A g n u s D e i

ORIENTALE LUMEN
João Paulo II
02.05.1995

I
CONHECER O ORIENTE CRISTÃO:
UMA EXPERIÊNCIA DE FÉ

5. «No estudo da verdade revelada, o Oriente e o Ocidente usaram métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. Não admira, por isso, que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um que por outro. Nestes casos, deve dizer-se que aquelas várias fórmulas teológicas, em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente» (10).

Tendo no coração as perguntas, as aspirações e as experiências a que fiz referência, a minha mente dirige-se ao património cristão do Oriente. Não é minha intenção descrevê-lo nem interpretá-lo: coloco-me em atitude de escuta das Igrejas do Oriente, sabendo que são intérpretes vivas do tesouro tradicional que guardam. Contemplando-o, vejo aparecer elementos de grande significado para uma compreensão mais plena e integral da experiência cristã, e, portanto, para dar uma resposta cristã mais completa aos anseios dos homens e das mulheres de hoje. Em relação a qualquer outra cultura, o Oriente cristão tem, de facto, um papel único e privilegiado enquanto contexto original da Igreja nascente.

A tradição oriental cristã implica certa maneira de acolher, compreender e viver a fé no Senhor Jesus. Nesse sentido, ela está muitíssimo perto da tradição cristã do Ocidente, que nasce e se alimenta da mesma fé. E, contudo, diferencia-se legítima e admiravelmente, enquanto o cristão oriental tem uma forma própria de sentir e compreender, e, portanto, também uma forma original de viver a sua relação com o Salvador. Quero, aqui, abeirar-me com temor e tremor do acto de adoração que exprimem estas Igrejas, mais do que assinalar este ou aquele ponto teológico específico, que emergiu ao longo dos séculos em contraposição polémica no debate entre Ocidentais e Orientais.

O Oriente cristão, desde as suas origens, mostra-se multiforme no próprio interior, capaz de assumir os traços característicos de cada cultura individual, e com um respeito máximo por cada comunidade particular. Não podemos deixar de agradecer a Deus, com profunda comoção, a admirável variedade com que permitiu a composição, com tesselas diferentes, de um mosaico tão rico e variegado.

6. Existem alguns traços da tradição espiritual e teológica, comuns às várias Igrejas do Oriente, que distinguem a sua sensibilidade, em relação às formas assumidas pela transmissão do Evangelho, nas terras do Ocidente. O Concílio Vaticano II sintetiza-as da seguinte maneira: «É conhecido de todos com quanto amor os cristãos orientais realizam as cerimónias litúrgicas, principalmente a celebração eucarística, fonte da vida da Igreja e penhor da glória futura, pela qual os fiéis unidos ao bispo, tendo acesso a Deus Pai mediante o Filho, o Verbo encarnado, morto e glorificado, na efusão do Espírito Santo, conseguem a comunhão com a Santíssima Trindade, feitos "participantes da natureza divina" (2 Ped 1, 4)» (11).

Nestes traços, delineia-se a visão oriental do cristão, cujo fim é a participação na natureza divina, mediante a comunhão no mistério da Santíssima Trindade. Ali se delineiam a «monarquia» do Pai e a concepção da salvação segundo a economia que apresenta a teologia oriental na linha de Santo Ireneu de Lião e como se espelha nos Padres Capadócios (12).

A participação na vida trinitária realiza-se através da liturgia e, de maneira particular, através da Eucaristia, mistério de comunhão com o corpo glorificado de Cristo, semente de imortalidade (13). Na divinização e sobretudo nos sacramentos, a teologia oriental atribui um papel muito particular ao Espírito Santo: pela força do Espírito que habita no homem, a deificação inicia-se já na Terra, a criatura é transfigurada, e o Reino de Deus inaugurado.

O ensinamento dos Padres Capadócios sobre a divinização entrou na tradição de todas as Igrejas Orientais e constitui parte do seu património comum. Isto pode-se resumir no pensamento já expresso por Santo Ireneu, em finais do século II: Deus fez-Se filho do homem, para que o homem pudesse ser filho de Deus (14). Esta teologia da divinização permanece uma das aquisições particularmente queridas do pensamento cristão oriental (15).

