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A MENSAGEM DE FÁTIMA |
» A INTERPRETAÇÃO DO "SEGREDO"
Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro « segredo » de Fátima, que depois de longo
tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente
desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado
nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século
que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil
decifração. É isto o que a Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo
de grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo milénio? Ou não serão
talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda
piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como
devemos entender a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas essenciais podem encontrar-se na
comunicação que o Cardeal Sodano pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da
Celebração Eucarística presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns
esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja, devem ser
compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de Fátima. A doutrina da Igreja distingue
« revelação pública » e « revelações privadas »; entre as duas realidades existe uma diferença
essencial, e não apenas de grau. A noção « revelação pública » designa a acção reveladora de Deus
que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo
e o Novo Testamento. Chama-se « revelação », porque nela Deus Se foi dando a conhecer
progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar homem, para atrair e reunir em
Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de
comunicações intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem;
naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver com a inteligência e
a compreensão do mistério de Deus. Tal processo envolve o homem inteiro e, por conseguinte,
também a razão, mas não só ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a
humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e
portanto a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo
Testamento. O Catecismo da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da
revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: « Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é
a sua Palavra — e não tem outra —, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta
Palavra única (...) porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente,
dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou
pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por
não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade » (CIC, n. 65;
S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter ficado concluída com Cristo e
o testemunho que d'Ele nos dão os livros do Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento
único que é a história sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento, mas
não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado, ficando assim condenada a uma
estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo da Igreja Católica: « No entanto, apesar de a
Revelação ter acabado, não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está reservado à fé
cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos » (n. 66). Estes dois
aspectos — o vínculo com a unicidade do acontecimento e o progresso na sua compreensão —
estão optimamente ilustrados nos discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos
discípulos: « Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando
vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará de Si mesmo (...)
Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do que é meu, para vo-lo anunciar » (Jo 16, 12-14). Por
um lado, o Espírito serve de guia, desvendando assim um conhecimento cuja densidade não se podia
alcançar antes porque faltava o pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e
que é tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é « receber » do
tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade inexaurível se manifesta nesta condução por obra
do Espírito. A propósito disto, o Catecismo cita uma densa frase do Papa Gregório Magno: « As
palavras divinas crescem com quem as lê » (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre
Ezequiel 1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos essenciais, através dos quais o
Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja e, consequentemente, o « crescimento da Palavra »:
realiza? se por meio da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que
experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação daqueles « que, com a sucessão do
episcopado, receberam o carisma da verdade » (Dei Verbum, n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o conceito de « revelação
privada », que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo
Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz o
Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: « No decurso dos séculos tem havido revelações
ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel
não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa
determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas coisas:
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias,
à definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo correcto a partir
da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi
conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a primeira Carta aos
Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: « Não extingais o Espírito,
não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom » (5, 19-21). Em todo o tempo
é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de ser examinado, não pode ser
desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no sentido da Bíblia, não
significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente
mostrar o recto caminho do futuro. Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da
razão, que deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da
vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e indicação para o
presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância secundária; o essencial é a
actualização da única revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é
advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se
relacionar o carisma da profecia com a noção « sinais do tempo », redescoberta pelo Vaticano II: «
Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?
» (Lc 12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio
caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de
Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela Igreja — e portanto
na de Fátima —, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar
na fé a justa resposta para os mesmos.
A estrutura antropológica das revelações privadas
Tendo nós procurado, com estas reflexões, determinar o lugar teológico das revelações privadas,
devemos agora, ainda antes de nos lançarmos numa interpretação da mensagem de Fátima,
esclarecer, embora brevemente, o seu carácter antropológico (psicológico). A antropologia teológica
distingue, neste âmbito, três formas de percepção ou « visão »: a visão pelos sentidos, ou seja, a
percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa,
intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc, não se trata da percepção externa
normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante,
como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da
visão do inferno (descrita na primeira parte do « segredo » de Fátima) ou então na visão descrita na
terceira parte do « segredo », mas pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo
porque não eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos « videntes ». De igual modo, é
claro que não se trata duma « visão » intelectual sem imagens, como acontece nos altos graus da
mística. Trata-se, portanto, da categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem
uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível.
Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da
imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está
para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão
através dos « sentidos internos ». Trata-se de verdadeiros « objectos » que tocam a alma, embora
não pertençam ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância interior do
coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades
externas e das imagens e preocupações que enchem a alma. A pessoa é levada para além da pura
exterioridade, onde é tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis.
Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos de tais aparições
sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada, e quase intacta a sua
capacidade interior de percepção. « Da boca dos pequeninos e das crianças de peito recebeste
louvor »: esta foi a resposta de Jesus — servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) — à crítica dos
sumos sacerdotes e anciãos, que achavam inoportuno o grito hossana das crianças (Mt 21, 16).
Como dissemos, a « visão interior » não é fantasia, mas uma verdadeira e própria maneira de
verificação. Fá-lo, porém, com as limitações que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o
elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos
nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na visão interior, isso é ainda mais
claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O
sujeito, o vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias capacidades
concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. Na visão
interior, há, de maneira ainda mais acentuada que na exterior, um processo de tradução,
desempenhando o sujeito uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A
imagem pode ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não
são em caso algum a « fotografia » pura e simples do Além, mas trazem consigo também as
possibilidades e limitações do sujeito que as apreende.
Isto é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale também para as visões dos
pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas não são de modo algum mera expressão da
sua fantasia, mas fruto duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar
como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua
essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as
imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito
por parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens
destas visões é uma linguagem simbólica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: « Não descrevem de
forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a
mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração não
especificadas ». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única imagem é típica de tais visões,
que, na sua maioria, só podem ser decifradas a posteriori. E não é necessário que cada elemento da
visão tenha de possuir uma correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como um
todo, e a partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os detalhes. O que
efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser desvendado, em última análise, a partir do
que é o centro absoluto da « profecia » cristã: o centro é o ponto onde a visão se torna apelo e
indicação da vontade de Deus.
