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DESENVOLVIMENTO
Petições para a definição dogmática
7. De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo
modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não
poucos Padres do concílio Vaticano pediram instantemente à Sé Apostólica esta
definição.
8. Com o decurso do tempo essas petições e votos não diminuíram, antes foram
aumentando de dia para dia em número e insistência. Com esse fim fizeram-se
cruzadas de orações; muitos e exímios teólogos intensificaram com ardor os seus
estudos sobre este ponto, quer em privado, quer nas universidades eclesiásticas
ou nas outras escolas de disciplinas sagradas; celebraram-se em muitas partes
congressos marianos nacionais e internacionais. Todos esses estudos e
investigações mostraram com maior realce que no depósito da fé cristã, confiado
à Igreja, também se encontrava a assunção da virgem Maria ao céu. E de
ordinário a conseqüência foi enviarem súplicas em que se pedia instantemente a
definição solene desta verdade.
9. Acompanhavam os fiéis nessa piedosa insistência os seus sagrados pastores,
os quais dirigiram a esta cadeira de S. Pedro semelhantes petições em número
muito considerável. Quando fomos elevado ao sumo pontificado, já tinham sido
apresentadas a esta Sé Apostólica muitos milhares dessas súplicas, vindas de
todas as partes do mundo e de todas as classes de pessoas: dos nossos amados
filhos cardeais do Sacro Colégio, dos nossos veneráveis irmãos arcebispos e
bispos, das dioceses e das paróquias.
10. Por esse motivo, ao mesmo tempo que dirigíamos a Deus intensas súplicas,
para que concedesse à nossa mente a luz do Espírito Santo para decidirmos tão
importante causa, estabelecemos normas especiais em que determinamos que se
procedesse com todo o cuidado a um estudo mais rigoroso da matéria, e se
reunissem e examinassem todas as petições relativas à assunção da santíssima
virgem, enviadas à Sé Apostólica desde o tempo do nosso predecessor de feliz
memória, Pio IX, até ao presente. (1)
Consulta ao episcopado
11. Mas como se tratava de assunto de tanta importância e transcendência,
julgamos oportuno rogar direta e oficialmente a todos os nossos veneráveis
irmãos no episcopado, que nos quisessem manifestar explicitamente a sua
opinião. Para tal fim, no dia 1° de maio de 1946, dirigimos-lhes a carta encíclica
«Deiparae Virginis Mariae» em que fazíamos esta pergunta: «Se vós, veneráveis
irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea
da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se
desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis».
Doutrina concorde do magistério da Igreja
12. E aqueles que «o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de
Deus» (At 20, 28) quase unanimemente deram resposta afirmativa a ambas as
perguntas. Essa «singular concordância dos bispos e fiéis» (2) em julgar que a
assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé,
mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé
igualmente concorde do povo cristão - que aquele magistério sustenta e dirige -
e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é
verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou
a sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. (3) De fato,
esse magistério da Igreja, não por estudo meramente humano, mas pela
assistência do Espírito de verdade (cf. Jo 14,26), e portanto absolutamente sem
nenhum erro, desempenha a missão que lhe foi confiada de conservar sempre
puras e íntegras as verdades reveladas; e pelo mesmo motivo transmite-as sem
contaminação e sem lhes ajuntar nem subtrair nada. «Pois - como ensina o
concílio Vaticano - o Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não
para que, por sua revelação, expressem doutrinas novas, mas para que, com sua
assistência, guardassem com cuidado e expusessem fielmente a revelação
transmitida pelos apóstolos, ou seja o depósito da fé». (4) Por essa razão, do
consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e
seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada virgem Maria.
Esse mistério, pelo que respeita à glorificação celestial do corpo da augusta Mãe
de Deus, não podia ser conhecido por nenhuma faculdade da inteligência humana
só com as forças naturais. E, portanto, verdade revelada por Deus, e por essa
razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois,
como afirma o mesmo concílio Vaticano, «temos obrigação de crer com fé divina e
católica, todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou
transmitida oralmente, e que a Igreja, com solene definição ou com o seu
magistério ordinário e universal, nos propõe para crer, como reveladas por Deus».
(5)
Testemunhos da crença na assunção
13. Desde tempos remotíssimos, pelo decurso dos séculos, aparecem-nos
testemunhos, indícios e vestígios desta fé comum da Igreja; fé que se manifesta
cada vez mais claramente.
14. Os fiéis, guiados e instruídos pelos pastores, souberam por meio da sagrada
Escritura que a virgem Maria, durante a sua peregrinação terrestre, levou vida
cheia de cuidados, angústias e sofrimentos; e que, segundo a profecia do santo
velho Simeão, uma espada de dor lhe traspassou o coração, junto da cruz do seu
divino Filho e nosso Redentor. E do mesmo modo, não tiveram dificuldade em
admitir que, à semelhança do seu unigênito Filho, também a excelsa Mãe de Deus
morreu. Mas essa persuasão não os impediu de crer expressa e firmemente que o
seu sagrado corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem foi reduzido à
podridão e cinzas aquele tabernáculo do Verbo divino. Pelo contrário, os fiéis
iluminados pela graça e abrasados de amor para com aquela que é Mãe de Deus e
nossa Mãe dulcíssima, compreenderam cada vez com maior clareza a maravilhosa
harmonia existente entre os privilégios concedidos por Deus àquela que o mesmo
Deus quis associar ao nosso Redentor. Esses privilégios elevaram-na a uma altura
tão grande, que não foi atingida por nenhum ser criado, excetuada somente a
natureza humana de Cristo.
15. Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos
consagrados a Deus em honra da assunção de nossa senhora, e as imagens neles
expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular
triunfo da santíssima Virgem. Muitas cidades, dioceses e regiões foram
consagradas ao especial patrocínio e proteção da assunção da Mãe de Deus. Do
mesmo modo, com aprovação da Igreja, fundaram-se Institutos religiosos com o
nome deste privilégio. Nem se deve passar em silêncio que no rosário de nossa
Senhora, cuja reza tanto recomenda esta Sé Apostólica, há um mistério proposto
à nossa meditação, que, como todos sabem, é consagrado à assunção da
santíssima Virgem ao céu.
Testemunho da liturgia
16. De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos
pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da assunção celebrada desde tempos
antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da
Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a
sagrada liturgia, «sendo também profissão das verdades católicas, e estando
sujeita ao supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e
testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina
cristã». (6)
17. Nos livros litúrgicos em que aparece a festa da Dormição ou da assunção de
Santa Maria, encontram-se expressões que de uma ou outra maneira concordam
em referir que, quando a virgem Mãe de Deus passou deste exílio para o céu, por
uma especial providência divina, sucedeu ao seu corpo algo de consentâneo com
a dignidade de Mãe do Verbo encarnado e com os outros privilégios que lhe foram
concedidos. E o que se afirma, para apresentarmos um exemplo elucidativo, no
Sacramentário enviado pelo nosso predecessor de imortal memória Adriano I, ao
imperador Carlos Magno. Nele se diz: «É digna de veneração, Senhor, a
festividade deste dia, em que a santa Mãe de Deus sofreu a morte temporal; mas
não pode ficar presa com as algemas da morte aquela que gerou no seu seio o
Verbo de Deus encarnado, vosso Filho, nosso Senhor». (7)
18. Aquilo que aqui se refere com a sobriedade de palavras costumeiras na
Liturgia romana, exprime-se mais difusamente nos outros livros das antigas
liturgias orientais e ocidentais. O Sacramentário Galicano, por exemplo, chama a
esse privilégio de Maria, «inexplicável mistério, tanto mais digno de ser
proclamado, quanto é único entre os homens, pela assunção da virgem». E na
liturgia bizantina a assunção corporal da virgem Maria é relacionada diversas
vezes não só com a dignidade de Mãe de Deus, mas também com os outros
privilégios, especialmente com a sua maternidade virginal, decretada por um
singular desígnio da Providência divina: «Deus, Rei do universo, concedeu-vos
privilégios que superam a natureza; assim como no parto vos conservou a
virgindade, assim no sepulcro vos preservou o corpo da corrupção e o
conglorificou pela divina translação». (8)
A festa da assunção
