»» Documentos da Igreja

Bispos da América Latina
CONCLUSÕES DE MEDELLIN

III. FAMÍLIA E DEMOGRAFIA

Nesta tomada de consciência da Igreja a respeito de si mesma, enquanto inserida na realidade latino-americana, é-lhe indispensável a reflexão sobre a realidade da família.

Esta reflexão não é fácil, por várias razões. Porque a idéia da família encarna-se em realidades sociológicas sumamente diversas. Porque a família tem sofrido, talvez mais que outras instituições, os impactos das mudanças e transformações sociais. Porque na América Latina a família sofre de modo especialmente grave as conseqüências «dos círculos viciosos» do subdesenvolvimento: más condições de vida e cultura, baixo nível de salubridade, baixo poder aquisitivo etc., transformações que nem sempre se podem captar adequadamente.

1. A família em situação de transformação - na América Latina

  1. A família sofre, na América Latina, como também em outras partes do mundo, a influência de quatro fenômenos sociais fundamentais:

    1. Passagem de uma sociedade rural a uma sociedade urbana, o que leva uma família de tipo patriarcal a um novo tipo de família, de maior intimidade, com melhor distribuição de responsabilidades e maior dependência de outras micro-sociedades.

    2. O processo de desenvolvimento implica em abundantes riquezas para algumas famílias, insegurança para outras e marginalidade social para as restantes.

    3. O rápido crescimento demográfico, que não deve ser tomado como a única variável demográfica e muito menos como a causa de todos os males da América Latina, engendra vários problemas tanto de ordem sócio-econômica como de ordem ético-religiosa.

    4. O processo de socialização, que subtrai à família alguns aspectos de sua importância social e de suas zonas de influência, mas deixa intactos seus valores essenciais e sua condição de instituição básica de sociedade global.

  2. Estes fenômenos produzem na família concreta da América Latina algumas repercussões que se traduzem em problemas de certa gravidade. Na impossibilidade de catalogá-los todos, apontamos os que parecem ter maior transcendência, incidência mais freqüente ou maior repercussão sócio-pastoral.

    1. Baixíssimo índice de casamento. A América Latina registra os mais baixos índices de casamentos em relação à sua população. Isto indica uma alta porcentagem de uniões ilegais, aleatórias e quase sem estabilidade, com todas as conseqüências que derivam de tal situação.

    2. A alta porcentagem de nascimentos ilegítimos e de uniões ocasionais é um fator que pesa fortemente sobre a explosão demográfica.

    3. Crescente e alto índice de desagregação familiar, seja pelo divórcio tão facilmente aceito e legalizado em não poucas regiões, seja por abandono do lar (quase sempre por parte do pai), seja pelas desordens sexuais nascidas de uma falsa noção de masculinidade.

    4. Acentuação do hedonismo e do erotismo como resultante da asfixiante propaganda propiciada pela civilização de consumo.

    5. Sérios problemas de moradia por causa de insuficiente e defeituosa política a respeito desse problema.

    6. Desproporção entre os salários e as condições reais da família.

    7. Má distribuição dos bens de consumo e de civilização, como: alimentação, vestuário, trabalho, meios de comunicação, descanso, diversões, cultura etc.

    8. Impossibilidade material e moral para muitos jovens de constituir dignamente uma família, o que provoca o surgimento de muitas células familiares deterioradas.

    Nosso dever pastoral é fazer um premente apelo aos que governam e a todos os que possuem alguma responsabilidade a respeito, para que dêem à família o lugar que lhe corresponde na construção de uma cidade temporal digna do homem, ajudando-a a superar os graves males que a afligem e impedem sua plena realização.

2. Papel da família na América Latina

«A força e o vigor da instituição matrimonial e familiar se evidenciam igualmente: as profundas mudanças sociais contemporâneas, não obstante as dificuldades a que dão origem, manifestam muitas vezes, de várias maneiras, a verdadeira índole dessa instituição» (GS 47) .

É portanto necessário ter em conta os valores fundamentais que a doutrina da Igreja atribui à família cristã para que a ação pastoral leve as famílias latino-americanas a conservar ou a adquirir esses valores que as capacitem a cumprir sua missão.

Entre eles, dentro das linhas de reflexão desta conferência, queremos assinalar três especificamente: a família formadora de pessoas, educadora na fé, promotora do desenvolvimento.

  1. Formadora de pessoas

    "A família recebeu diretamente de Deus a missão de ser célula primeira e vital da sociedade" (AA 11,3).

    «É, pois, dever dos pais, criar um ambiente de família animado pelo amor, pela piedade para com Deus e para com os homens que promova a educação íntegra, pessoal e social dos filhos».

    «Continua impor-se a cada homem o dever de salvar a integridade de sua personalidade, no qual sobressaem os valores de sua inteligência, vontade, consciência e fraternidade. . . Como mãe e alimentadora desta educação acha-se em primeiro lugar a família» (GS 61) .

    Essa doutrina do Concílio Vaticano II nos faz ver a urgência de a família cumprir sua tarefa de formar personalidades integrais, e para tanto conta com muitos elementos.

    Realmente a presença e influência dos modelos distintos e complementares do pai e da mãe (masculino e feminino), o vínculo do afeto mútuo, o clima de confiança, intimidade, respeito e liberdade, o quadro de vida social com uma hierarquia natural mas matizada pelo clima de afeto, tudo converge para que a família se torne capaz de plasmar personalidades fortes e equilibradas para a sociedade.

  2. Educadora na fé

    "Os esposos cristãos são para si mesmos, para seus filhos e demais familiares, cooperadores da graça e testemunhas da fé. São para seus filhos os primeiros pregadores e educadores na fé" (AA 11) e devem «inculcar a doutrina crista e as virtudes evangélicas aos filhos amorosamente recebidos de Deus» (LG 41, 5), e realizar esta missão «mediante a palavra e o exemplo» (LG 11), de tal maneira que «graças aos pais, que precederão com o exemplo e a oração na família, os filhos e ainda os demais que vivem no círculo familiar, encontrarão mais facilmente o caminho do sentido humano, da salvação e da santidade».

    Sabemos que muitas famílias da América Latina foram incapazes de se tornarem educadoras na fé, ou por não estarem bem constituídas, ou por estarem desintegradas e outras, ainda, porque vêm dando esta educação em termos de mero tradicionalismo, às vezes até com aspectos míticos e supersticiosos. Daí a necessidade de se dotar a família atual de elementos que lhe restituam a capacidade evangelizadora, de acordo com a doutrina da Igreja.

  3. Promotora do desenvolvimento

    «A família é a primeira escola das virtudes sociais necessárias às demais sociedades. . . É aí que os filhos fazem a primeira experiência de uma sã sociedade humana . . . É através dela que os filhos vão sendo introduzidos gradativamente na sociedade civil e na Igreja (GS 3) .

    Além disso, «a família é a escola do mais rico humanismo» (GS 52), e o «humanismo completo é o desenvolvimento integral».

    E considerando que «na família convivem diversas gerações que se ajudam mutuamente para adquirir uma sabedoria mais completa e estabelecer os direitos das pessoas com as demais exigências da vida social, sabemos que ela constitui o fundamento da sociedade» (GS 2).

    «Nela, os filhos, num clima de amor, aprendem, juntos, com maior facilidade a reta hierarquia dos valores, ao mesmo tempo em que se imprime, de modo natural, na alma dos adolescentes, à medida que vão crescendo formas aprovadas de cultura» (GS 61) .

    «Aos pais cabe preparar, no seio da família, os filhos para conhecerem o amor de Deus para com todos os homens; ensinar-lhes, gradativamente, sobretudo pelo exemplo, a solicitude pelas necessidades materiais e espirituais do próximo» (AAEE), e assim a família cumprirá sua missão e promoverá a justiça e demais boas obras a serviço de todos os irmãos que padecem necessidade (AA) .

    Por isso, «o bem-estar da pessoa e da sociedade humana está ligado estreitamente a uma situação favorável da comunidade conjugal e familiar» (GS 47), pois ela é um fator importantíssimo no desenvolvimento.