Neste caminho de divinização, precedem-nos aqueles que a graça e o empenho no caminho do bem tornaram «muito semelhantes» a Cristo: os mártires e os santos (16). E, entre estes, ocupa um lugar muito particular a Santíssima Virgem Maria, da qual germinou o Rebento de Jessé (cf. Is 11, 1). A sua figura aparece não só como a Mãe que nos espera, mas também como a Puríssima que — realização de tantas prefigurações do Antigo Testamento — é ícone da Igreja, símbolo e antecipação da humanidade transfigurada pela graça, modelo e esperança segura para todos aqueles que dirigem os seus passos para a Jerusalém do Céu (17).

Embora acentuando fortemente o realismo trinitário e a sua implicação na vida sacramental, o Oriente associa a fé na unidade da natureza divina à incognoscibilidade da essência divina. Os Padres Orientais afirmam sempre que é impossível saber o que é que Deus é; pode saber-se apenas que Ele é, pois que Se revelou na história da salvação como Pai, Filho e Espírito Santo (18).

Este sentido da inefável realidade divina reflecte-se na celebração litúrgica, onde o sentido do mistério é apreendido tão fortemente por todos os fiéis do Oriente cristão.

«No Oriente, encontram-se as riquezas daquelas tradições espirituais que o monaquismo, sobretudo, expressou. Pois, desde os gloriosos tempos dos Santos Padres, floresceu no Oriente aquela elevada espiritualidade monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente e da qual a vida religiosa dos Latinos se originou como de sua fonte, e em seguida, sem cessar, recebeu novo vigor. Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se abeirem com mais frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente, que elevam o homem todo à contemplação das coisas divinas» (19).

Evangelho, Igrejas e culturas

7. Já outras vezes pus em evidência que um primeiro grande valor vivido particularmente no Oriente cristão consiste na atenção aos povos e às suas culturas, para que a Palavra de Deus e o seu louvor possam ressoar em todas as línguas. Sobre este tema, já me detive na carta encíclica Slavorum Apostoli, pondo em relevo que Cirilo e Metódio «quiseram tornar-se semelhantes, sob todos os aspectos, àqueles a quem levavam o Evangelho; procuraram integrar-se naqueles povos e compartilhar em tudo a sua sorte» (20); «tratava-se de um novo método de catequese» (21). Agindo assim, eles manifestaram uma atitude muito difundida no Oriente cristão: «Ao encarnarem o Evangelho na cultura peculiar dos povos que evangelizavam, os Santos Cirilo e Metódio tiveram méritos particulares na formação e no desenvolvimento dessa mesma cultura, ou, melhor dito, de numerosas culturas» (22). O respeito e consideração pelas culturas particulares unem-se neles à paixão pela universalidade da Igreja, que incansavelmente se esforçam por realizar. A atitude dos dois irmãos de Salonica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas Igrejas: a revelação anuncia-se adequadamente e torna-se plenamente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e estes podem ler a Escritura e cantar a Liturgia na respectiva língua e com as suas expressões características, como que a renovar os prodígios do Pentecostes.

Numa época em que se reconhece ser cada vez mais fundamental o direito de cada povo se exprimir segundo o próprio património de cultura e de pensamento, a experiência das várias Igrejas do Oriente apresenta-se-nos como um exemplo autorizado de inculturação bem sucedida.

A partir deste modelo, aprendemos que, se queremos evitar o renascimento de particularismos e também de nacionalismos exacerbados, devemos compreender que o anúncio do Evangelho deve ser, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na especificidade das culturas e aberto para confluir numa universalidade, que é permuta para o enriquecimento comum.

Entre memória e expectativa

8. Hoje, muitas vezes, sentimo-nos prisioneiros do presente: é como se o homem tivesse perdido a percepção de fazer parte de uma história que o precede e o segue. A esta dificuldade de situar-se entre passado e futuro, com espírito grato pelos benefícios recebidos e pelos esperados, as Igrejas do Oriente, em particular, oferecem um acentuado sentido da continuidade, que assume os nomes de Tradição e de expectativa escatológica.

