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1. Situação
Na América Latina, na grande massa de batizados, as condições de fé, crenças e práticas cristas são muito diversas, não só de um país para outro, como entre regiões de uma mesma nação, e ainda entre os diversos níveis sociais.
Encontram-se também grupos étnicos semi-pagãos; massas camponesas que conservam uma profunda religiosidade e massas de marginalizados com sentimentos religiosos, mas de pouca prática cristã.
Há um processo de transformação cultural e religiosa. A evangelização do continente experimenta sérias dificuldades que se vêm agravando face à explosão demográfica, às migrações internas, às modificações sócio-culturais, à escassez de pessoal apostólico e à deficiente adaptação das estruturas eclesiais.
Até agora a Igreja contou principalmente com uma pastoral conservadora, baseada numa sacramentalização com pouca ênfase numa prévia evangelização. Pastoral apta, sem dúvida, para uma época em que as estruturas sociais coincidiam com as estruturas religiosas, em que os métodos de comunicação dos valores (família, escola...) estavam impregnados de valores cristãos e onde a fé se transmitia quase pela própria força da tradição.
Hoje, entretanto, as próprias transformações do continente exigem uma revisão dessa pastoral, a fim de que se adapte à diversidade e pluralidade culturais do povo latino-americano.
A expressão da religiosidade popular é fruto de uma evangelização realizada desde o tempo da conquista, com características especiais. É uma religiosidade de votos e promessas, de peregrinações e de um número infinito de devoções, baseada na recepção dos sacramentos, especialmente do batismo e da primeira eucaristia, recepção que tem mais conseqüências sociais que um verdadeiro influxo no exercício da vida cristã.
Embora a conduta moral deixe muito a desejar, observa-se, entre nossos povos, uma enorme reserva de virtudes autenticamente cristãs, especialmente no que diz respeito à caridade. Sua participação na vida cultural oficial é quase nula e sua adesão à organização da Igreja é muito escassa.
Esta religiosidade, mais do tipo cósmico, em que Deus é resposta a todas as incógnitas e necessidades do homem, pode entrar em crise e, de fato, já começou a entrar com o conhecimento científico do mundo que nos rodeia.
Ante esta religiosidade se apresenta à Igreja um dilema: ou continua a ser Igreja universal ou converte-se em seita e, portanto, não os incorpora a si. Por ser Igreja e não seita, deverá oferecer sua mensagem de salvação a todos os homens, correndo, talvez, o risco de que nem todos a aceitem da mesma forma e com a mesma intensidade.
Como em toda sociedade humana os diversos grupos de pessoas captam de modo diferente os objetivos da organização, respondem igualmente de formas diversas aos valores e normas que o grupo professa, os graus de participação são diversos; as lealdade, o sentido de solidariedade nem sempre são expressos do mesmo modo.
Há, além disso, na sociedade contemporânea, uma tendência aparentemente contraditória; tendência às manifestações grupais no comportamento humano e, simultaneamente, uma tendência para as pequenas comunidades onde existe melhor possibilidade de realização como pessoas.
Do ponto de vista da vivência religiosa, sabemos que nem todos os homens aceitam e vivem a mensagem religiosa da mesma maneira. No nível pessoal um mesmo homem experimenta fases distintas em sua resposta a Deus, e no nível social, nem todos manifestam sua religiosidade nem sua fé de um modo unívoco. O povo precisa manifestar sua fé de uma forma simples, emocional, coletiva.
Ao julgar a religiosidade popular, não podemos partir de uma interpretação cultural ocidentalizada das classes médias e alta urbanas e sim do significado que essa religiosidade tem no contexto da subcultura dos grupos rurais e urbanos marginalizados.
Suas expressões podem estar deformadas e mescladas, em certa medida, com um patrimônio religioso ancestral, onde a tradição exerce um poder quase tirânico; correm o perigo de serem facilmente influenciadas por práticas mágicas e supersticiosas, de revelarem um caráter mais utilitário e um certo temor ao divino, que necessita da intervenção de seres mais próximos ao homem e de expressões mais plásticas e concretas.
Esses tipos de religiosidade podem ser, entretanto, balbucios de uma autêntica religiosidade, expressa com os elementos culturais de que dispõe.
É mister recordar aos pastores que no fenômeno religioso existem motivações distintas que, por serem humanas, são mistas e podem corresponder ao desejo de segurança, impotência e, simultaneamente, à necessidade de adoração, gratidão para com o Ser supremo. Motivações que se plasmam e se expressam em símbolos diversos. A fé chega ao homem envolta sempre numa linguagem cultural; e na religiosidade natural do homem há germens de um chamado de Deus.
Para responder a cada situação na qual o homem se encontra em seu caminho para Deus, há necessidade de reafirmar a diversidade de respostas que devem ser dadas ao homem contemporâneo e não esquecer a urgência em exigir, na medida do possível, uma aceitação mais pessoal e comunitária da mensagem da revelação.
2. Princípios teológicos
Uma pastoral popular pode ser baseada nos seguintes critérios teológicos:
Pertence precisamente à tarefa evangelizadora da Igreja descobrir nessa religiosidade a «secreta presença de Deus» (AG 9) e a luz da verdade que ilumina a todos (NA 2), a luz do Verbo presente, mesmo antes da encarnação ou da pregação apostólica, e fazer frutificar essa semente.
Sem extinguir a mecha fumegante (of. Ml 12,20), a Igreja aceita com alegria e respeito, purifica e incorpora à fé os diversos "elementos religiosos" (GS 92) que estão presentes nessa religiosidade como "semente oculta do Verbo (AG 11) e que constituem ou podem constituir uma preparação evangélica" (LG 16) .
Ainda que não se possa supor sem mais nem menos a existência da fé e por trás de qualquer expressão religiosa aparentemente crista tampouco se pode negar, arbitrariamente, o caráter de verdadeira adesão fiel e de participação eclesial real, embora fraca, a toda expressão que apresente elementos espúrios ou motivações temporais e egoístas. Com efeito, mesmo na fé, como ato de uma humanidade peregrina no tempo, o homem depende da imperfeição das motivações mistas.
Pertence, pois, ao ato de fé, sob o impulso do Espírito Santo, o dinamismo interior que tende constantemente a aperfeiçoar o momento de apropriação salvífica transformando-o em ato de doação e entrega absoluta de si.