19. A Sé Apostólica, herdeira do múnus confiado ao Príncipe dos apóstolos de
confirmar na fé os irmãos (cf. Lc 22,32), com sua autoridade foi tornando cada
vez mais solene esta celebração. Esse fato estimulou eficazmente os fiéis a
irem-se apercebendo mais e mais da importância deste mistério. E assim, a festa
da assunção, que ao princípio tinha o mesmo grau de solenidade que as restantes
festas marianas, foi elevada ao rito das festas mais solenes do ciclo litúrgico. O
nosso predecessor S. Sérgio I, ao rescrever as ladainhas, ou a chamada
procissão estacional, nas festas de nossa Senhora, enumera simultaneamente a
Natividade, a Anunciação, a Purificação e a Dormição. (9) A festa já se celebrava
com o nome de assunção da bem-aventurada Mãe de Deus, no tempo de S. Leão
IV. Esse papa procurou que se revestisse de maior esplendor, mandando
ajuntar-lhe a vigília e a oitava. E o próprio pontífice quis participar nessas
solenidades acompanhado de imensa multidão. (10) Na vigília já de há muito se
guardava o jejum, como se prova com evidência do que afirma o nosso
predecessor S. Nicolau I, ao tratar dos principais jejuns «que... desde os tempos
antigos observava e ainda observa a santa Igreja romana». (11)
20. A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; e é dessa fé que
brotam os ritos sagrados, como da árvore os frutos. Por isso os santos Padres e
doutores nas homilias e sermões que nesse dia fizeram ao povo, não foram buscar
essa doutrina à liturgia, como a fonte primária; mas falaram dela aos fiéis como
de coisa sabida e admitida por todos. Declararam-na melhor, explicaram o seu
significado e o fato com razões mais profundas, destacando e amplificando aquilo
a que muitas vezes os livros litúrgicos apenas aludiam em poucas palavras, a
saber, que com esta festa não se comemora somente a incorrupção do corpo
morto da santíssima Virgem, mas principalmente o triunfo por ela alcançado sobre
a morte e a sua celeste glorificação à semelhança do seu Filho unigênito, Jesus
Cristo.
Testemunho dos santos Padres
21. S. João Damasceno, que entre todos se distingue como pregoeiro dessa
tradição, ao comparar a assunção gloriosa da Mãe de Deus com as suas outras
prerrogativas e privilégios, exclama com veemente eloqüência: «Convinha que
aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto
mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador
encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no
tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu
o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que
tinha sido imune no parto, contemplasse assentada à direita do Pai. Convinha que
a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as
criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus». (12)
22. Condizem com essas palavras de s. João Damasceno as de muitos outros que
afirmam a mesma doutrina. E não são menos expressivas, nem menos exatas, as
palavras que se encontram nos sermões proferidos pelos santos Padres mais
antigos ou da mesma época, ordinariamente por ocasião dessa festividade. Assim,
para citar outro exemplo, s. Germano de Constantinopla julgava que a
incorrupção do corpo da virgem Maria Mãe de Deus, e a sua assunção ao céu são
corolários não só da sua maternidade divina, mas até da santidade singular
daquele corpo virginal: «vós, como está escrito, aparecestes "em beleza"; o
vosso corpo virginal é totalmente santo, totalmente casto, totalmente domicílio
de Deus de forma que até por este motivo foi isento de desfazer-se em pó; foi,
sim, transformado, enquanto era humano, para viver a vida altíssima da
incorruptibilidade; mas agora está vivo, gloriosíssimo, incólume e participante da
vida perfeita». (13) Outro escritor antiquíssimo assevera por sua vez: «A
gloriosíssima Mãe de Cristo, Deus e Salvador nosso, dador da vida e da
imortalidade, foi glorificada e revestida do corpo na eterna incorruptibilidade, por
aquele mesmo que a ressuscitou do sepulcro e a chamou a si duma forma que só
ele sabe». (14)
23. A medida que a festa litúrgica se foi espalhando, e celebrando mais
devotamente, maior foi o número de bispos e oradores sagrados que julgaram de
seu dever explicar com toda a clareza o mistério que se venerava nesta
solenidade e mostrar como ela estava intimamente relacionada com as outras
verdades reveladas.