A Tradição é património da Igreja de Cristo, memória viva do Ressuscitado, encontrado e testemunhado pelos Apóstolos, que transmitiram a sua recordação viva aos sucessores, numa linha ininterrupta que é garantida pela sucessão apostólica, através da imposição das mãos, até aos Bispos de hoje. A Tradição articula-se no parimónio histórico e cultural de cada Igreja, nela plasmado pelo testemunho dos Mártires, dos Padres e dos Santos, bem como pela fé viva de todos os cristãos, ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Não se trata de uma repetição rígida de fórmulas, mas de um património que guarda o núcleo querigmático vivo e original. É a Tradição que livra a Igreja do perigo de recolher apenas opiniões mutáveis, e garante a sua certeza e continuidade.

Quando os usos e costumes próprios de cada Igreja são entendidos como pura imobilidade, certamente corre-se o risco de tirar à Tradição aquele carácter de realidade viva, que cresce e se desenvolve, e que o Espírito lhe garante precisamente para que ela fale aos homens de todos os tempos. E como a Escritura cresce com quem a lê (23), assim qualquer outro elemento do património vivo da Igreja cresce na compreensão dos crentes e enriquece-se de contributos novos, na fidelidade e na continuidade (24). Somente uma zeloza assimilação, na obediência da fé, daquilo que a Igreja chama «Tradição», permitirá a esta encarnar-se nas diferentes situações e condições histórico-culturais (25). A Tradição não é jamais pura nostalgia de coisas ou formas passadas, ou lamento de privilégios perdidos, mas memória viva da Esposa mantida eternamente jovem pelo amor que nela habita.

Se a Tradição nos coloca em continuidade com o passado, a expectativa escatológica abre-nos ao futuro de Deus. Cada Igreja deve lutar contra a tentação de absolutizar aquilo que faz e, portanto, de autocelebrar-se ou de abandonar-se à tristeza. O tempo é de Deus, e tudo aquilo que se realiza nunca se identifica com a plenitude do Reino, que é sempre dom gratuito. O Senhor Jesus veio morrer por nós e ressuscitou dos mortos, enquanto a criação, salva na esperança, sofre ainda as dores de parto (cf. Rm 8, 22); o mesmo Senhor voltará para entregar o cosmos ao Pai (cf. 1 Cor 15, 28). A Igreja invoca este retorno, e dele são testemunhas privilegiadas o monge e o religioso.

O Oriente exprime de maneira viva as realidades da tradição e da expectativa. Toda a sua liturgia, em particular, é memorial da salvação e invocação do retorno do Senhor. E, se a Tradição ensina às Igrejas a fidelidade àquilo que as gerou, a expectativa escatológica leva-as a serem aquilo que ainda não são em plenitude e em que o Senhor deseja que se tornem, e a procurarem, portanto, sempre novos caminhos de fidelidade, vencendo o pessimismo porque projectadas para a esperança de Deus que não desilude.

Devemos mostrar aos homens a beleza do memorial, a força que nos vem do Espírito e que nos torna testemunhas porque somos filhos de testemunhas; fazer-lhes saborear as coisas maravilhosas que o Espírito disseminou na História; mostrar que é precisamente a Tradição que as conserva, dando, assim, esperança àqueles que, não tendo visto coroados de êxito os seus esforços de bem, sabem que outros os levarão a cabo; então o homem sentir-se-á menos só, menos fechado no canto estreito das suas acções individuais.

O monaquismo como paradigma de vida baptismal

9. Desejaria agora olhar para o vasto panorama do cristianismo do Oriente, a partir de uma altitude particular, que permite distinguir muitos dos seus traços: o monaquismo.

No Oriente, o monaquismo conservou uma grande unidade, não conhecendo, como no Ocidente, a formação dos diferentes tipos de vida apostólica. As várias expressões da vida monástica, desde o rígido cenobismo, como o concebiam os santos Pacómio e Basílio, até ao eremitismo mais rigoroso de Santo Antão ou de S. Macário o Egípcio, correspondem mais a fases diferentes do caminho espiritual do que à escolha entre diferentes estados de vida. De facto, todos fazem apelo ao monaquismo em si, qualquer que seja a forma com a qual se exprima.

Além disso, o monaquismo não foi visto no Oriente apenas como uma condição à parte, própria de uma categoria de cristãos, mas particularmente como ponto de referência para todos os baptizados, na medida dos dons oferecidos a cada um pelo Senhor, propondo-se como uma síntese emblemática do cristianismo.

Quando Deus chama de uma forma total como na vida monástica, então a pessoa pode atingir o ponto mais elevado de tudo aquilo que a sensibilidade, cultura e espiritualidade são capazes de exprimir. Isto é válido com maior razão para as Igrejas Orientais, nas quais o monaquismo constituiu uma experiência essencial e que ainda hoje floresce nelas, logo que termina a perseguição e os corações podem elevar-se livremente para os Céus. O mosteiro é o lugar profético no qual a criação se torna louvor de Deus, e o preceito da caridade, vivida concretamente, se torna ideal de convivência humana, e onde o ser humano procura Deus sem barreiras nem impedimentos, tornando-se referência para todos, levando-os no coração e ajudando-os a procurar Deus.

Desejaria recordar também o fulgurante testemunho das monjas no Oriente cristão. Ele representa um modelo de valorização da especificidade feminina na Igreja, forçando mesmo a mentalidade do tempo. Durante recentes perseguições, sobretudo nos países do Leste europeu, quando muitos mosteiros masculinos foram encerrados à força, o monaquismo feminino conservou acesa a chama da vida monástica. O carisma da monja, com as características que lhe são específicas, é um sinal visível daquela maternidade de Deus à qual muitas vezes alude a Sagrada Escritura.

Por isso considerarei o monaquismo, para nele especificar aqueles valores que hoje tenho por muito importantes para exprimir o contributo do Oriente cristão para o caminhar da Igreja de Cristo em direcção ao Reino. Estes aspectos, embora às vezes não sejam exclusivos, quer da experiência monástica, quer do património do Oriente, todavia frequentemente adquiriram nele uma conotação particular. De resto, o que procuramos valorizar, não é a exclusividade, mas o enriquecimento recíproco naquilo que o único Espírito suscitou na única Igreja de Cristo.

O monaquismo foi desde sempre a própria alma das Igrejas Orientais: os primeiros monges cristãos nasceram no Oriente e a vida monástica foi parte integrante da lumen oriental transmitida ao Ocidente pelos grandes Padres da Igreja indivisa (26).

Os fortes traços comuns que unem a experiência monástica do Oriente e do Ocidente tornam-na uma ponte admirável de fraternidade, onde a unidade vivida resplandece até mais do que se pode manifestar no diálogo entre as Igrejas.

Entre Palavra e Eucaristia

10. O monaquismo revela de maneira particular que a vida está suspensa entre dois vértices: a Palavra e a Eucaristia. Isto significa que ele é sempre, inclusive nas suas formas eremíticas, resposta pessoal a uma chamada individual e simultaneamente acontecimento eclesial e comunitário.

A palavra de Deus é o ponto de partida do monge: uma Palavra que chama, que convida, que pessoalmente interpela, como aconteceu com os Apóstolos. Quando uma pessoa é atingida pela Palavra, nasce a obediência, isto é, a escuta que muda a vida. Diariamente o monge alimenta-se com o pão da Palavra. Privado dele, é como se estivesse morto, e não tem mais nada para comunicar aos irmãos, porque a Palavra é Cristo com quem é chamado a conformar-se.

Mesmo quando canta com os seus irmãos a oração que santifica o tempo, ele continua a sua assimilação da Palavra. A riquíssima hinografia litúrgica, da qual justamente se sentem orgulhosas todas as Igrejas do Oriente cristão, não é senão a continuação da Palavra lida, compreendida, assimilada e finalmente cantada: aqueles hinos são em grande parte paráfrases sublimes do texto bíblico, filtradas e personalizadas através da experiência do indivíduo e da comunidade.

