A g n u s D e i

PASTORES DABO VOBIS
João Paulo II
25.03.1992

IV
VINDE VER
A vocação sacerdotal na pastoral da Igreja

Procurar, seguir, permanecer

34. "Vinde ver" (Jo 1, 39). Desta forma responde Jesus aos dois discípulos de João Baptista, que lhe perguntavam onde habitava. Nestas palavras, encontramos o significado da vocação.

Eis como o evangelista narra o chamamento de André e de Pedro: "No dia seguinte, João estava ainda lá com dois dos seus discípulos e, lançando o olhar para Jesus que passava, disse: 'Eis o Cordeiro de Deus!'. E os dois discípulos ouvindo-o falar daquela maneira, seguiram Jesus. Jesus voltou-se então e, vendo que o seguiam, disse: 'Que procurais?' Responderam-lhe: 'Rabbi, (que significa Mestre) onde moras?' Disse-lhes: 'Vinde ver'. Foram então e viram onde morava e permaneceram com Ele naquele dia. Era pelas quatro horas da tarde.

Um dos dois que tinham escutado as palavras de João e que O tinham seguido era André, irmão de Simão Pedro. Encontrou em primeiro lugar o seu irmão Simão e disse-lhe: 'Encontrámos o Messias (que significa Cristo)' e levou-o a Jesus. Jesus, fixando nele o olhar disse: 'Tu és Simão, filho de João. Chamar-te-ás Cefas (que quer dizer Pedro')" (Jo 1, 35-42).

Esta página do Evangelho é uma das muitas da Sagrada Escritura onde se descreve o "mistério" da vocação, no nosso caso o mistério da vocação para ser apóstolo de Jesus. A página de São João, que tem também um significado para a vocação cristã enquanto tal, reveste um valor emblemático no caso da vocação sacerdotal. A Igreja, comunidade dos discípulos de Jesus, é chamada a fixar o seu olhar sobre esta cena que, de certo modo, se renova continuamente na história. É convidada a aprofundar o sentido original e pessoal da vocação para o seguimento de Cristo no ministério sacerdotal e o laço indissociável entre a graça divina e a responsabilidade humana, encerrado e revelado nos dois termos que mais vezes encontramos no Evangelho: vem e segue-me (cf. Mt 19, 21). É solicitada a decifrar e a percorrer o dinamismo próprio da vocação, o seu desenvolvimento gradual e concreto nas fases do procurar Jesus, do segui-Lo e do permanecer com Ele.

A Igreja identifica neste "Evangelho da vocação" o paradigma, a força e o impulso da sua pastoral vocacional, ou seja, da sua missão destinada a cuidar do nascimento, discernimento e acompanhamento das vocações, particularmente das vocações ao sacerdócio. Precisamente porque "a falta de sacerdotes é por certo a tristeza de cada Igreja" [92], a pastoral vocacional exige, sobretudo hoje, ser assumida com um novo, vigoroso e mais decidido compromisso por parte de todos os membros da Igreja, na consciência de que aquela não é um elemento secundário ou acessório, nem um momento isolado ou sectorial, quase uma simples "parte", ainda que relevante, da pastoral global da Igreja: é sim, como repetidamente afirmaram os Padres sinodais, uma actividade intimamente inserida na pastoral geral de cada Igreja [93], um cuidado que deve ser integrado e plenamente identificado com a "cura de almas" dita ordinária, [94] a, uma dimensão conatural e essencial da pastoral da Igreja, ou seja, da sua vida e da sua missão [95].

Sim, a dimensão vocacional é conatural e essencial à pastoral da Igreja. A razão está no facto de que a vocação define, em certo sentido, o ser profundo da Igreja, ainda antes do seu operar. No próprio nome da Igreja, Ecclesia, está indicada a sua íntima fisionomia vocacional, porque ela é verdadeiramente "convocação", assembleia dos chamados: "A todos aqueles que olham com fé para Jesus, como autor da salvação e princípio da unidade e da paz, Deus convocou-os e constituiu com eles a Igreja, para que seja para todos e cada um o sacramento visível desta unidade salvífica" [96].

Uma leitura propriamente teológica da vocação sacerdotal e da pastoral que lhe diz respeito pode brotar apenas da leitura do mistério da Igreja como mysterium vocationis.