Testemunho dos teólogos
24. Entre os teólogos escolásticos, não faltaram alguns, que, pretendendo
penetrar mais profundamente nas verdades reveladas, e mostrar o acordo entre a
chamada razão teológica e a fé católica, notaram a estreita conexão existente
entre este privilégio da assunção da santíssima Virgem e as demais verdades
contidas na Sagrada Escritura.
25. Partindo desse pressuposto, apresentam diversas razões para corroborar esse
privilégio mariano. A razão primária e fundamental diziam ser o amor filial de Cristo
para o levar a querer a assunção de sua Mãe ao céu. E advertiam mais, que a
força dos argumentos se baseava na incomparável dignidade da sua maternidade
divina e em todas as graças que dela derivam: a santidade altíssima que excede
a santidade de todos os homens e anjos, a íntima união de Maria com o seu Filho,
e sobretudo o amor que o Filho consagrava a sua Mãe digníssima.
26. Muitas vezes os teólogos e oradores sagrados seguindo os passos dos santos
Padres, (15) para explicarem a sua fé na assunção, serviram-se com certa
liberdade de fatos e textos da Sagrada Escritura. E assim para mencionar só
alguns mais empregados, houve quem citasse a este propósito as palavras do
Salmista: «Erguei-vos, Senhor, para o vosso repouso, vós e a Arca de vossa
santificação» (Sl 131, 8); e na Arca da Aliança, feita de madeira incorruptível e
colocada no templo de Deus viam como que uma imagem do corpo puríssimo da
virgem Maria, preservado da corrupção do sepulcro, e elevado a tamanha glória
no céu. Do mesmo modo, ao tratar desta matéria, descrevem a entrada triunfal
da Rainha na corte celeste, e como se vai sentar a direita do divino Redentor (Sl
44,10.14-16); e recordam a propósito a esposa dos Cantares «que sobe pelo
deserto, como uma coluna de mirra e de incenso» para ser coroada (Ct 3,6; cf.
4, 8; 6, 9). Ambas são propostas como imagens daquela Rainha e Esposa
celestial, que sobe ao céu com o seu divino Esposo.
27. Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus
não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher
revestida de sol, que o apóstolo s. João contemplou na ilha de Patmos (Ap
12,1s.). Porém, entre os textos do Novo Testamento, consideraram e examinaram
com particular cuidado aquelas palavras: «Ave, cheia de graça o Senhor é
convosco, bendita sois vós entre as mulheres» (Lc 1, 28), pois viram no mistério
da assunção o complemento daquela plenitude de graça, concedida à santíssima
Virgem, e uma singular bênção contraposta à maldição de Eva.
Na teologia escolástica
28. Por esse motivo, nos primórdios da teologia escolástica, o piedosíssimo varão
Amadeu, bispo de Lausana, afirmava que a carne da virgem Maria permaneceu
incorrupta nem se pode crer que o seu corpo padecesse a corrupção, porque se
uniu de novo à alma, e juntamente com ela penetrou na corte celestial. «Pois ela
era cheia de graça e bendita entre as mulheres (Lc 1,28). só ela mereceu
conceber o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, e sendo virgem deu-o à luz,
amamentou-o, trouxe-o no regaço, e prestou-lhe todos os cuidados maternos».