    «Por isso todos os que têm influência nas comunidades e grupos sociais devem trabalhar eficazmente para a promoção do matrimônio e da família» (GS 52) .

3. Problemas de demografia na América Latina

A questão demográfica em nosso continente reveste-se de uma complexidade e delicadeza peculiares: é certo que existe um rápido crescimento da população, devido, menos ao índice de nascimento, que ao índice de mortalidade infantil, baixo mas não satisfatório, ao mesmo tempo que ao crescente índice de longevidade. Mas é certo, também, que a maioria de nossos países sofre de subpopulação e precisa de um aumento demográfico como fator de desenvolvimento; também é certo que as condições sócioeconômico-culturais, excessivamente baixas, se mostram adversas a um crescimento demográfico pronunciado.

Como pastores, sensíveis aos problemas de nossa gente, fazendo nossas suas dores e angústias, julgamos necessário enunciar os seguintes pontos sobre esta matéria:

  1. Todo enfoque unilateral, como toda solução simplista a respeito desses problemas são incompletos e, portanto, equívocos. Aparece como particularmente daninha a adoção de uma política demográfica antinatalista que tende a suplantar, substituir ou relegar ao esquecimento uma política de desenvolvimento mais exigente, mas a única aceitável. «Trata-se, com efeito, não de suprimir os comensais e sim de multiplicar o pão» (Paulo VI) .

  2. Neste sentido a encíclica Humanae Vitae, com o caráter social que nela ocupa um lugar proeminente e que a coloca ao lado da Populorum Progressio tem para nosso continente uma importância especial, pois ante nossos problemas e aspirações a Humanae Vitae:

    1. Acentua a necessidade imperiosa de sair ao encontro do desafio dos problemas demográficos com uma resposta integral e orientada para o desenvolvimento.

    2. Denuncia toda política fundada num controle indiscriminado da natalidade, isto é, a qualquer preço e de qualquer maneira, sobretudo quando se torna condição de ajuda econômica.

    3. Ergue-se como defensora dos valores inalienáveis como: o respeito à pessoa humana, especialmente dos pobres e dos marginalizados, o valor da vida, o amor conjugal.

    4. Contém um apelo e um estímulo à formação integral das pessoas mediante uma auto-educação dos casais, cujos elementos principais são: o autodomínio, a rejeição de soluções fáceis, mas perigosas por serem alienantes e deformadoras, a necessidade da graça de Deus para o cumprimento da lei, a fé como estimuladora da existência e um humanismo novo, livre do erotismo da civilização burguesa etc.

  3. A aplicação da Encíclica na parte a que se refere à ética conjugal, como o reconhece o próprio papa: «aparecerá facilmente aos olhos de muitos como difícil e até impossível na prática" (n. 20).

    Conscientes dessas dificuldades e sentindo na alma as indagações e angústias de todos os nossos filhos e empenhados em oferecer nosso apoio a todos indistintamente, mas de modo particular àqueles que escutam a palavra do papa e procuram viver o ideal que ela propõe, indicamos os seguintes pontos:

    1. O ensinamento do magistério na Encíclica é claro e inequívoco a respeito da exclusão dos meios artificiais para tornar voluntariamente infecundo o ato conjugal (HV).

    2. Mas o próprio Santo Padre reafirmou, ao inaugurar esta conferência: «Esta norma não constitui uma cega corrida para a superpopulação nem diminui a responsabilidade, nem a liberdade dos cônjuges, a quem não se proíbe uma honesta e razoável limitação da natalidade, nem impede os meios terapêuticos legítimos, nem o progresso das investigações científicas" (Discurso ao inaugurar a II Conferência Episcopal Latino-americana) .

    3. A vida sacramental, sobretudo como caminho para uma progressiva maturidade humana e cristã do matrimônio, é um direito e, mais ainda, um dever, e corresponde a nós, pastores, facilitar esse caminho aos casais cristãos.