A Igreja e o dom da vocação

35. Cada vocação cristã encontra o seu fundamento na eleição prévia e gratuita por parte do Pai ,"que nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais nos céus em Cristo. Nele nos escolheu antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença na caridade, predestinando-nos para sermos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade" (Ef 1, 3-5).

Toda a vocação cristã vem de Deus, é dom divino. Todavia, ela nunca é oferecida fora ou independentemente da Igreja, mas passa sempre na Igreja e mediante a Igreja, porque, como nos recorda o Concílio Vaticano II, "aprouve a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, e excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo, que O conhecesse na verdade e santamente O servisse" [97].

A Igreja não só abarca em si todas as vocações que Deus lhe oferece, no seu caminho de salvação, mas ela própria se configura como mistério de vocação, qual luminoso e vivo reflexo do mistério da Santíssima Trindade. Na realidade, a Igreja, "povo reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo" [98], leva em si o mistério do Pai que, não chamado nem enviado por ninguém (cf. Rom 11, 33-35), a todos chama a santificar o Seu nome e a cumprir a Sua vontade; guarda em si o mistério do Filho que é chamado e enviado pelo Pai a anunciar a todos o Reino de Deus e que a todos chama ao seu seguimento; é depositária do mistério do Espírito Santo que consagra para a missão aqueles que o Pai chama mediante o Seu Filho Jesus Cristo.

Deste modo a Igreja, que pori nata constituição é "vocação", é geradora e educadora de vocações. É-o no seu ser de "sacramento", enquanto "sinal" e "instrumento" no qual ressoa e se realiza a vocação de cada cristão; é-o no seu operar, ou seja, no desempenho do seu ministério de anúncio da Palavra, de celebração dos Sacramentos e de serviço e testemunho da Caridade.

Agora pode-se compreender a essencial dimensão eclesial da vocação cristã: ela não só deriva "da" Igreja e da sua mediação, não só se faz reconhecer e realiza "na" Igreja, mas se configura - no fundamental serviço a Deus - também e necessariamente como serviço "à" Igreja. A vocação cristã, em qualquer das suas formas, é um dom destinado à edificação da Igreja, ao crescimento do Reino de Deus no mundo [99].

O que dizemos de todas as vocações cristãs encontra uma realização específica na vocação sacerdotal: esta é chamada, através do sacramento da Ordem, recebido na Igreja, a pôr-se ao serviço do Povo de Deus com uma peculiar pertença e configuração a Jesus Cristo e com a autoridade de actuar "no nome e na pessoa" d'Ele, Cabeça e Pastor da Igreja.

Nesta perspectiva, se entende o que dizem os Padres sinodais: "A vocação de cada sacerdote subsiste na Igreja e para a Igreja: para ela se realiza uma semelhante vocação. Daqui se segue que cada presbítero recebe a vocação do Senhor, através da Igreja, como um dom gratuito, uma gratia gratis data (charisma). Pertence ao Bispo ou ao Superior competente não só submeter a exame a idoneidade e a vocação do candidato, mas também reconhecê-la. Esta dimensão eclesiástica é inerente à vocação para o ministério presbiteral como tal. O candidato ao presbiterado deve receber a vocação, não impondo as próprias condições pessoais, mas aceitando as normas e as condições que a própria Igreja, pela sua parte de responsabilidade, coloca" [100].

O diálogo vocacional: a iniciativa de Deus e a resposta do homem

36. A história de cada vocação sacerdotal, como aliás de qualquer outra vocação cristã, é a história de um inefável diálogo entre Deus e o homem, entre o amor de Deus que chama e a liberdade do homem que no amor responde a Deus. Estes dois aspectos indissociáveis da vocação, o dom gratuito de Deus e a liberdade responsável do homem, emergem de modo tão extraordinário quanto eficaz das brevíssimas palavras com as quais o evangelista Marcos apresenta a vocação dos Doze: Jesus "subiu depois ao monte, chamou a si aqueles que quis e eles foram ter com Ele" (Mc 3, 13). De um lado está a decisão absolutamente livre de Jesus, do outro o "ir" dos doze, ou seja, o "seguir" Jesus.

É este o paradigma constante, o dado irrecusável de cada vocação: a dos profetas, a dos apóstolos, dos sacerdotes, dos religiosos, dos leigos, de toda e qualquer pessoa.