(16)
29. Entre os escritores sagrados que naquele tempo com vários textos,
comparações e analogias tiradas das divinas Letras, ilustraram e confirmaram a
doutrina da assunção em que piamente acreditavam, ocupa lugar primordial o
doutor evangélico s. Antônio de Pádua. Na festa da assunção, ao comentar
aquelas palavras de Isaías: «glorificarei o lugar dos meus pés» (Is 60,13), afirmou
com segurança que o divino Redentor glorificou de modo mais perfeito a sua Mãe
amantíssima, da qual tomara carne humana. «Daqui, vê-se claramente», diz, «que
o corpo da santíssima Virgem foi assunto ao céu, pois era o lugar dos pés do
senhor». Pelo que, escreve o salmista: «Erguei-vos, senhor, para o vosso
repouso, vós e a Arca da vossa santificação». E assim como, acrescenta ainda,
Jesus Cristo ressuscitou triunfante da morte e subiu para a direita do Pai, assim
também «ressuscitou a Arca da sua santificação, quando neste dia a virgem Mãe
foi assunta ao tálamo celestial». (17)
No período áureo
30. Quando, na Idade Média, a teologia escolástica atingiu o maior esplendor, s.
Alberto Magno, para demonstrar essa verdade, apresenta vários argumentos
fundados na Sagrada Escritura, na tradição, na liturgia e em razões teológicas, e
conclui: «Por estas e outras muitas razões e autoridades, é evidente que a
bem-aventurada Mãe de Deus foi assunta ao céu em corpo e alma sobre os coros
dos anjos. E cremos que isto é absolutamente verdadeiro». (18) E num sermão
pregado em dia da Anunciação de nossa Senhora, ao explicar aquelas palavras do
anjo: «Ave, cheia de graça...», o doutor universal compara a santíssima Virgem
com Eva, e afirma clara e terminantemente que Maria foi livre das quatro
maldições que caíram sobre Eva. (19)
31. O Doutor Angélico, seguindo as pisadas do mestre, ainda que nunca trate
expressamente do assunto, no entanto sempre que se oferece a ocasião fala
dele, e com a Igreja católica afirma que o corpo de Maria juntamente com a alma
foi levado ao céu. (20)
32. E da mesma opinião, entre outros muitos, o Doutor Seráfico, o qual tem como
certo que, assim como Deus preservou Maria santíssima da violação do pudor e
da integridade virginal ao conceber e dar à luz o seu Filho, assim não permitiu que
o seu corpo se desfizesse em podridão e cinzas. (21) Aplica a santíssima Virgem,
em sentido acomodatício, aquelas palavras da Sagrada Escritura: «Quem é esta
que sobe do deserto, cheia de gozo, e apoiada no seu amado?» (Ct 8,5), e
raciocina desta forma: «Daqui pode concluir-se que ela está ali corporalmente (na
glória celeste)... Porque... a sua felicidade não seria plena se ali não estivesse
em pessoa; ora a pessoa não e só a alma, mas o composto; logo é claro que está
ali segundo o composto, isto é, em corpo e alma; de outro modo não gozaria de
felicidade plena». (22)
Na escolástica posterior
33. Na escolástica posterior, ou seja no século XV, são Bernardino de Sena,
resumindo e ponderando cuidadosamente tudo quanto os teólogos medievais
tinham escrito a esse propósito, não julgou suficiente referir as principais
considerações que os antigos doutores tinham proposto, mas acrescentou outras
novas. Por exemplo, a semelhança entre a divina Mãe e o divino Filho, no que
respeita à perfeição e dignidade de alma e corpo - semelhança que nem sequer
nos permite pensar que a Rainha celestial possa estar separada do Rei dos céus -
exige absolutamente que Maria «só deva estar onde está Cristo». (23) Portanto,
é muito conveniente e conforme à razão que tanto o corpo como a alma do
homem e da mulher tenham alcançado já a glória no céu; e, finalmente, o fato de
nunca a Igreja ter procurado as relíquias da santíssima Virgem nem as ter exposto
à veneração dos fiéis, constitui um argumento que é «como que uma experiência
sensível» da assunção. (24)
Nos tempos modernos
34. Em tempos mais recentes, as razões dos santos Padres e doutores, acima
aduzidas, foram usadas comumente. Seguindo o comum sentir dos cristãos,
recebido dos tempos antigos s. Roberto Belarmino exclamava: «Quem há,
pergunto, que possa pensar que a arca da santidade, o domicílio do Verbo, o
templo do Espírito Santo tenha caído em ruínas? Horroriza-se o espírito só com
pensar que aquela carne que gerou, deu a luz, alimentou e transportou a Deus,
se tivesse convertido em cinza ou fosse alimento dos vermes». (25)
35. De igual forma s. Francisco de Sales afirma que não se pode duvidar que
Jesus Cristo cumpriu do modo mais perfeito o divino mandamento que obriga os
filhos a honrar os pais. E a seguir faz esta pergunta: «Que filho haveria, que, se
pudesse, não ressuscitava a sua mãe e não a levava para o céu?» (26) E s.