Perante o abismo da misericórdia divina, ao monge não resta senão proclamar a consciência da própria pobreza radical, que imediatamente se torna invocação e grito de júbilo por uma salvação ainda mais generosa porque inesperada no abismo da própria miséria (27). Eis porque a invocação de perdão e a glorificação de Deus constituem a substância de grande parte da oração litúrgica. O cristão vive imerso no assombro deste paradoxo, o último de uma série infinita, toda ela enobrecida de reconhecimento na linguagem da liturgia: o Imenso torna-se limite; uma Virgem dá à luz; através da morte, Aquele que é a vida vence a morte para sempre; no alto dos Céus, um corpo humano está sentado à direita do Pai.

No apogeu desta experiência orante, está a Eucaristia, o outro vértice ligado indissoluvelmente à Palavra, enquanto lugar no qual a Palavra se faz Carne e Sangue, experiência celeste onde ela volta a ser acontecimento.

Na Eucaristia, manifesta-se a natureza profunda da Igreja, comunidade dos convocados à sinapse para celebrar o dom d'Aquele que é oferente e oferta: eles, participando nos Santos Mistérios, tornam-se «consanguíneos» (28) de Cristo, antecipando a experiência da divinização no laço, já inseparável, que, em Cristo, liga divindade e humanidade.

Mas a Eucaristia é também aquilo que antecipa a pertença de homens e coisas à Jerusalém celeste. Revela assim cabalmente a sua natureza escatológica: como sinal vivo de tal expectativa, o monge continua e leva à plenitude na liturgia a invocação da Igreja, a Esposa que suplica o retorno do Esposo num «maranatha» repetido continuamente, não só com palavras, mas com a existência inteira.

Uma liturgia para o homem inteiro e para o cosmos inteiro

11. Na experiência litúrgica, Cristo Senhor é a luz que ilumina o caminho e desvenda a transparência do cosmos, precisamente como na Escritura. Os acontecientos do passado encontram em Cristo significado e plenitude, e a criação revela-se por aquilo que é: um conjunto de traços que somente na liturgia encontram a sua perfeição, a sua plena finalidade. Eis o motivo pelo qual a liturgia é o Céu sobre a Terra, e nela o Verbo que assumiu a carne envolve a matéria de uma potencialidade salvífica que se manifesta plenamente nos sacramentos: aqui a criação comunica a cada um o poder que lhe foi conferido por Cristo. Assim o Senhor, imerso no Jordão, transmite às águas um poder que as habilita a serem banho de regeneração baptismal (29).

Neste quadro, a oração litúrgica no Oriente mostra uma grande capacidade de envolver a pessoa humana na sua totalidade: o Mistério é cantado na sublimidade dos seus conteúdos, mas também no calor dos sentimentos que suscita no coração da humanidade que foi salva. Na acção sagrada, também a corporeidade é convidada ao louvor, e a beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada (30), mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores, nas luzes, nos perfumes. O tempo prolongado das celebrações, a repetida invocação, tudo exprime um progressivo compenetrar-se da pessoa inteira no mistério celebrado. E a oração da Igreja torna-se, assim, já participação da liturgia celeste, antecipação da bem-aventurança final.

Esta valorização integral da pessoa nos seus componentes racionais e emotivos, no «êxtase» e na imanência, é de grande actualidade, constituindo uma escola admirável para a compreensão do significado das realidades criadas: estas nem são um absoluto, nem um ninho de pecado e de iniquidade. Na liturgia, as coisas manifestam a sua própria natureza de dom, oferecido pelo Criador à humanidade: «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). Se tudo isto está marcado pelo drama do pecado, que torna pesada a matéria e dificulta a sua transparência, ela é redimida na Encarnação e feita plenamente teofórica, isto é, capaz de colocar-nos em relação com o Pai: esta propriedade é sumamente manifestada nos Santos Mistérios, os Sacramentos da Igreja.

O Cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra a sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se ao Senhor Jesus, feito também Ele corpo para a salvação do mundo. Isto não significa uma exaltação absoluta de tudo aquilo que é físico, porque sabemos bem a desordem que o pecado introduziu na harmonia do ser humano. A liturgia revela que o corpo, atravessando o mistério da Cruz, está a caminho da transfiguração, da pneumatização: no monte Tabor, Cristo mostra-o resplandecente, como é desejo do Pai que volte a ser.