Mas inteiramente prioritária, mais, prévia e decisiva é a intervenção livre e gratuita de Deus que chama. A iniciativa do chamamento pertence a Ele. É esta, por exemplo, a experiência do profeta Jeremias: "Foi-me dirigida a Palavra do Senhor: 'Antes de te formares no ventre materno, eu te conhecia, antes que viesses à luz eu te tinha consagrado; constituí-te profeta das nações'"(Jer 1, 4-5). É a mesma verdade apresentada pelo apóstolo Paulo que fundamenta toda a vocação na eterna eleição de Cristo, levada a cabo "antes da criação do mundo" e "segundo o beneplácito da sua vontade" (Ef 1, 5). O absoluto primado da graça na vocação encontra a sua perfeita proclamação na palavra de Jesus: "Não fostes vós que Me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos estabeleci para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça" (Jo 15, 16).

Se a vocação sacerdotal testemunha de modo inequívoco o primado da graça, a livre e soberana decisão de Deus de chamar o homem exige absoluto respeito, não pode de modo algum ser forçada por qualquer pretensão humana, não pode ser substituída por qualquer decisão humana. A vocação é um dom da graça divina e jamais um direito do homem, da mesma forma que "não se pode considerar a vida sacerdotal como uma promoção simplesmente humana, nem a missão do ministro como um simples projecto pessoal" [101]. Fica assim radicalmente excluída qualquer vaidade ou presunção dos chamados (cf. Heb 5,4-5). Todo o espaço espiritual do seu coração é tomado por uma maravilhada e comovida gratidão, por uma confiança e esperança inabaláveis, porque os chamados sabem que estão assentes não nas próprias forças, mas sobre a incondicional fidelidade de Deus que chama.

"Chamou aqueles que quis e estes foram ter com Ele" (Mc 3, 1). Este "ir", que se identifica com o "seguir" Jesus, exprime a resposta livre dos Doze ao chamamento do Mestre. Foi assim o caso de Pedro e de André: "E disse-lhes: 'segui-me e farei de vós pescadores de homens'. E eles, imediatamente deixando as redes, seguiram-no" (Mt 4, 19-20). Idêntica foi a experiência de Tiago e João (cf. Mt 4, 21-22). É sempre assim: na vocação, resplandece conjuntamente o amor gratuito de Deus e a exaltação mais alta possível da liberdade do homem - a da adesão ao chamamento de Deus e do confiar-se a Ele.

Na realidade, graça e liberdade não se opõem entre si. Pelo contrário, a graça anima e sustenta a liberdade humana, livrando-a da escravidão do pecado (cf. Jo 8, 34-36), sanando e elevando-a na sua capacidade de abertura e de acolhimento do dom de Deus. E se não se pode atentar contra a iniciativa absolutamente gratuita de Deus que chama, também não pode atentar contra a extrema seriedade com que o homem é desafiado na sua liberdade. Assim, ao "vem e segue-me" de Jesus, o jovem rico opõe uma recusa, sinal - mesmo que negativo - da sua liberdade: "mas ele, entristecido por aquelas palavras, retirou-se abatido porque possuía muitos bens" (Mc 10, 22).

A liberdade, portanto, é essencial à vocação, uma liberdade que na resposta positiva se qualifica como adesão pessoal profunda, como doação de amor, ou melhor, de reentrega ao Doador que é Deus que chama, como oblação. "O chamamento - dizia Paulo VI - avalia-se pela resposta. Não pode haver vocações que não sejam livres; se elas não forem realmente oferta espontânea de si mesmo, conscientes, generosas, totais (...) Oblações, digamos: aqui se encontra praticamente o verdadeiro problema (...) É a voz humilde e penetrante de Cristo que diz, hoje como ontem, e mais do que ontem: "vem!". A liberdade é colocada na sua base suprema: exactamente a da oblação, da generosidade, do sacrifício" [102].

A oblação livre que constitui o núcleo íntimo e mais precioso da resposta do homem a Deus que chama, encontra o seu incomparável modelo, mais, a sua raiz viva na libérrima oblação de Jesus Cristo, o primeiro dos chamados, à vontade do Pai: "Por isso, ao entrar no mundo, Cristo disse: 'Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas preparaste-me um corpo (...) Então eu disse: Eis que venho (...) para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Heb 10, 5-7).

Em íntima comunhão com Cristo, Maria, a Virgem Mãe, foi a criatura que, mais do que qualquer outra, viveu a plena verdade da vocação, porque ninguém como ela respondeu com um amor tão grande ao amor imenso de Deus [103].

37. "Mas ele, entristecido por aquelas palavras, retirou-se angustiado porque possuía muitos bens" (Mc 10, 22). O jovem rico do Evangelho, que não segue o chamamento de Jesus recorda-nos os obstáculos que podem bloquear ou apagar a resposta livre do homem: não apenas os bens materiais podem fechar o coração humano aos valores do espírito e às radicais exigências do Reino de Deus, mas também algumas condições sociais e culturais do nosso tempo podem constituir não poucas ameaças e impor visões distorcidas e falsas acerca da verdadeira natureza da vocação, tornando difícil, se não mesmo impossível, o seu acolhimento e a sua própria compreensão.

Muitos possuem de Deus uma idéia tão genérica e confusa a ponto de se perderem em formas de religiosidade sem Deus, nas quais a vontade divina é concebida como um destino imutável e inelutável, face ao qual o homem nada mais pode fazer que se adequar e resignar-se com plena passividade. Mas não é este o rosto de Deus que Jesus Cristo veio revelar-nos: Deus, de facto, é o Pai que com amor eterno e prévio chama o homem e o posiciona num diálogo maravilhoso e permanente com Ele, convidando-o a partilhar, como filho, a sua própria vida divina. É claro que, com uma visão errada de Deus, o homem nem sequer pode reconhecer a verdade de si mesmo, pelo que a vocação não pode ser reconhecida nem muito menos vivida no seu autêntico valor: pode quando muito ser sentida como um peso imposto e insuportável.

Também certas idéias incorrectas sobre o homem, frequentemente apoiadas em pretensos argumentos filosóficos ou "científicos", induzem-no por vezes a interpretar a própria existência e liberdade como totalmente determinadas e condicionadas por factores externos, de ordem educacional, psicológica, cultural ou ambiental. Outras vezes, a liberdade é entendida em termos de absoluta autonomia, pretende ser a única e incontestável fonte das opções pessoais, classifica-se como afirmação de si a todo o custo. Mas dessa forma se fecha o caminho para entender e viver a vocação como livre diálogo de amor, que nasce da comunicação de Deus ao homem e se conclui no dom sincero de si próprio.

No contexto actual, não falta ainda a tendência para pensar de modo individualista e intimista o relacionamento do homem com Deus, como se o chamamento de Deus atingisse cada pessoa directamente sem qualquer mediação comunitária, visando uma vantagem ou a própria salvação do indivíduo chamado e não a dedicação total a Deus no serviço da comunidade. Assim encontramos uma outra profunda e ao mesmo tempo subtil ameaça, que torna impossível reconhecer e aceitar com alegria a dimensão eclesial inscrita na origem em toda a vocação cristã, e na presbiteral de modo especial: de facto, como nos recorda o Concílio, o sacerdócio ministerial adquire o seu autêntico significado e realiza a plena verdade de si mesmo no servir e fazer crescer a comunidade cristã e o sacerdócio comum dos fiéis [104].

O contexto cultural recordado agora, cujo influxo não está ausente do meio dos próprios cristãos, e particularmente dos jovens, ajuda a compreender o difundir-se da crise das mesmas vocações sacerdotais, originada e acompanhada pela mais radical crise de fé. Declararam-no explicitamente os Padres sinodais, reconhecendo que a crise das vocações ao presbiterado tem profundas raízes no ambiente cultural e na mentalidade e práxis dos cristãos [105].

Daqui a urgência de que a pastoral vocacional da Igreja incida de modo decidido e prioritário na reconstrução da "mentalidade cristã", tal como é gerada e sustentada pela fé. É absolutamente necessária uma evangelização que não se canse de apresentar o verdadeiro rosto de Deus, o Pai que em Jesus Cristo chama cada um de nós, e o sentido genuíno da própria liberdade humana, qual princípio e força do dom responsável de si mesmo. Só dessa maneira serão colocadas as bases indispensáveis para que cada vocação, incluindo a sacerdotal, possa ser descoberta na sua verdade, amada na sua beleza e vivida com dedicação total e alegria profunda.

Conteúdos e meios da pastoral vocacional

38. Certamente a vocação é um mistério imperscrutável, que coinvolve o relacionamento que Deus instaura com o homem na sua unicidade e irrepetibilidade, um mistério que deve ser percebido e sentido como um apelo que espera uma resposta nas profundezas da consciência, naquele "sacrário do homem onde ele se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser" [106]. Mas isto não elimina a dimensão comunitária e especificamente eclesial da vocação: a Igreja está realmente presente e operante na vocação de cada sacerdote.