Afonso escreve por sua vez: «Jesus não quis que o corpo de Maria se
corrompesse depois da morte, pois redundaria em seu desdouro que se
transformasse em podridão aquela carne virginal de que ele mesmo tomara a
própria carne». (27)
36. Quando já tinha aparecido em toda a sua luz o mistério que se celebra nesta
festa, não faltaram doutores que, em vez de tratar das razões teológicas pelas
quais se demonstrasse a absoluta conveniência de crença na assunção corpórea
da Virgem santíssima, voltaram o pensamento para a fé da Igreja, mística esposa
de Cristo, sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27), que o Apóstolo chama «coluna e
sustentáculo da verdade» (1Tm 3,15). E apoiados nesta fé comum pensaram que
seria temerária, para não dizer herética, a opinião contrária. S. Pedro Canísio,
como outros muitos, depois de declarar que o termo assunção se referia à
glorificação não só da alma mas também do corpo, e que a Igreja há muitos
séculos venerava e celebrava solenemente este mistério mariano, observa: «Esta
opinião é admitida há vários séculos e tão impressa na alma dos fiéis, é tão
recomendada pela Igreja, que quem negasse a assunção ao céu do corpo de
Maria santíssima nem sequer seria ouvido com paciência, mas seria vaiado como
pertinaz, ou mesmo temerário, e imbuído mais de espírito herético do que
católico». (28)
37. Pela mesma época, o Doutor Exímio estabelecia esta regra para a mariologia:
«Os mistérios da graça que Deus operou na virgem Maria não se devem medir
pelas leis ordinárias, senão pela onipotência divina, suposta a conveniência do
fato e a não contradição ou repugnância com as Escrituras». (29) E apoiado na
fé de toda a Igreja, podia concluir que o mistério da assunção devia crer-se com
a mesma firmeza que o da imaculada conceição, e já então julgava que ambas as
verdades podiam ser definidas.
Fundamento escriturístico
38. Todos esses argumentos e razões dos santos Padres e teólogos apóiam-se,
em último fundamento, na Sagrada Escritura. Esta nos apresenta a Mãe de Deus
extremamente unida ao seu Filho, e sempre participante da sua sorte. Pelo que
parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz,
alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o
peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à
alma, ao menos quanto ao corpo. O nosso Redentor é também filho de Maria; e
como observador perfeitíssimo da lei divina não podia deixar de honrar a sua Mãe
amantíssima logo depois do Eterno Pai. E podendo ele adorná-la com tamanha
honra, preservando-a da corrupção do sepulcro, deve crer-se que realmente o
fez.