E também a realidade cósmica é chamada a dar acção de graças, porque o cosmos inteiro é chamado à recapitulação em Cristo Senhor. Manifesta-se nesta concepção um ensinamento equilibrado e admirável sobre a dignidade, o respeito e a finalidade da criação e do corpo humano em particular. Este, tendo rejeitado igualmente todo o tipo de dualismo e todo o tipo de culto do prazer como fim em si próprio, torna-se lugar luminoso da graça e, portanto, plenamente humano.

A quem procura uma relação de autêntico significado consigo próprio e com o cosmos, tantas vezes ainda desfigurado pelo egoísmo e pela cobiça, a liturgia revela o caminho para o equilíbrio do homem novo e convida ao respeito pela potencialidade eucarística do mundo criado: ele está destinado a ser assumido na Eucaristia do Senhor, na sua Páscoa presente no sacrifício do altar.

Um olhar límpido à descoberta de si próprio

12. Para Cristo, o Homem-Deus, volta-se o olhar do monge: no seu rosto desfigurado, homem da dor, ele já divisa o anúncio profético do rosto transfigurado do Ressuscitado. Ao olhar contemplativo, Cristo revela-Se como às mulheres de Jerusalém, que subiram a contemplar o espectáculo misterioso do Calvário. E assim, formado naquela escola, o olhar do monge habitua-se a contemplar Cristo também nas pregas escondidas da criação e na história dos homens, também ela inserida na sua conformação progressiva ao Cristo total.

O olhar, progressivamente cristificado, aprende desta maneira a separar-se da exterioridade, do turbilhão dos sentidos, isto é, de tudo aquilo que impede ao homem aquela suave disponibilidade a deixar-se agarrar pelo Espírito. Percorrendo este caminho, ele deixa-se reconciliar com Cristo num processo incessante de conversão: na consciência do próprio pecado e do afastamento do Senhor, que se torna contrição do coração, símbolo do próprio baptismo na água salutar das lágrimas; no silêncio e na quietude interior procurada e doada, onde se aprende a fazer bater o coração de harmonia com o ritmo do Espírito, eliminando toda a duplicidade ou ambiguidade. Este tornar-se cada vez mais sóbrio e essencial, mais transparente a si próprio, pode fazê-lo cair no orgulho e na intransigência, se chegar a considerar que isso é fruto do seu esforço ascético. O discernimento espiritual, na purificação contínua, torna-o então humilde e manso, capaz de perceber apenas alguns traços daquela verdade que o sacia, porque é dom do Esposo, somente Ele plenitude de felicidade.

Ao homem que procura o significado da vida, o Oriente oferece esta escola para se conhecer e ser livre, amado por aquele Jesus que disse: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar- vos-ei» (Mt 11, 28). A quem procura o restabelecimento interior, ele convida a continuar a procurar: se a intenção é recta e o rumo honesto, no fim o rosto do Pai far-se-á reconhecer, pois está impresso nas profundidades do coração humano.

Um pai no Espírito

13. O percurso do monge, em geral, não é traçado unicamente pelo esforço pessoal, mas apoia-se num pai espiritual, a quem se abandona com confiança filial, na certeza de que nele se manifesta a terna e exigente paternidade de Deus. Esta figura dá ao monaquismo oriental uma extraordinária maleabilidade: graças à obra do pai espiritual, o caminho de cada monge é, de facto, fortemente personalizado nos tempos, nos ritmos, na maneira de procurar a Deus. Precisamente porque o pai espiritual é o ponto de ligação e de harmonização, isto permite ao monaquismo a maior variedade de expressões, cenobíticas e eremíticas. Desta maneira, o monaquismo no Oriente pôde ser a realização das expectativas de cada Igreja nos diferentes períodos da sua história (31).

Nesta procura, o Oriente ensina de maneira particular que existem irmãos e irmãs a quem o Espírito dispensou o dom de guia espiritual: eles são pontos de referência preciosos, porque vêem com o olhar de amor que Deus mantém sobre nós. Não se trata de renunciar à própria liberdade, para se deixar governar por outros: trata-se de tirar proveito do conhecimento do coração, que é um verdadeiro carisma, para ser ajudado, com doçura e firmeza, a encontrar o caminho da verdade. O nosso mundo tem uma necessidade extrema de pais espirituais. Muitas vezes recusou-os, porque lhe pareciam pouco credíveis, ou o seu modelo aparecia como já superado e pouco atraente para a sensibilidade comum. Contudo tem dificuldade em encontrar outros novos, e então sofre no medo e na incerteza, sem modelos nem pontos de referência. Aquele que é pai no Espírito, se o é verdadeiramente — e o povo de Deus mostrou sempre que sabe reconhecê-lo —, não fará os outros iguais a si próprio, mas ajudá-los-á a encontrar o caminho para o Reino.

Certamente, também ao Ocidente é concedido o dom admirável de uma vida monástica, masculina e feminina, que guarda o dom do guia no Espírito e espera ser valorizado. Nesse âmbito, e onde quer que a graça suscite tais instrumentos preciosos de amadurecimento interior, possam os responsáveis cultivar e valorizar tal dom e todos possam servir-se dele: experimentarão assim a consolação e apoio que é a paternidade no Espírito para o seu caminho de fé (32).

Comunhão e serviço

14. Precisamente na separação progressiva daquilo que no mundo lhe dificulta a comunhão com o seu Senhor, o monge reencontra o mundo como lugar onde se reflecte a beleza do Criador e o amor do Redentor. Na sua oração, o monge pronuncia uma epiclese do Espírito sobre o mundo e tem a certeza de que será ouvido, porque ela participa da mesma oração de Cristo. Deste modo, ele sente nascer em si um amor profundo pela humanidade, aquele amor que a oração, no Oriente, tantas vezes celebra como atributo de Deus, o Amigo dos homens, que não hesitou em oferecer o seu Filho para a salvação do mundo. Nesta atitude, é então concedido ao monge contemplar aquele mundo já transfigurado pela acção deificante de Cristo, morto e ressuscitado.

Seja qual for a modalidade que o Espírito lhe reserva, o monge é sempre e essencialmente o homem da comunhão. Com este nome se indicou também desde a antiguidade o estilo monástico da vida cenobítica. O monaquismo mostra-nos como não existe vocação autêntica que não tenha nascido da Igreja e para a Igreja. Disso é testemunha a experiência de tantos monges que, fechados nas suas celas, mostram nas suas orações uma paixão exraordinária, não só pela pessoa humana, mas por todas as criaturas, na invocação incessante para que tudo se converta à corrente salvadora do amor de Cristo. Este caminho de libertação interior na abertura ao Outro torna o monge o homem da caridade. Na escola do apóstolo Paulo, que indica a plenitude da lei na caridade (cf. Rm 13, 10), a comunhão monástica oriental esteve sempre atenta a garantir a superioridade da caridade em relação a qualquer lei.

Ela manifesta-se, antes de mais, no serviço aos irmãos na vida monástica, mas também à comunidade eclesial, segundo formas que variam nos tempos e nos lugares e que vão das obras sociais à pregação itinerante. As Igrejas do Oriente viveram com grande generosidade este empenho, a começar pela evangelização, que é o serviço mais elevado que o cristão pode oferecer ao irmão, para prosseguir em muitas outras formas de serviço espiritual e material. Mais, pode-se dizer que o monaquismo foi na antiguidade — e, com interrupções, também em tempos posteriores — o instrumento privilegiado para a evangelização dos povos.

Uma pessoa em relação

15. A vida do monge justifica a unidade que existe entre espiritualidade e teologia no Oriente.

O cristão, e o monge em particular, mais do que procurar verdades abstractas, sabe que somente o seu Senhor é Verdade e Vida, mas sabe também que ele é o Caminho (cf. Jo 14, 6) para atingir a ambas: conhecimento e participação são, portanto, uma única realidade: da pessoa ao Deus em três Pessoas, através da Encarnação do Verbo de Deus.