Uma tentativa de interpretação do « segredo » de Fátima
A primeira e a segunda parte do « segredo » de Fátima foram já discutidas tão amplamente por
específicas publicações, que não necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas chamar
brevemente a atenção para o ponto mais significativo. Os pastorinhos experimentaram, durante um
instante terrível, uma visão do inferno. Viram a queda das « almas dos pobres pecadores ». Em
seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para « salvá-las » —
para mostrar um caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro
que diz: « Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das almas » (1, 9). Como
caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado de modo surpreendente para pessoas originárias
do ambiente cultural anglo-saxónico e germânico - a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para
compreender isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo « coração », na linguagem da
Bíblia, significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade, temperamento e
sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação interior. O « coração imaculado »
é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita
unidade interior e, consequentemente, « vê a Deus ». Portanto, « devoção » ao Imaculado Coração
de Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat — « seja feita a vossa vontade »
— se torna o centro conformador de toda a existência. Se porventura alguém objectasse que não se
deve interpor um ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às
suas comunidades: « Imitai-me » (cf. 1 Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2 Tes 3, 7.9). No Apóstolo,
elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós
aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do « segredo » de Fátima, publicado aqui pela primeira
vez integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo Cardeal
Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A
tal propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a sua interpretação. A
interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a
Irmã Lúcia disse que tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela
sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos, naquilo que
vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios
anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos indentificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do «
segredo », a frase « salvar as almas », assim agora a palavra-chave desta parte do « segredo » é o
tríplice grito: « Penitência, Penitência, Penitência! » Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho:
« Pænitemini et credite evangelio » (Mc 1, 15). Perceber os sinais do tempo significa compreender
a urgência da penitência, da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica
caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui uma
recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada
vez mais claramente que o objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na
esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da
Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo que pende
sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não
aparece de forma alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a
espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição: o
brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo,
é sublinhada a importância da liberdade do homem: o futuro não está de forma alguma determinado
imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do
futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em
campo a liberdade e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de
mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exactamente o contrário: o seu
sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente
extraviadas aquelas explicações fatalistas do « segredo » que dizem, por exemplo, que o autor do
atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino
predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras ideias
semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da
visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer visão nossa. As
pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta
limitação inerente à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas «
como que num espelho, de maneira confusa » (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas
imagens que se sucedem no texto do « segredo ». O lugar da acção é descrito com três símbolos:
uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma grande cruz de troncos
toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da história humana: a história como árdua subida
para o alto, a história como lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de
destruições pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser lugar de
comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais extrema. No cimo da
montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação da história. Na cruz, a destruição é transformada
em salvação; ergue-se como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco (« tivemos o pressentimento que
era o Santo Padre »), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente, homens e
mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros,
tremendo e sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da cidade
que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o
caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência,
destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história dum século inteiro.
Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados nas duas imagens da montanha
e da cidade e estão orientados para a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma
contraída: na visão, podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século dos
sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século das guerras mundiais e de muitas guerras locais
que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de
crueldade. No « espelho » desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este
respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia
12 de Maio de 1982: « A terceira parte do “segredo” refere-se às palavras de Nossa Senhora: “Se
não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja.
Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas”
».
Na Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha,
podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa
actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo
caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos mártires. Não era
razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o
texto da terceira parte do « segredo », tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito
perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras seguintes: «
Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa agonizante deteve-se no limiar da
morte » (13 de Maio de 1994). O facto de ter havido lá uma « mão materna » que desviou a bala
mortífera demonstra uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças
que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais
poderosa que os exércitos.
A conclusão do « segredo » lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo
conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à
força sanificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da
cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de Deus. O sangue de
Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da
cruz. O seu martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles
completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos (cf. Col 1, 24). A sua
própria vida tornou-se eucaristia, inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna
fecundo. O sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da
morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a vida
futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do « segredo », tão angustiante ao início,
termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora,
uma Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata
apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a
grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro;
mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento,
porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia
salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes)
o « segredo » de Fátima? O que é nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o
Cardeal Sodano, que « os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do “segredo” de
Fátima parecem pertencer já ao passado ». Os diversos acontecimentos, na medida em que lá são
representados, pertencem já ao passado. Quem estava à espera de impressionantes revelações
apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido.
Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em geral que não
pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece — dissemo-lo logo ao
início das nossas reflexões sobre o texto do « segredo » — é a exortação à oração como caminho
para a « salvação das almas », e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do « segredo » que justamente se tornou
famosa: « O meu Imaculado Coração triunfará ». Que significa isto? Significa que este Coração
aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas
de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou a história do mundo,
porque introduziu neste mundo o Salvador: graças àquele « Sim », Deus pôde fazer-Se homem no
nosso meio e tal permanece para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e
experimentamo-lo continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente
desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a
liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra.
O que vale desde então, está expresso nesta frase: « No mundo tereis aflições, mas tende confiança!
Eu venci o mundo » (Jo 16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa.
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o
próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro
desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém
do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma
revelação privada realce novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e
divulgue antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a
caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos acrescentar que
frequentemente as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem, dando-lhe
novo impulso e suscitando formas novas. Isto não exclui que aquelas tenham influência também na
própria liturgia, como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado
Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre liturgia e
piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o
critério, a forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A
religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer
parte do mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de «
inculturação » da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas indicações da liturgia,
mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração.
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé