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Carta Apostólica
NOTRE CHARGE APOSTOLIQUE
sobre os erros do Sillon

II. REFUTAÇÃO DOS ERROS

Sobre a autoridade, a liberdade e a obediência

20. O Sillon coloca a autoridade pública primordialmente no povo, do qual deriva em seguida aos governantes, de tal modo, entretanto, que continua a residir nele. Ora, Leão XIII condenou formalmente esta doutrina em sua encíclica Diuturnum Illud (DP 12) sobre o Principado Político, onde diz: "Grande número de modernos seguindo as pegadas daqueles que, no século passado, se deram o nome de filósofos, declaram que todo o poder vem do povo; que em conseqüência aqueles que exercem o poder na sociedade não a exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade a eles delegada pelo povo e sob a condição de poder ser revogada pela vontade do povo, de quem eles a têm. Inteiramente contrário é o pensamento dos católicos, que fazem derivar de Deus o direito de mandar, como de seu princípio natural e necessário". Sem dúvida, o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro lugar no povo, mas de tal forma que "sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo" (Marc Sangnier, discurso de Rouen, 1907). Mas, além de ser anormal que a delegação suba, pois é próprio à sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de conciliação entre a doutrina católica e o erro do filosofismo. Pois prossegue: "É necessário observá-lo daqui: aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem bem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e o julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição com a doutrina católica. Mas, se esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele será investido".

21. De resto, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser da autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais lei propriamente dita, não há mais obediência. O Sillon o reconheceu; desde que, com efeito, reclama, em nome da dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, a cidade futura, para a qual trabalha, não mais terá mestres nem servidores; os cidadãos aí serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma ordem, um preceito, seria um atentado à liberdade; a subordinação a uma qualquer superioridade seria uma diminuição do homem, a obediência, uma degradação. É assim, Veneráveis Irmãos, que a doutrina tradicional da Igreja nos representa as relações sociais, mesmo na cidade mais perfeita possível? Não é verdade que toda sociedade de criaturas dependentes e desiguais por natureza tem necessidade de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem comum e imponha sua lei? E se, na sociedade, se encontram seres perversos (e sempre os haverá), a autoridade não deverá ser tanto mais forte quanto o egoísmo dos maus for mais ameaçador? Além disso, pode-se dizer, com uma aparência de razão sequer, que haja incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, sem que se cometa um erro grosseiro sobre o conceito da liberdade? Pode-se ensinar que a obediência é contrária à dignidade humana e o ideal seria substituí-la pela "autoridade consentida"? Será que o apóstolo S. Paulo não tinha em vista a sociedade humana, em todas as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis a submissão a toda autoridade? Será verdade que a obediência aos homens, enquanto representantes legítimos de Deus, quer dizer afinal de contas a obediência a Deus, rebaixa o homem e o avilta abaixo de si mesmo? Será que o estado religioso, fundado sobre a obediência, é contrário ao ideal da natureza humana? Será que os santos, que foram os mais obedientes dos homens, foram escravos e degenerados? Enfim, poder-se-ia imaginar um estado em que Jesus Cristo, de novo sobre a terra, não mais desse o exemplo de obediência e não mais dissesse: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?

Sobre a justiça e a igualdade

22. O Sillon, que ensina semelhantes doutrinas e as põe em prática em sua vida interna, semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só na democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma injúria às outras formas de governo que são rebaixadas, por este modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis! De resto o Sillon, ainda sobre este ponto, vai de encontro ao ensinamento de Leão XIII. Poderia Ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado Político que, "salvaguardada a justiça, aos povos não é interdito escolher o governo que melhor responda a seu caráter ou às instituições e costumes que receberam dos antepassados", e a Encíclica faz alusão à tríplice forma de governo bem conhecida. Supõe, portanto, que a justiça é comparável com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a justiça nas organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a justiça é compatível com as três formas de governo em questão, ensinava que, sob este aspecto, a Democracia não goza de um privilégio especial. Os "sillonistas", que pretendem o contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da igualdade um conceito que não é católico.

Sobre a fraternidade

23. O mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base colocam no amor dos interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa igual tolerância todos os homens com todas as suas misérias, tanto as intelectuais e morais como as físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam , nem da indiferença teórica e prática pelo erro ou o vício, em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não menos que por seu bem-estar material. Esta mesma doutrina católica nos ensina também que a fonte do amor do próximo se acha no amor de Deus, Pai comum e fim comum de toda a família humana, no amor de Jesus Cristo, do qual somos membros a tal ponto que consolar um infeliz é fazer o bem ao próprio Jesus Cristo. Qualquer outro amor é ilusão ou sentimento estéril e passageiro. Certamente, a experiência humana aí está, nas sociedades pagãs iy leigas de todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração dos interesses comuns ou da semelhança de natureza pesa muito pouco diante das paixões e concupiscências do coração. Não, Veneráveis Irmãos, não existe verdadeira fraternidade fora da caridade cristã, que, pelo amor de Deus e de seu Filho Jesus Cristo nosso Salvador, abrange todos os homens, para consolar todos, e para os conduzir todos à mesma fé e à mesma felicidade do céu. Separando a fraternidade da caridade cristã assim entendida, a democracia, longe de ser um progresso, constituiria um desastroso recuo para a civilização. Porque, se se chegar, e Nós o desejamos de toda a nossa alma, à maior soma possível de bem-estar para a sociedade e para cada um de seus membros pela fraternidade, ou, como se diz ainda, pela soliedaridade universal, é necessária a união dos espíritos na verdade, a união das vontades na moral, a união dos corações no amor de Deus e de seu filho Jesus Cristo. Ora, esta união só poderá ser realizada pela caridade católica, que é a única, por conseqüência, que pode conduzir os povos no caminho do progresso, para o ideal da civilização.

Sobre a dignidade humana

24. Enfim, na base de todas as falsificações das noções sociais fundamentais, o Sillon coloca uma falsa idéia da dignidade humana. Segundo ele, o homem só será verdadeiramente homem, digno desse nome, no dia em que adquirir uma consciência esclarecida, forte, independente, autônoma, podendo dispensar os mestres, só obedecendo a si própria, e capaz de assumir e desempenhar, sem falhas, as mais graves responsabilidades. Eis algumas destas grandes palavras com as quais se exalta o sentimento do orgulho humano; tal como um sonho, que arrasta o homem, sem luz, sem guia e sem auxílio, pelo caminho da ilusão, em que, esperando o grande dia da plena consciência, será devorado pelo erro e pelas paixões. E este grande dia, quando virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não está no poder do Sillon), virá ele alguma vez? Será que os santos, que levaram ao apogeu a dignidade humana, tiveram esta dignidade? E os humildes da terra, que não podem subir tão alto e se contentam com traçar modestamente seu sulco (tracer modestement son sillon) na classe social que lhes designou a Providência, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, na obediência e na paciência cristãs, não seriam eles dignos do nome de homens, aos quais o Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para colocar no céu, entre os príncipes de seu povo?

Suspendemos aqui nossas reflexões sobre os erros do Sillon. Não pretendemos esgotar o assunto, pois que ainda poderíamos chamar vossa atenção sobre outros pontos igualmente falsos e perigosos, por exemplo, sobre a maneira de compreender o poder coercitivo da Igreja. Importa, contudo, examinar agora a influência destes erros sobre a conduta prática do Sillon e sobre a sua ação social.