O Oriente ajuda-nos a delinear com grande riqueza de elementos o significado cristão da pessoa humana. Ele está centrado na Encarnação, da qual recebe luz a própria criação. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, manifesta-se a plenitude da vocação humana: para que o homem se tornasse Deus, o Verbo assumiu a humanidade. O homem que conhece continuamente o gosto amargo do seu limite e do seu pecado, não se perde na recriminação ou na angústia, porque sabe que dentro de si actua o poder da divindade. A humanidade foi assumida por Cristo sem separação da natureza divina nem confusão (33), e o homem não é deixado sozinho a tentar, de mil maneiras e muitas vezes frustradas, uma subida impossível ao Céu; existe um tabernáculo de glória, que é a Pessoa santíssima de Jesus, o Senhor, onde o divino e o humano se encontram num abraço que nunca poderá ser desfeito: o Verbo fez-Se carne, em tudo semelhante a nós, excepto no pecado. Ele derrama a divindade no coração doente da humanidade e, infundindo-lhe o Espírito do Pai, torna-a capaz de tornar-se Deus pela graça.

Mas, se isto nos foi revelado pelo Filho, então a nós é concedido abeirar-nos do mistério do Pai, princípio de comunhão no amor. A Trindade Santíssima aparece-nos então como comunidade de amor: conhecer um tal Deus significa sentir a urgência de que Ele fale ao mundo, que comunique; e a história da salvação não é senão a história do amor de Deus pela criatura, que Ele amou e escolheu, querendo-a «como o ícone do Ícone» — assim se exprime a intuição dos Padres orientais (34) —, isto é, plasmada à imagem da Imagem, que é o Filho, conduzida à comunhão perfeita pelo santificador, o Espírito de amor. E mesmo quando o homem peca, este Deus procura-o e ama-o, para que a relação não seja rompida e o amor continue a fluir. E ama-o no mistério do Filho, que Se deixa matar na cruz por um mundo que não O reconheceu, mas é ressuscitado pelo Pai, como garantia perene de que ninguém pode matar o amor, porque todo aquele que dele participa é atingido pela glória de Deus: é este homem transformado pelo amor, que os discípulos contemplaram no Tabor, o homem que todos nós somos chamados a ser.

Um silêncio que adora

16. Contudo, este mistério esconde-se continuamente, cobre-se de silêncio 35, para evitar que, em vez de Deus, seja construído um ídolo. Somente numa purificação progressiva do conhecimento de comunhão, o homem e Deus se encontrarão e reconhecerão, no abraço eterno, a sua nunca extinta conaturalidade de amor.

Nasce assim aquele que é chamado o apofatismo do Oriente cristão: quanto mais o homem cresce no conhecimento de Deus, mais O percebe como mistério inacessível, insondável na sua essência. Isto não se deve confundir com um misticismo obscuro, onde o homem se perde em enigmáticas realidades impessoais. Antes, os cristãos do Oriente dirigem-se a Deus como Pai, Filho, Espírito Santo, Pessoas vivas, carinhosamente presentes, às quais exprimem uma doxologia litúrgica solene e humilde, majestosa e simples. Eles, porém, percebem que nos aproximamos desta presença sobretudo deixando-nos educar para um silêncio de adoração, porque, no ápice do conhecimento e da experiência de Deus, está a sua transcendência absoluta. Mais do que através de uma meditação sistemática, chega-se a um tal silêncio mediante a assimilação orante da Escritura e da Liturgia.

Nesta humilde aceitação do limite da criatura perante a transcendência infinita de um Deus que não cessa de revelar-Se como o Deus-Amor, Pai do Senhor nosso Jesus Cristo, no júbilo do Espírito Santo, vejo expressa a atitude da oração e o método teológico que o Oriente prefere e continua a oferecer a todos os crentes em Cristo.

Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora: a teologia, para poder valorizar plenamente a própria alma sapiencial e espiritual; a oração, para que nunca esqueça que ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante que seremos obrigados a cobri-lo com um véu (cf. Êx 34, 33) e para que as nossas assembleias saibam dar espaço à presença de Deus, evitando a celebração de si próprias; a pregação, para que não se iluda julgando suficiente multiplicar palavras para atrair a experiência de Deus; o compromisso, para renunciar a fechar-se numa luta sem amor e perdão. Dele precisa o homem de hoje, que muitas vezes não sabe calar-se com medo de ter de enfrentar-se consigo mesmo, de revelar-se, de sentir o vazio que se torna ânsia de significado; o homem que se atordoa no barulho. Todos, crentes e não-crentes, precisam de aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra.