

  4. Resta-me fazer uma breve referência a outras importantes convicções relativas ao Sacramento da Penitência.

    Antes de mais, é preciso insistir em que não há nada mais pessoal e íntimo do que este Sacramento, no qual o pecador se encontra na presença de Deus, só, com a sua culpa, o seu arrependimento e a sua confiança. Ninguém pode arrepender-se em seu lugar ou pode pedir perdão em seu nome. Há uma certa solidão do pecador na sua culpa, que se pode ver dramaticamente representada em Caim com o pecado «à espreita à sua porta», como diz tão eficazmente o livro do Génesis, e marcado com o sinal particular na sua fronte; (190) em David, repreendido pelo profeta Natan; (191) ou no filho pródigo, quando toma consciência da condição à qual se reduziu pelo afastamento do pai e decide voltar para junto dele: (192) tudo se passa só entre o homem e Deus. Mas, ao mesmo tempo, é inegável a dimensão social deste Sacramento, no qual é toda a Igreja — a militante, a purgante e a triunfante no Céu — que intervém em auxílio do penitente e o acolhe de novo no seu seio, tanto mais que toda a Igreja fora ofendida e ferida pelo seu pecado. O Sacerdote, ministro da Penitência, em virtude da sua função sagrada, aparece como testemunha e representante de tal eclesialidade. São dois aspectos complementares do Sacramento, a individualidade e a eclesialidade, que a progressiva reforma do rito da Penitência, especialmente a do Ordo Paenitentiae (novo Ritual) promulgado pelo Papa Paulo VI, procurou realçar e tornar mais significativos na sua celebração.

  5. É de salientar, ainda, que o fruto mais precioso do perdão, obtido pela Penitência, consiste na reconciliação com Deus, a qual se verifica no segredo do coração do filho pródigo, e reencontrado, que é cada penitente. Mas é preciso acrescentar que tal reconciliação com Deus tem como consequência, por assim dizer, outras reconciliações, que vão remediar outras tantas rupturas, causadas pelo pecado: o penitente perdoado reconcilia-se consigo próprio no íntimo mais profundo do próprio ser, onde recupera a própria verdade interior; reconcilia-se com os irmãos, por ele de alguma maneira agredidos e lesados; reconcilia-se com a Igreja; e reconcilia-se com toda a criação. A tomada de consciência de tudo isto faz nascer no penitente, no final da celebração, um sentimento de gratidão para com Deus pelo dom da misericórdia que recebeu; e a Igreja convida-o à acção de graças.

    Todos os confessionários são um espaço privilegiado e abençoado, do qual, uma vez eliminadas as divisões, surge, novo e incontaminado, um homem reconciliado — um mundo reconciliado!

  6. E por fim, está-me particularmente a peito fazer uma última consideração que nos diz respeito a todos nós Sacerdotes, que somos os ministros do Sacramento da Penitência, mas que somos também — e devemos sê-lo sempre — os beneficiários. A vida espiritual e pastoral do Sacerdote, como a dos seus irmãos leigos e religiosos, depende, na sua qualidade e no seu fervor, da prática pessoal assídua e conscienciosa do Sacramento da Penitência. (193)

    A celebração da Eucaristia e o ministério dos outros Sacramentos, o zelo pastoral, a relação com os fiéis, a comunhão com os irmãos Sacerdotes, a colaboração com o Bispo, a vida de oração, numa palavra, toda a existência sacerdotal sofre inexorável decadência, se lhe falta por negligência ou por qualquer outro motivo o recurso, periódico e inspirado por fé autêntica e devoção, ao Sacramento da Penitência. Num sacerdote que deixasse de se confessar ou se confessasse mal, o seu ser padre e o exercício do seu Sacerdócio bem depressa se ressentiriam e disso se daria conta a própria Comunidade de que ele é pastor.

    Mas acrescento também que, até para ser bom e eficaz ministro da Penitência, o Sacerdote precisa de recorrer à fonte da graça e santidade presente neste Sacramento. Nós Sacerdotes, com base na nossa experiência pessoal, bem podemos dizer que, na medida em que procuramos recorrer ao Sacramento da Penitência e nos aproximamos dele com frequência e com boas disposições, desempenhamos melhor o nosso próprio ministério de confessores e melhor asseguramos aos penitentes o seu benefício. De outro modo, este ministério perderia muito da sua eficácia, se de alguma maneira deixássemos de ser bons penitentes. Tal é a lógica interna deste grande Sacramento. Ele convida-nos, a todos nós Sacerdotes de Cristo, a uma renovada atenção à nossa confissão pessoal.