    4. A ajuda mútua que os casais se proporcionam ao reunirem-se, apoiados por peritos em ciências humanas e sacerdotes imbuídos do espírito pastoral, pode ser inestimável aos que, apesar de suas dificuldades, procuram alcançar o ideal visado.

    5. Formulamos o propósito, e procuraremos cumpri-lo, não só de prestar «nosso serviço às almas que lutam com essas dificuldades, com o coração de bom pastora (HV, e discurso de abertura da II Conferência), mas também, e de modo especial, de hipotecar nossa solidariedade aos casais que sofrem, por meio do exemplo de nossa própria abnegação pessoal e coletiva, na pobreza real, no celibato assumido com sinceridade e vivido com seriedade e alegria, na paciência e dedicação aos homens, na obediência à palavra de Deus e, sobretudo, na caridade elevada até ao heroísmo.

4. Recomendações para uma pastoral familiar

Por vários fatores históricos, étnicos, sociológicos e até caracterológicos, a instituição familiar sempre teve, na América Latina, uma importância global muito grande.

É certo que nas grandes cidades perde parte de sua importância. Nas áreas rurais, que formam ainda maior

parte do continente, apesar de todas as transformações externas, a família continua a desempenhar um papel primordial tanto no campo social, quanto no cultural, no ético ou no religioso.

Por isso e ainda mais por sua condição de formadora de pessoas, educadora na fé e promotora do desenvolvimento, mas também a fim de sanar todas as carências de que ela padece e que tem graves repercussões, julgamos necessário dar à pastoral familiar uma prioridade na planificação da pastoral de conjunto; sugerimos que esta seja planejada em diálogo com os casais que, por sua experiência humana e pelos carismas próprios do sacramento do matrimonio, podem auxiliar eficazmente em sua elaboração.

Esta pastoral familiar deve conter, entre outras coisas, as seguintes metas e orientações fundamentais:

  1. Procurar, desde os anos da adolescência, uma sólida educação para o amor que integre e ao mesmo tempo sobreposse a simples educação sexual, inculcando nos jovens de ambos os sexos a sensibilidade e a consciência dos valores essenciais : amor, respeito, dom de si mesmo etc.

  2. Difundir a idéia e facilitar, na prática, uma preparação para o matrimônio, acessível a todos os que vão se casar e tão integral quanto possível: física, sociológica, jurídica, moral e espiritual.

  3. Elaborar e difundir uma espiritualidade matrimonial baseada simultaneamente numa clara visão do leigo no mundo e na Igreja, e numa teologia do matrimônio como sacramento.

  4. Inculcar nos jovens em geral e sobretudo nos casais jovens a consciência e a convicção de uma paternidade realmente responsável (noção esta de primeiríssima importância neste continente tão marcado pela praga dos nascimentos ilegítimos) .

  5. Despertar nos esposos a necessidade do diálogo conjugal que os leve à unidade profunda e a um espírito de coresponsabilidade e colaboração.

  6. Facilitar o diálogo entre pais e filhos que ajude a superar, no seio da família, o conflito de gerações e torne o lar "um lugar onde se realize o encontro das gerações" (GS).

  7. Fazer com que a família seja verdadeiramente uma «igreja doméstica» : comunidade de fé, de oração, de amor, de ação evangelizadora, escola de catequese etc.

  8. Levar todas as famílias a uma generosa abertura para as outras famílias, inclusive de concepções cristãs diferentes; e sobretudo para as famílias marginalizadas ou em processo de desintegração; abertura para a sociedade, para o mundo e para a vida da Igreja.

Queremos, finalmente, estimular os casais que se esforçam por viver a santidade conjugal e realizam o apostolado familiar, bem como os que, «de comum acordo, de forma bem ponderada, aceitam com magnanimidade uma prole mais numerosa para educá-1a condignamente» (GS 50).

Bem planejada e bem executada mediante os movimentos familiares, tão meritórios, ou mediante outras formas, a pastoral familiar contribuirá, certamente, para fazer de nossas famílias uma força viva (e não, como poderia acontecer, um peso morto) a serviço da construção da Igreja, do desenvolvimento e da realização das necessárias transformações em nosso continente.