No serviço à vocação sacerdotal e ao seu itinerário, ou seja, no nascimento, discernimento, e acompanhamento da vocação, a Igreja pode encontrar um modelo em André, um dos dois primeiros discípulos que se puseram a seguir Jesus. É ele mesmo que conta ao irmão o que lhe acontecera: "Encontrámos o Messias(que significa Cristo)" (Jo 1, 41). E a narração desta descoberta abre o caminho para o encontro: "E levou-o a Jesus" (Jo 1, 42). Não há dúvidas sobre a iniciativa absolutamente livre e sobre a decisão soberana de Jesus. É Jesus que chama Simão e lhe dá um nome novo: "Jesus fixando nele o olhar disse: 'Tu és Simão, filho de João; vais chamar-te Cefas (que quer dizer Pedro)'" (Jo 1, 42). Mas André não deixou de ter a sua iniciativa: na verdade, solicitou o encontro do irmão com Jesus.

"E levou-o a Jesus". Está aqui, em certo sentido, o coração de toda a pastoral vocacional da Igreja, pela qual ela tem em atenção o nascimento e o crescimento das vocações, servindo-se dos dons e das responsabilidades, dos carismas e do ministério recebido de Cristo e do seu Espírito. Como povo sacerdotal, profético e real, ela está empenhada em promover e servir o florescimento e a maturação das vocações sacerdotais com a oração e a vida sacramental, com o anúncio da palavra e a educação da fé, com a orientação e o testemunho da caridade.

A Igreja, na sua dignidade e responsabilidade de povo sacerdotal, tem na oração e na celebração da liturgia, os elementos essenciais e primários da pastoral vocacional. A oração cristã, de facto, nutrindo-se da Palavra de Deus, cria o espaço ideal para que cada um possa descobrir a verdade do ser e a identidade do projecto de vida pessoal e irrepetível que o Pai lhe confia. É necessário, portanto, educar em particular as crianças e jovens para que sejam fiéis à oração e à meditação da Palavra de Deus: no silêncio e na escuta poderão ouvir o chamamento do Senhor ao sacerdócio e segui-lo com prontidão e generosidade.

A Igreja deve acolher cada dia o convite persuasivo e exigente de Jesus, que pede para "rezar ao Senhor da messe para que mande operários para a sua messe" (Mt 9,38). Obedecendo ao mandamento de Cristo, a Igreja realiza, antes de mais nada, uma humilde profissão de fé: ao rezar pela vocações, ao mesmo tempo que toma consciência de toda a sua urgência para a própria vida e missão, reconhece que elas são um dom de Deus e, como tal, se devem pedir com uma súplica confiante e incessante. Esta oração,fulcro de toda a pastoral vocacional, deve todavia comprometer não apenas os indivíduos, mas também as inteiras comunidades eclesiais. Ninguém duvida da importância das iniciativas individuais de oração, dos momentos especiais reservados a esta invocação, a começar pelo Dia Mundial de Oração pelas Vocações, e do empenhamento específico de pessoas e grupos particularmente sensíveis ao problema das vocações sacerdotais. Mas, hoje mais do que nunca, a expectativa orante de novas vocações deve tornar-se um hábito constante e largamente partilhado na comunidade cristã e em toda e qualquer realidade eclesial. Poder-se-á assim reviver a experiência dos apóstolos que no Cenáculo, unidos com Maria, esperam em oração a efusão do Espírito (cf. Act 1, 14), o Qual não deixará mais de suscitar no Povo de Deus "dignos ministros do altar, anunciadores fortes e humildes da palavra que nos salva" [107].

Ponto culminante e fonte de toda a vida da Igreja [108], e em particular da oração cristã, a liturgia desempenha também um papel indispensável e uma incidência privilegiada na pastoral das vocações. Aquela, de facto, constitui uma experiência viva do dom de Deus e uma grande escola para a resposta ao seu chamamento. Como tal, cada celebração litúrgica, e em primeiro lugar a Eucaristia, nos revela o rosto de Deus, nos faz comungar do mistério da Páscoa, ou seja, da "hora" para a qual Jesus veio ao mundo e livre e voluntariamente se encaminhou em obediência ao chamamento do Pai (cf. Jo 13, 1), nos manifesta a fisionomia da Igreja como povo de sacerdotes e comunidade bem organizada na variedade e complementaridade dos carismas e das vocações. O sacrifício redentor de Cristo, que a Igreja celebra no mistério eucarístico, confere um valor particularmente precioso ao sofrimento vivido em união com o Senhor Jesus. Os Padres sinodais convidaram-nos a não esquecer nunca que "através da oferta dos sofrimentos, tão presentes na vida dos homens, o cristão doente se oferece a si próprio como vítima a Deus à imagem de Cristo, o qual por todos nós se consagrou a si mesmo (cf. Jo 17, 19)", e que "a oferta dos sofrimentos segundo tal intenção é uma grande ajuda para a promoção das vocações" [109].

39. No exercício da sua missão profética, a Igreja sente como premente e irrecusável a tarefa de anunciar e testemunhar o sentido cristão da vocação, poderemos mesmo dizer o "Evangelho da vocação". Interpela-nos, também neste campo, a urgência das palavras do Apóstolo:"Ai de mim se não evangelizar!"(1 Cor 9, 16). Tal advertência ressoa, antes de mais, em nós pastores e diz respeito, juntamente connosco, a todos os educadores na Igreja. A pregação e a catequese devem sempre manifestar a sua intrínseca dimensão vocacional: a palavra de Deus ilumina os crentes na avaliação da vida como resposta ao chamamento de Deus e leva-os a acolher na fé o dom da vocação pessoal.

Mas tudo isto, apesar de importante e essencial, não basta: é precisa "uma pregação directa sobre o mistério da vocação na Igreja, sobre o valor do sacerdócio ministerial, e sobre a sua urgente necessidade para o Povo de Deus" [110]. Uma catequese orgânica e proporcionada a todas as componentes da Igreja, além de dissipar dúvidas e refutar idéias unilaterais e distorcidas sobre o ministério sacerdotal, abre os corações dos crentes à expectativa do dom e cria condições aptas ao nascimento de novas vocações. É chegado o tempo de falar corajosamente da vida sacerdotal como um valor inestimável e como forma esplêndida e privilegiada de vida cristã. Os educadores, especialmente os sacerdotes, não devem ter medo de propor de modo explícito e premente a vocação ao presbiterado como possibilidade real para aqueles jovens que demonstram possuir os dons e capacidades a ela correspondentes. Não se deve ter receio de lhes condicionar ou limitar a liberdade; pelo contrário, uma proposta precisa, feita no momento certo, pode revelar-se decisiva para provocar nos jovens uma resposta livre e autêntica. De resto, a história da Igreja como a de tantas vocações sacerdotais, desabrochadas mesmo em tenra idade, atestam amplamente a providencial presença e palavra de um padre: não só da palavra mas também da presença, isto é, de um testemunho concreto e alegre capaz de fazer despertar interrogações e de conduzir a mesmo decisões definitivas.

40. Como povo real, a Igreja reconhece-se radicada e animada pela "lei do Espírito que dá vida" (Rom 8, 2), que é essencialmente a lei régia da caridade (cf. Tg 2, 8) ou a lei perfeita da liberdade (cf. Tg 1, 25). Ela cumpre, por isso, a sua missão quando guia cada fiel para descobrir e para viver a própria vocação na liberdade e levá-la a bom termo na caridade.

Na sua tarefa educativa, a Igreja interessa-se, com atenção privilegiada, por suscitar nas crianças, nos adolescentes e nos jovens o desejo e a decisão de um seguimento integral e comprometido com Jesus Cristo. O trabalho educacional, mesmo que diga respeito a toda a comunidade cristã enquanto tal, deve orientar-se para a pessoa singular: Deus, de facto, com o seu chamamento, atinge o coração de cada homem, e o Espírito, que mora no íntimo de cada discípulo (cf. 1 Jo 3, 24), dá-se a cada cristão com carismas diversos e particulares manifestações. Cada um, portanto, deve ser ajudado a acolher o dom que, precisamente a ele como pessoa irrepetível e única, é confiado, e a escutar as palavras que o Espírito de Deus lhe dirige singularmente.