    A experiência pessoal, por sua vez, torna-se e deve tornar-se hoje um estímulo para o exercício diligente, pontual, paciente e fervoroso do ministério sagrado da Penitência, a que estamos comprometidos por força do nosso Sacerdócio e da nossa vocação para ser pastores e servidores dos nossos irmãos. Assim, com a presente Exortação, quero dirigir um instante apelo a todos os Sacerdotes do mundo, especialmente aos meus Irmãos no Episcopado e aos Párocos, para que favoreçam com todas as veras a frequência dos fiéis a este Sacramento, ponham em prática todos os meios possíveis e convenientes e tentem todas as vias para fazer chegar ao maior número de irmãos nossos a «graça que nos foi dada» mediante a Penitência, para a reconciliação de cada alma e de todo o mundo com Deus, em Cristo.

As formas da celebração

32. Seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, o Ordo Paenitentiae predispôs três ritos que, ressalvados sempre os elementos essenciais, permitem adaptar a celebração do Sacramento da Penitência a determinadas circunstancias pastorais.

A primeira forma — reconciliação individual dos penitentes — constitui o único modo normal e ordinário da celebração sacramental, e não pode nem deve deixar-se cair em desuso ou ser descurada. A segunda — reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individual— ainda que permita, nos actos preparatórios, realçar mais os aspectos comunitários do Sacramento, vai confluir na primeira forma no acto sacramental culminante, que é o da confissão e a absolvição individuais dos pecados; e, por isso, pode ser equiparada à primeira forma no que toca à normalidade do rito. A terceira, ao contrário — reconciliação de vários penitentes com a confissão e a absolvição geral — reveste-se de carácter excepcional e não é, por isso, deixada à livre escolha, mas é regulada por uma disciplina especial.

A primeira forma permite a valorização dos aspectos mais pessoais — e essenciais — que estão compreendidos no itinerário penitêncial. O diálogo entre o penitente e o confessor, o próprio conjunto dos subsídios utilizados (os textos bíblicos, a escolha das formas de «satisfação», etc.) são elementos que tornam a celebração sacramental mais correspondente à situação concreta do penitente. Descobre-se o valor de tais elementos, quando se pensa nas diversas razões que levam um cristão à penitência sacramental: necessidade de reconciliação pessoal e readmissão na amizade com Deus, recuperando a graça perdida por causa do pecado; necessidade de verificação do caminho espiritual e, por vezes, de um mais preciso discernimento vocacional; e, tantas outras vezes, uma necessidade e um desejo de sair de um estado de apatia espiritual e de crise religiosa. Graças, ainda, à sua índole individual, a primeira forma de celebração permite associar o Sacramento da Penitência a algo de diferente, mas perfeitamente conciliável com ele: refiro-me à direcção espiritual. Por conseguinte, é óbvio que a decisão e o empenho pessoais estão claramente significados e solicitados nessa primeira forma.

A segunda forma de celebração, precisamente pelo seu carácter comunitário e pela modalidade celebrativa que a caracteriza, faz ressaltar alguns aspectos de grande importância: a Palavra de Deus, escutada em comum, tem um efeito singular, em relação à sua leitura individual, e evidencia melhor o carácter eclesial da conversão e da reconciliação. Essa celebração resulta particularmente significativa nos diversos tempos do ano litúrgico e em conexão com acontecimentos de especial relevância pastoral. Basta acenar aqui, apenas, que para tal celebração importa haver a presença de um número suficiente de confessores.

É natural, portanto, que os critérios para estabelecer a qual das duas formas de celebração se deva recorrer sejam ditados, não por motivações conjunturais e subjectivas, mas pelo desejo de obter o verdadeiro bem espiritual dos fiéis, em obediência à disciplina penitencial da Igreja.

Será bom recordar também que, para uma equilibrada orientação espiritual e pastoral neste campo, é necessário continuar a atribuir grande valor ao Sacramento da Penitência e educar os fiéis a recorrerem a ele, mesmo só para os pecados veniais, como atestam uma tradição doutrinal e uma prática já seculares.

Mesmo sabendo e ensinando que os pecados veniais são perdoados também de outros modos — pense-se nos actos de contrição, na obras de caridade, na oração e nos ritos penitênciais — a Igreja não cessa de recordar a todos a singular riqueza do momento sacramental também pelo que se refere a tais pecados. O recurso frequente ao Sacramento — a que estão obrigadas algumas categorias de fiéis — reforça a consciência de que também os pecados menores ofendem a Deus e ferem a Igreja, corpo de Cristo; e a celebração do mesmo Sacramento torna-se para todos os cristãos «ocasião e estímulo a conformarem-se mais intimamente com Cristo e a tornarem-se mais dóceis à voz do Espírito». (194) Sobretudo deve frisar-se bem o facto de a graça própria da celebração sacramental ter grande eficácia terapêutica e contribuir para arrancar as próprias raízes do pecado.

O cuidado dispensado ao aspecto celebrativo, (195) com particular referência à importância da Palavra de Deus, lida, evocada e explicada, quando for possível e oportuno, aos fiéis e com os fiéis, contribuirá para vivificar a prática do Sacramento e para impedir que decaia para algo de formal e rotineiro. O penitente há-de ser ajudado sobretudo a descobrir que está a viver um acontecimento de salvação, capaz de infundir nele um novo impulso de vida e uma verdadeira paz no seu coração. Este cuidado pela celebração há-de levar, ainda, entre outras coisas, a fixar em cada Igreja tempos destinados à celebração do Sacramento e a educar os fiéis, especialmente as crianças e os jovens, a aterem-se a eles, ordinariamente, salvo a casos de necessidade, em relação aos quais o pastor de almas deverá mostrar-se sempre pronto a acolher de boa vontade quem a ele recorrer.

A celebração do Sacramento com absolvição geral

33. Na nova ordenação litúrgica e, mais recentemente, no novo Código de Direito Canónico, (196) estão determinadas as condições que legitimam o recurso ao «rito da reconciliação de vários penitentes, com a confissão e a absolvição geral». As normas e as directrizes dadas quanto a este ponto, fruto de madura e equilibrada consideração, devem ser acolhidas e aplicadas evitando toda a espécie de interpretação arbitrária.

É oportuna uma ulterior reflexão, mais aprofundada, sobre as motivações, que impõem a celebração da Penitência numa das duas primeiras formas e que permitem o recurso à terceira forma. Há, antes de mais, uma motivação de fidelidade à vontade do Senhor Jesus, transmitida pela doutrina da Igreja e, além disso, de obediência às leis da mesma Igreja: o Sínodo reafirmou numa das suas Propostas («Propositiones») o inalterado ensino que a Igreja foi haurir na mais antiga Tradição e recordou a lei com que codificou a antiga prática penitêncial: a confissão individual e íntegra dos pecados, com a absolvição igualmente individual, constitui o único modo ordinário, pelo qual o fiel, culpado de pecado grave, é reconciliado com Deus e com a Igreja. Desta confirmação do ensino da Igreja, resulta claramente que todos os pecados devem ser sempre declarados, com as suas circunstâncias determinantes, numa confissão individual.

Existe, ainda, uma motivação de ordem pastoral. Se é verdade que, verificando-se as condizões requeridas pela disciplina canónica, se pode fazer uso da terceira forma de celebração da Penitência, não se deve esquecer, no entanto, que esta não pode tornar-se uma forma ordinária, e que não pode nem deve ser adoptada — repetiu-o o Sínodo — senão «em casos de grave necessidade», permanecendo firme a obrigação de confessar individualmente os pecados graves antes de recorrer novamente à absolvição geral. O Bispo, portanto, o único a quem compete, no âmbito da sua Diocese, ajuizar se existem em concreto as condições que a lei canónica estabelece para o uso dessa terceira forma, dará tal juízo, onerando gravemente a sua consciência, com respeito pleno da lei e da prática da Igreja; e, além disso, tendo em conta critérios e orientações que hajam sido dados — com base nas considerações doutrinais e pastorais acima apresentadas — de comum acordo, pelos demais membros da Conferência Episcopal. Terá de haver, igualmente, uma autêntica preocupação pastoral em procurar e garantir as condições que tornem o recurso à terceira forma susceptível de dar aqueles frutos espirituais, para os quais ela está prevista.

Assim, o uso excepcional da terceira forma de celebração do Sacramento da Penitência não deverá nunca levar a uma menor consideração e, menos ainda, ao abandono das formas ordinárias, ou então a considerar essa forma como uma alternativa das outras duas. Não é, efectivamente, deixado à liberdade dos Pastores e dos fiéis escolher entre as mencionadas formas de celebração aquela que retiverem mais oportuna. Para os Pastores permanece a obrigação de facilitarem aos fiéis a prática da confissão íntegra e individual dos pecados, que constitui para eles não só um dever, mas também um direito inviolável e inalienável, além de uma necessidade espiritual.

Para os fiéis o uso da terceira forma de celebração comporta a obrigação de se aterem a todas as normas que regulam a sua prática, incluindo a de não recorrerem de novo à absolvição geral antes de uma confissão regular, integral e individual dos pecados, que deverão fazer logo que seja possível. Os mesmos fiéis devem ser advertidos e instruídos pelo Sacerdote, acerca desta norma e da obrigação de a observar, antes da absolvição.

Ao recordar assim a doutrina e a lei da Igreja, é minha intenção inculcar em todos o vivo sentido de responsabilidade, que sempre nos deve guiar ao tratar das coisas sagradas; estas não são propriedade nossa, como é o caso dos Sacramentos; ou então têm direito a não serem deixadas na incerteza e na confusão, como são as consciências. Coisas sagradas — repito — são uns e outras: os Sacramentos e as consciências; e exigem da nossa parte serem servidas com verdade.

Esta é a razão da lei da Igreja!

Alguns casos mais delicados

34. Sinto-me no dever, chegado a este ponto, de fazer uma alusão, ainda que brevíssima, a um caso pastoral que o Sínodo quis tratar — na medida que lhe era possível fazê-lo — contemplando-o também numa das Propostas («Propositiones»). Refiro-me a certas situações, hoje não infrequentes, em que, vêm a encontrar-se cristãos desejosos de continuarem a prática religiosa sacramental, mas que disso estão impedidos pela própria condição pessoal, em contraste com os compromissos assumidos livremente diante de Deus e da Igreja. São situações que se apresentam particularmente delicadas e quase inextricáveis.

Não poucas intervenções, no decorrer do Sínodo, exprimindo o pensamento geral dos Padres, puseram bem a claro a coexistência e a influência mútua de dois princípios, igualmente importantes, no que respeita a estes casos. O primeiro é o princípio da compaixão e da misericórdia, segundo o qual a Igreja, continuadora na história da presença e da obra de Cristo, não querendo a morte do pecador, mas que se converta e viva, (197) atenta a não partir a cana já fendida e a não apagar a chama que ainda fumega, (198) procura sempre facultar, na medida em que lhe é possível, o caminho do retorno a Deus e da reconciliação com ele. O outro é o princípio da verdade e da coerência, pelo qual a Igreja não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem. Baseando-se nestes dois princípios complementares, a Igreja mais não pode do que convidar os seus filhos, que se encontram nessas situações dolorosas, a aproximarem-se da misericórdia divina por outras vias, mas não pela via dos Sacramentos, especialmente da Penitência e da Eucaristia, até que não tenham podido alcançar as condições requeridas.

Acerca desta matéria, que angustia profundamente também o nosso coração de pastores, pareceu-me ser meu preciso dever, já na Exortação Apostólica Familiaris Consortio, dizer palavras claras pelo que se refere ao caso dos divorciados novamente casados (199) ou de cristãos que, de qualquer maneira, convivem conjugalmente de modo irregular.

Ao mesmo tempo, sinto vivamente o dever de exortar, juntamente com o Sínodo, as comunidades eclesiais e, sobretudo os Bispos, a darem toda a ajuda possível aos Sacerdotes, que, tendo faltado aos graves compromissos assumidos na Ordenação, se encontram em situações irregulares. Nenhum destes irmãos há-de sentir-se abandonado pela Igreja.

Para todos aqueles que não se encontrem actualmente nas condições objectivas requeridas pelo Sacramento da Penitência, as demonstrações de maternal bondade por parte da Igreja, o apoio de actos de piedade diversos dos actos sacramentais, o esforço sincero por se manter em contacto com o Senhor, a participação na Santa Missa, a repetição frequente de actos de fé, de esperança, de caridade e de contrição quanto for possível perfeitos, poderão preparar o caminho para uma plena reconciliação no momento que só a Providência conhece.