39. E convém sobretudo ter em vista que, já a partir do século II, os santos
Padres apresentam a virgem Maria como nova Eva, sujeita sim, mas intimamente
unida ao novo Adão na luta contra o inimigo infernal. E essa luta, como já se
indicava no Protoevangelho, acabaria com a vitória completa sobre o pecado e
sobre a morte, que sempre se encontram unidas nos escritos do apóstolo das
gentes (cf. Rm 5; 6; 1Cor 15, 21-26; 54-57). Assim como a ressurreição gloriosa
de Cristo constituiu parte essencial e último troféu desta vitória, assim também a
vitória de Maria santíssima, comum com a do seu Filho, devia terminar pela
glorificação do seu corpo virginal. Pois, como diz ainda o apóstolo, «quando...
este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá o que está
escrito: a morte foi absorvida na vitória» (1 Cor 15,14).
40. Deste modo, a augustíssima Mãe de Deus, associada a Jesus Cristo de modo
insondável desde toda a eternidade «com um único decreto» (30) de
predestinação, imaculada na sua concepção, sempre virgem, na sua maternidade
divina, generosa companheira do divino Redentor que obteve triunfo completo
sobre o pecado e suas conseqüências, alcançou por fim, como suprema coroa
dos seus privilégios, que fosse preservada da corrupção do sepulcro, e que, à
semelhança do seu divino Filho, vencida a morte, fosse levada em corpo e alma
ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos
(cf. 1Tm 1,17).
Oportunidade da definição
41. Considerando que a Igreja universal - que é assistida pelo Espírito de
verdade, que a dirige infalivelmente para o conhecimento das verdades reveladas
- no decurso dos séculos manifestou de tantas formas a sua fé; considerando
que os bispos de todo o mundo quase unanimemente pedem que seja definida
como dogma de fé divina e católica a verdade da assunção corpórea da
santíssima Virgem ao céu; considerando que esta verdade se funda na Sagrada
Escritura, está profundamente gravada na alma dos fiéis, e desde tempos
antiquíssimos é comprovada pelo culto litúrgico, e concorda, inteiramente, com as
outras verdades reveladas, e tem sido esplendidamente explicada e declarada
pelos estudos, sabedoria e prudência dos teólogos - julgamos chegado o
momento estabelecido pela providencia de Deus, para proclamarmos solenemente
este privilégio insigne da virgem Maria.
42. Nós, que colocamos o nosso pontificado sob o especial patrocínio da
santíssima Virgem, à qual recorremos em tantas circunstâncias tristes, nós, que
consagramos publicamente todo o gênero humano ao seu imaculado Coração, e
que experimentamos muitas vezes o seu poderoso patrocínio, confiamos
firmemente que esta solene proclamação e definição será de grande proveito para
a humanidade inteira, porque reverte em glória da Santíssima Trindade, a qual a
virgem Mãe de Deus está ligada com laços muito especiais. É de esperar também
que todos os fiéis cresçam em amor para com a Mãe celeste, e que os corações
de todos os que se gloriam do nome de cristãos se movam a desejar a união com
o corpo místico de Jesus Cristo, e que aumentem no amor para com aquela que
tem amor de Mãe para com os membros do mesmo augusto corpo. E também é
lícito esperar que, ao meditarem nos exemplos gloriosos de Maria, mais e mais se
persuadam todos do valor da vida humana, se for consagrada ao cumprimento
integral da vontade do Pai celeste e a procurar o bem do próximo. Enquanto o
materialismo e a corrupção de costumes que dele se origina ameaçam subverter a
luz da virtude, e destruir vidas humanas, suscitando guerras, é de esperar ainda
que este luminoso e incomparável exemplo, posto diante dos olhos de todos,
mostre com plena luz qual o fim a que se destinam a nossa alma e o nosso corpo.
E, finalmente, esperamos que a fé na assunção corpórea de Maria ao céu torne
mais firme e operativa a fé na nossa própria ressurreição.
43. E é para nós motivo de imenso regozijo que este fato, por providência de
Deus, se realize neste Ano santo que está a decorrer, e que assim possamos,
enquanto se celebra este jubileu maior, adornar com esta pedra preciosa a fronte
da Virgem santíssima, e deixar um monumento, mais perene que o bronze, da
nossa ardente devoção para com a Mãe de Deus.