Nesta perspectiva, o cuidado pelas vocações ao sacerdócio saberá exprimir-se também numa firme e persuasiva proposta de direcção espiritual. É preciso redescobrir a grande tradição do acompanhamento espiritual pessoal, que sempre deu tantos e tão preciosos frutos, na vida da Igreja: esse acompanhamento pode, em determinados casos e em condições bem precisas, ser ajudado, mas não substituído, por formas de análise ou de ajuda psicológica [111]. As crianças, os adolescentes e os jovens sejam convidados a descobrir e a apreciar o dom da direcção espiritual, e a solicitá-lo com confiante insistência aos seus educadores na fé. Os sacerdotes, pela sua parte, sejam os primeiros a dedicar tempo e energias a esta obra de educação e de ajuda espiritual pessoal: jamais se arrependerão de ter transcurado ou relegado para segundo plano muitas outras coisas, mesmo boas e úteis, se for necessário para o seu ministério de colaboradores do Espírito na iluminação e guia dos chamados.

Objectivo da educação do cristão é atingir, sob o influxo do Espírito, "a plena maturidade de Cristo" (Ef 4, 13). Isto verifica-se quando, imitando e partilhando a Sua caridade, se faz da própria vida um serviço de amor (cf. Jo 13, 14-15), oferecendo a Deus um culto espiritual que Lhe seja agradável (cf. Rom 12, 1) e doando-se aos irmãos. O serviço de amor é o sentido fundamental de toda a vocação, que encontra uma realização específica na vocação do sacerdote: efectivamente ele é chamado a reviver, na forma mais radical possível, a caridade pastoral de Jesus, isto é, o amor do Bom Pastor que "dá a vida pelas ovelhas" (Jo 10,11).

Por isso, uma autêntica pastoral vocacional nunca se cansará de educar as crianças, os adolescentes e os jovens para a atracção pelo compromisso, para o sentido do serviço gratuito, para o valor do sacrifício, para a doação incondicionada de si mesmo. Torna-se então particularmente útil a experiência do voluntariado, para o qual está a crescer a sensibilidade de tantos jovens: se for um voluntariado evangelicamente motivado, capaz de educar para o discernimento das carências, vivido cada dia com dedicação e fidelidade, aberto à eventualidade de um compromisso definitivo na vida consagrada, alimentado pela oração, poderá mais seguramente sustentar uma vida de compromisso desinteressado e gratuito, e tornará quem a ele se dedica mais sensível à voz de Deus que o pode chamar ao sacerdócio. Com diferença do jovem rico, o empenhado no voluntariado poderia aceitar o convite, cheio de amor, que Jesus lhe dirige (cf. Mc 10, 21) ; e podê-lo-ia aceitar, porque os seus únicos bens consistem já no doar-se aos outros e no "perder" a sua vida.

Todos somos responsáveis pelas vocações sacerdotais

41. A vocação sacerdotal é um dom de Deus, que constitui certamente um grande bem para aquele que é o seu primeiro destinatário. Mas é também um dom para a Igreja inteira, um bem para a sua vida e missão. A Igreja, portanto, é chamada a proteger este dom, a estimá-lo e amá-lo: ela é responsável pelo nascimento e pela maturação das vocações sacerdotais. Em consequência disso, a pastoral vocacional tem como sujeito activo, como protagonista, a comunidade eclesial enquanto tal, nas suas diversas expressões: da Igreja universal à Igreja particular, e, analogamente, desta à paróquia e a todas as componentes do Povo de Deus.

É grande a urgência, sobretudo hoje, que se difunda e se radique a convicção de que todos os membros da Igreja, sem excepção, têm a graça e a responsabilidade do cuidado pelas vocações. O Concílio Vaticano II é explícito, ao afirmar que "o dever de fomentar as vocações sacerdotais pertence a toda a comunidade cristã, que as deve promover sobretudo mediante uma vida plenamentente cristã" [112]. Só na base desta convicção, a pastoral das vocações poderá manifestar o seu rosto verdadeiramente eclesial, desenvolvendo uma acção concorde, servindo-se também de organismos específicos e de adequados instrumentos de comunhão e de corresponsabilidade.

A primeira responsabilidade da pastoral orientada para as vocações sacerdotais é do Bispo [113], que é chamado a vivê-la em primeira pessoa ainda, que possa e deva suscitar múltiplas colaborações. Ele é pai e amigo no seu presbitério, e é sua, antes de mais, a solicitude de "dar continuidade" ao carisma e ao ministério presbiteral, associando-lhe novos efectivos pela imposição das mãos. Ele cuidará que a dimensão vocacional esteja sempre presente em todos os âmbitos da pastoral ordinária, melhor, seja plenamente integrada e como que identificada com ela. Cabe-lhe a tarefa de promover e coordenar as várias iniciativas vocacionais [114].

O Bispo sabe que pode contar, em primeiro lugar, com a colaboração do seu presbitério. Todos os sacerdotes são solidários com ele e corresponsáveis na procura e promoção das vocações presbiterais. De facto, como afirma o Concílio, "cabe aos sacerdotes, como educadores da fé, cuidar por si, ou por meio de outros, para que cada fiel seja levado, no Espírito Santo, a cultivar a própria vocação " [115]. É esta "uma função que faz parte da própria missão sacerdotal, em virtude da qual o presbítero é feito participante da solicitude de toda a Igreja, para que jamais faltem na terra operários para o Povo de Deus" [116]. A própria vida dos padres, a sua dedicação incondicional ao rebanho de Deus, o seu testemunho de amoroso serviço ao Senhor e à sua Igreja - testemunho assinalado pela opção da cruz acolhida na esperança e na alegria pascal -, a sua concórdia fraterna e o seu zelo pela evangelização do mundo são o primeiro e mais persuasivo factor de fecundidade vocacional [117].

Uma responsabilidade particularíssima está confiada à família cristã que, em virtude do sacramento do matrimónio, participa, de modo próprio e original, na missão educativa da Igreja mestra e mãe. Como disseram os Padres sinodais, "a família cristã - que é verdadeiramente 'como que a igreja doméstica' (Lumen gentium, 11) - sempre ofereceu e continua a oferecer as condições favoráveis para o desabrochar das vocações. Porque a imagem da família cristã se encontra hoje em perigo, deve atribuir-se grande importância à pastoral familiar, de modo que as próprias famílias, ao acolher generosamente o dom da vida humana, sejam 'como que o primeiro seminário' (Optatam totius, 2) onde os filhos possam adquirir desde o início o sentido da piedade e da oração, e o amor à Igreja" [118]. Em continuidade e sintonia com a obra dos pais e da família, deve colocar-se a escola, que é chamada a viver a sua identidade de "comunidade educadora" com uma proposta cultural também capaz de irradiar luz sobre a dimensão vocacional como valor conatural e fundamental da pessoa humana. Nesse sentido, se for oportunamente enriquecida de espírito cristão (seja através de significativas presenças eclesiais na escola estatal, segundo as várias leis nacionais, seja sobretudo no caso da escola católica), pode infundir no ânimo das crianças e dos jovens o desejo de cumprir a vontade de Deus no estado de vida mais idóneo para cada um, sem nunca excluir a vocação ao ministério sacerdotal" [119].

Também os leigos, em particular, os catequistas, professores, educadores, animadores da pastoral juvenil, cada um segundo os recursos e modalidades próprias, têm uma grande importância na pastoral das vocações sacerdotais: quanto mais aprofundarem o sentido da sua vocação e missão na Igreja, tanto melhor poderão reconhecer o valor e carácter insubstituível da vocação e da missão presbiteral.

No âmbito das comunidades diocesanas e paroquiais, são de estimar e promover aqueles grupos vocacionais cujos membros oferecem o seu contributo de oração e de sacrifício pelas vocações sacerdotais e religiosas, senão mesmo de sustento moral e material.

Deveremos recordar aqui também os grupos, movimentos e associações de fiéis leigos que o Espírito Santo faz surgir e crescer na Igreja, em ordem a uma presença cristã mais missionária no mundo. Estas diversas agregações de leigos estão-se revelando como campo particularmente fértil para a manifestação de vocações consagradas, verdadeiros e próprios lugares de proposta e de crescimento vocacional. Muitos jovens, de facto, precisamente no âmbito e graças a estes grupos, advertiram o chamamento do Senhor a segui-Lo no caminho do sacerdócio ministerial [120] e responderam com reconfortante generosidade. São, portanto, de valorizar, para que, em comunhão com toda a Igreja e para seu crescimento, dêem o seu específico contributo para o desenvolvimento da pastoral vocacional.

As várias componentes e os diversos membros da Igreja empenhados na pastoral vocacional tornarão tanto mais eficaz a sua obra quanto mais estimularem a comunidade eclesial como tal, a começar pela paróquia, a sentir que o problema das vocações sacerdotais não pode ser minimamente delegado em alguns "encarregados" (os sacerdotes em geral, e mais especialmente os sacerdotes dos seminários), porque, sendo "um problema vital que se coloca no próprio coração da Igreja" [121], deve estar no centro do amor de cada cristão pela Igreja.