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Primeira parte
A situação Latino-Americana e a paz
«Se o desenvolvimento é o novo nome da paz», o subdesenvolvimento latino-americano, com características próprias nos diversos países, é uma injusta situação promotora de tensões que conspiram contra a paz.
Sistematizamos estas tensões em três grandes grupos, destacando em cada caso aquelas variáveis que, por exprimir uma situação de injustiça, constituem uma ameaça positiva contra a paz em nossos países.
Ao falar de uma situação de injustiça fazemos referência àquelas realidades que exprimem uma situação de pecado; isto não significa de conhecer que, por vezes, a miséria em nossos países pode ter causas naturais difíceis de superar.
Ao realizar esta análise não ignoramos nem deixamos de valorizar os esforços positivos que se realizam em diferentes níveis para a construção de uma sociedade mais justa. Não os incluímos aqui porque nossa intenção é a de chamar a atenção, precisamente, para aqueles aspectos que constituem uma ameaça ou negação da paz.
a. Tensões entre classes e colonialismo interno
Semelhante estado de espírito constata-se também nas classes médias que, diante de graves crises, entram em um processo de desintegração e proletarização.
Não é raro comprovar que estes grupos ou setores, com exceção de algumas minorias lúcidas, qualificam de ação subversiva toda tentativa de modificar um sistema social que favorece a permanência de seus privilégios.
Referimo-nos aqui, particularmente, às conseqüências que traz para nossos países sua dependência de um centro de poder econômico em torno do qual gravitam. Daí resulta que nossas nações, cem freqüência, não são donas de seus bens e de suas decisões econômicas. Como é óbvio, isto não deixa de ter suas incidências no plano político, dada a interdependência que existe entre os dois campos.
Para nós interessa assinalar especialmente dois aspectos deste fenômeno:
Aspecto Econômico
Analisamos somente aqueles fatores que mais influem no empobrecimento global e relativo de nossos países, constituindo uma fonte de tensões internas e externas.
Denunciamos aqui o imperialismo de qualquer matiz ideológico, que se exerce na América Latina, em forma indireta e até com intervenções diretas.
c. Tensões entre os países da América Latina
Denunciamos aqui um fenômeno especial de origem histórico-política, que perturba as relações cordiais entre alguns países e levanta obstáculos a uma colaboração realmente construtiva: sem dúvida, o processo de integração apresenta-se como uma necessidade imperiosa para a América Latina. Sem pretender ditar normas sobre os aspectos técnicos, realmente complexos desta necessidade, julgamos oportuno destacar seu caráter pluridimensional. A integração, com efeito, não é um processo exclusivamente econômico; apresenta-se antes com amplas dimensões, que abrangem o homem total, considerado em sua totalidade: dimensão social, política, cultural, religiosa, racial etc.
Entre os fatores que favorecem as tensões entre os nossos países, salientamos:
Concepção cristã da paz
A realidade descrita constitui uma negação da paz, tal como a entende a tradição cristã.
Três notas caracterizam a concepção cristã da paz:
A paz na América Latina, não é, portanto, a simples ausência de violências e de derramamento de sangue. A opressão exercida pelos grupos de poder pode dar a impressão de que a paz e a ordem estão sendo mantidas, mas na realidade, não se trata senão do "germe contínuo e inevitável de rebeliões e guerras"(Mensagem de Paulo VI, 1-1-1968).
Não se consegue a paz senão criando uma ordem nova que «comporte uma justiça mais perfeita entre os homens» (PP 76) . Nesse sentido, o desenvolvimento integral do homem, a passagem de condições menos humanas para condições mais humanas é o nome novo da paz.
A "tranqüilidade da ordem", segundo a definição agostiniana da paz, não é, portanto, passividade nem conformismo. Não é, tampouco, algo que se adquira de uma vez por todas, é o resultado de um contínuo esforço de adaptação às novas circunstâncias, às exigências e desafios de uma história em mutação. Uma paz estática e aparente pode ser alcançada com o emprego da força; uma paz autêntica implica luta, capacidade inventiva, conquista permanente (Cf. Paulo VI, Mensagem de Natal, 1967) .
A paz não se acha, há que construí-1a. O cristão é um artesão da paz (Ml 5,9) . Esta tarefa, dada a situação descrita acima, reveste-se de um caráter especial, em nosso continente; por isso, o Povo de Deus na América Latina, seguido o exemplo de Cristo, deverá enfrentar com audácia e valentia o egoísmo, a injustiça pessoal e a coletiva.
A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social. . . Por isso mesmo, onde a paz social não existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (Ml 25,31-46) .
A violência constitui um dos problemas mais graves da América Latina. Não se pode abandonar aos impulsos da emoção e da paixão uma decisão da qual depende todo o futuro dos países do continente. Faltaríamos a um grave dever pastoral se não recordássemos em termos de consciência, neste dramático dilema, os critérios que derivam da doutrina cristã do amor evangélico.
Ninguém se surpreenderá se reafirmarmos firmemente nossa fé na fecundidade da paz. Esse é nosso ideal cristão. "A violência não é nem cristã nem evangélica" (Discurso de Paulo VI em Bogotá, na celebração eucarística do Dia do Desenvolvimento, 23-8-68). O cristão é pacífico e não se envergonha disso. Não é simplesmente pacifista, porque é capaz de lutar (ver Mensagem de Paulo VI de 1-1-1968). Mas prefere a paz à guerra. Sabe que «as mudanças bruscas e violentas das estruturas seriam falhas, ineficazes em si próprias, e certamente em desacordo com a dignidade do povo, a qual exige que as transformações necessárias se realizem de dentro, isto é, mediante uma conveniente tomada de consciência, uma adequada preparação e efetiva participação de todos. A ignorância e as condições de vida, por vezes infra-humanas, impedem hoje que seja assegurada» (Discurso de Paulo VI em Bogotá, na celebração eucarística do Dia do Desenvolvimento, 23 de agosto de 1968) .
Se o cristão acredita na fecundidade da paz como meio de chegar à justiça, acredita também que a justiça é uma condição imprescindível para a paz. Não deixa de ver que a América Latina se acha, em muitas partes, em face de uma situação de injustiça que pode ser chamada de violência institucionalizada, porque as atuais estruturas violam os direitos fundamentais, situação que exige transformações globais, audaciosas, urgentes e profundamente renovadoras. Não é de estranhar, portanto, que nasça na América Latina, "a tentação da violência» (PP 30). Não se deve abusar da paciência de um povo que suporta durante anos uma condição que dificilmente aceitaria os que têm maior consciência dos direitos humanos.
Em face de uma situação que atenta tão gravemente contra a dignidade do homem e, portanto, contra a paz, dirigimo-nos, como pastores, a todos os membros do povo cristão, para que assumam sua grave responsabilidade na promoção da paz na América Latina.
Desejaríamos dirigir nosso apelo, em primeiro lugar, aos que têm uma maior participação na riqueza, na cultura ou no poder. Sabemos que existem na América Latina dirigentes que são sensíveis às necessidades e procuram remediá-las]. Reconhecem eles que os privilegiados, em seu conjunto, exercem muitas vezes pressão sobre os governantes, com todos os meios de que dispõem, impedindo as mudanças necessárias. Em algumas ocasiões, esta resistência chega a adotar formas drásticas, com destruição de vidas e de bens.
Dirigimo-lhes, pois, um apelo urgente a fim de que a posição pacífica da Igreja não seja invocada pela oposição, passiva ou ativa, para opor-se às transformações profundas que são necessárias. Se mantiverem zelosamente seus privilégios e sobretudo, se os defenderem com o emprego de meios violentos, tornam-se responsáveis, perante a história, por provocar as «revoluções nascidas do desespero» (Discurso de Paulo VI, em Bogotá, na celebração eucarística do Dia do Desenvolvimento, 23 de agosto de 1968) . De sua atitude depende, portanto, em grande parte, o pacífico porvir dos países da América Latina.
São também responsáveis pela injustiça todos os que não agem em favor da justiça na medida dos meios de que dispõem, e ficam passivos por temerem os sacrifícios e riscos pessoais que implica toda ação audaciosa e realmente eficaz. A justiça e conseqüentemente a paz conquista-se por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes, impotentes nos seus projetos sociais, sem o apoio popular. Finalmente, nos dirigimos aos que, diante da gravidade da injustiça e da reação ilegítima às mudanças, colocam suas esperanças na violência. Reconhecemos que sua atitude, como diz Paulo VI, "tem freqüentemente sua última motivação em nobres impulsos de justiça e solidariedade" (Discurso de Paulo VI, em Bogotá, celebração eucarística do Dia do Desenvolvimento, 23 de agosto de 1968). Não falamos, aqui, por puro verbalismo que não implica em nenhuma responsabilidade pessoal e afasta as ações pacíficas e fecundas imediatamente realizáveis . . . É verdade que a insurreição revolucionária pode ser legítima no caso «de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa e danificasse perigosamente o bem comum do país» (PP 31) - provenha esta tirania de uma pessoa ou de estruturas evidentemente injustas, - também é certo que a violência ou "revolução armada" geralmente «acarreta novas injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas: não se pode combater um mal real ao preço de um mal maior» (PP 31) . Se considerarmos, então, o conjunto das circunstâncias de nossos países e levarmos em conta a preferência dos cristãos pela paz, a enorme dificuldade da guerra civil, sua lógica de violência, os males cruéis que provoca, o perigo de atrair a intervenção estrangeira - por mais ilegítima que seja, - a dificuldade de construir um regime de justiça e de liberdade, através de um processo de violência, ansiamos que o dinamismo do povo conscientizado ponha-se a serviço da justiça e da paz. Fazemos nossas, finalmente, as palavras do Santo Padre, dirigidas aos sacerdotes e diáconos em Bogotá, quando referindo-se a todos os que sofrem, lhes disse: «Seremos capazes de compreender suas angústias e transformá-las não em ódio e violência, mas em energia forte e pacífica para obras construtivas».
Conclusões pastorais
Diante das tensões que ameaçam a paz, chegando inclusive a insinuar a tentação da violência; diante da concepção cristã da paz que ficou descrita acima, cremos que o Episcopado latino-americano não pode deixar de assumir responsabilidades bem concretas, porque criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusória, é uma tarefa eminentemente cristã. A nós, pastores da Igreja, cumpre educar as consciências, inspirar, estimular e ajudar a orientar todas as iniciativas que contribuem para a formação do homem. Cumpre-nos também denunciar todos aqueles que ao irem contra a justiça, destroem a paz.
Neste espírito cremos oportuno avançar as seguintes linhas pastorais: