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Bispos da América Latina
CONCLUSÕES DE MEDELLIN

XIV. POBREZA DA IGREJA

    a. Realidade Latino-americana

  1. O Episcopado Latino-americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana.

  2. Um surdo clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte. «Agora nos estais escutando em silêncio, mas ouvimos o grito que sobe de vosso sofrimento», disse o papa aos camponeses colombianos. E chegam igualmente até nós as queixas de que a hierarquia, o clero e os religiosos, são ricos e aliados dos ricos. Sobre isso devemos esclarecer que com muita freqüência se confunde a aparência com a realidade. Muitos fatores têm contribuído para a formação desta imagem de uma Igreja hierárquica rica. Os grandes edifícios, as residências dos párocos e religiosos, quando são superiores às dos bairros em que vivem; os veículos próprios, às vezes luxuosos; a maneira de vestir herdada de outras épocas, são alguns desses fatores.

    O sistema de espórtulas e pensões escolares para o sustento do clero e para a manutenção das obras educacionais, tornam-se mal vistos e até têm contribuído para a formação de uma opinião exagerada sobre o montante das somas percebidas.

    Acrescentamos a isso o exagerado sigilo em que se tem mantido o movimento econômico de colégios, paróquias e dioceses, ambiente de mistério que agiganta as sombras e ajuda a criar fantasias; e casos isolados de condenável enriquecimento que foram generalizados.

    Tudo isso tem levado à convicção de que a Igreja, na América Latina, é rica.

  3. Na realidade, muitíssimas paróquias e dioceses vi­vem tremendamente pobres. Há casos de muitos bispos, sa­cerdotes e religiosos que vivem cheios de privações e que se entregam com grande abnegação ao serviço dos pobres. Isso escapa, em geral, à apreciação de muitos e não conse­gue dissipar a imagem deformada que persiste.

    No contexto de pobreza e até de miséria em que vive a grande maioria do povo latino-americano, os bispos, sa­cerdotes e religiosos temos o necessário para a vida e certa segurança, enquanto os pobres carecem do indispen­sável e se debatem entre a angústia e a incerteza. E não faltam casos em que os pobres sentem que seus bispos, párocos e religiosos, não se identificam realmente com eles, com seus problemas e angústias, e que nem sempre apoiam os que trabalham com eles ou defendem sua sorte.

    b. Motivação doutrinária

  4. Devemos distinguir:

    1. A pobreza coco carência dos bens deste mundo, ne­cessários para uma vida humana digna é um mal em si. Os profetas a denunciam como contrária à vontade do Senhor e, muitas vezes, como fruto da injustiça e do peca­do dos homens.

    2. A pobreza espiritual, que é o tema dos pobres de Javé (of. Sof 2,3; Magnificat) . A pobreza espiritual é a atitude de abertura para Deus, a disponibilidade de quem tudo espera do Senhor (of. Ml 5). Embora valorize os bens deste mundo, não se apega a eles e reconhece o valor superior dos bens do Reino (of. Am 2,6-7; 4,1; 5,7; Jer 5,28; Miq 6,12-13; Is 10,2 etc).

    3. A pobreza como compromisso, assumida voluntaria­mente e por amor à condição dos necessitados deste mun­do, para testemunhar o mal que ela representa e a liber­dade espiritual frente aos bens do Reino. Continua, nisto, o exemplo de Cristo, que fez suas todas as conseqüências da condição pecadora dos homens (of. Flp 2) e que sendo «rico se fez pobre» (2 Cor 8,9) para salvar-nos.

    Neste contexto, uma Igreja pobre:

    • Denuncia a carência injusta dos bens deste mun­do e o pecado que a engendra.

    • Prega e vive a pobreza espiritual como atitude de infância espiritual e abertura para o Senhor.

    • Compromete-se ela mesma com a pobreza material. A pobreza da Igreja é, com efeito, uma constante na história da salvação.

  5. Todos os membros da Igreja são chamados a viver a pobreza evangélica. Mas nem todos da mesma maneira, pois nela há diversidade de vocações, que comportam di­versos estilos de vida e diversas formas de agir. Entre os próprios religiosos, que têm a missão especial de dar tes­temunho da pobreza, há diferenças segundo os carismas mais próprios.

  6. Dito tudo isso, é necessário salientar que o exem­plo e o ensinamento de Jesus, a situação angustiosa de milhões de pobres na América Latina, as incisivas exor­tações do papa e do Concílio, põem a Igreja latino-ameri­cana ante um desafio e uma missão a que não pode fugir e à qual deve responder com a diligência e audácia ade­quadas à urgência dos tempos. Cristo, nosso Salvador, não só amou aos pobres, mas também, «sendo rico se fez po­bre», viveu na pobreza, centralizando sua missão no anún­cio da libertação aos pobres e fundou sua Igreja como sinal dessa pobreza entre os homens.

    A Igreja sempre tem procurado cumprir essa voca­ção, não obstante «tantas debilidades e fracassos nossos, no passado” (ES 50). A Igreja da América Latina, dadas às condições de pobreza e subdesenvolvimento do conti­nente, sente a urgência de traduzir esse espírito de pobre­za em gestos, atitudes e normas, que a tornem um sinal mais lúcido e autêntico do Senhor. A pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo.

    A situação atual exige, pois, dos bispos, sacerdotes, religiosos e leigos o espírito de pobreza que «rompendo as amarras da posse egoísta dos bens temporais, estimu­la o cristianismo a dispor organicamente da economia e do poder em benefício da comunidade (Paulo VI, 23-7-68) .

    «A pobreza da Igreja e de seus membros na América Latina deve ser sinal e compromisso. Sinal do valor ines­timável do pobre aos olhos de Deus; compromisso de so­lidariedade com os que sofrem». (ibid.)

    c. Orientações pastorais

  7. Por tudo isso queremos que a Igreja da América Latina seja evangelizadora e solidária com os pobres, tes­temunha do valor dos bens do Reino e humilde servido­ra de todos os homens de nossos povos. Seus pastores e demais membros do Povo de Deus hão de dar à sua vida, suas palavras, suas atitudes e sua ação, a coerência neces­sária com as exigências evangélicas e as necessidades dos homens latino-americanos.

  8. Preferência e solidariedade: o mandato particular do Senhor, que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-nos a uma distribuição tal de esforços e de pessoal apostólico, que deve visar, preferencialmente, os setores mais pobres e necessitados e os povos segregados por uma causa ou outra, estimu­lando e acelerando as iniciativas e estudos que com esse fim se realizem.

    Queremos, como bispos, nos aproximar cada vez com maior simplicidade e sincera fraternidade, dos pobres, tor­nando possível e acolhedor o seu acesso até nós.

    Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres; exigência da cari­dade. Esta solidariedade implica em tornar nossos seus problemas e suas lutas e em saber falar por eles.

    Isto há de se concretizar na denúncia da injustiça e da opressão, na luta contra a intolerável situação supor­tada freqüentemente pelo pobre, na disposição de dialo­gar com os grupos responsáveis por essa situação, para faz-los compreender suas obrigações.

    Expressamos nosso desejo de estar sempre bem perto dos que trabalham no abnegado apostolado dos pobres, para que sintam nosso estímulo e saibam que não ouvire­mos vozes interessadas em denegrir seu trabalho.

    A promoção humana há de ser a linha de nossa ação em favor do pobre, respeitando sua dignidade pessoal, ensinando-lhe a ajudar-se a si mesmo. Com esse fim, reco­nhecemos a necessidade da estruturação racional de nos­sa pastoral e da integração de nosso esforço com os esfor­ços de outras entidades.

  9. Testemunho: desejamos que nossa habitação e estilo de vida se­jam modestos; nossa indumentária, simples; nossas obras e instituições funcionais, sem aparato nem ostentação.

    Pedimos aos sacerdotes e fiéis que nos dêem um tra­tamento que convenha à nossa missão de padres e pasto­res, pois desejamos renunciar a títulos honoríficos pró­prios de outras épocas.

    Com o auxílio de todo o povo de Deus, esperamos su­perar o sistema de espórtulas, substituindo-o por outras formas de cooperação econômica, desligadas da adminis­tração dos sacramentos.

    A administração dos bens diocesanos ou paroquiais deverá ser integrada por leigos competentes e dirigida, da melhor forma possível, para o bem de toda a comuni­dade (PO 17) .

    Em nossa missão pastoral, confiaremos antes de tudo na força da Palavra de Deus; quando tivermos que em­pregar meios técnicos buscaremos os mais adequados ao ambiente em que devam ser usados e os colocaremos a serviço da comunidade (GS 69):

    1. Exortamos os sacerdotes a darem, também, tes­temunho de pobreza e desprendimento dos bens materiais como o fazem tantos, particularmente, em regiões rurais e em bairros pobres. Com empenho, procuraremos fazer com que tenham um justo, embora modesto, susten­to e a necessária assistência social. Para isso, procurare­mos criar um fundo comum levantado de todas as paró­quias e da própria diocese e das dioceses de todo o país (PO 21).

      Estimularemos os que se sentem chamados a com­partilhar da sorte dos pobres, vivendo com eles e traba­lhando com suas próprias mãos, de acordo com o decreto Presbyterorum Ordinis (n. 8).

    2. As comunidades religiosas, por especial vocação, devem dar testemunho da pobreza de Cristo. Recebam nosso estímulo as que se sintam chamadas a formar, en­tre seus membros, pequenas comunidades, encarnadas real­mente nos ambientes pobres; serão um chamado contínuo à pobreza evangélica dirigido a todo o Povo de Deus.

      Esperamos, também, que possam cada vez mais fa­zer participar de seus bens os outros, especialmente os mais necessitados, repartindo com eles não só o supér­fluo, mas também o necessário e dispostos a colocar a serviço da comunidade humana os prédios e instrumen­tos de suas obras (GS 68).

      A distinção entre o que pertence à comunidade e o que pertence às obras, permitirá a realização de tudo isto com maior facilidade. Igualmente, permitirá buscar no­vas formas para essas obras, da qual participem também outros membros da comunidade crista, em sua adminis­tração ou propriedade.

    3. Estes exemplos autênticos de desprendimento e liberdade de espírito, fará com que os demais membros do Povo de Deus dêem testemunho análogo de .pobreza. Uma sincera conversão terá que modificar a mentalidade índividualista em outra de sentido social e preocupação pelo bem comum. A educação da infância e da juventude, em todos os níveis, começando pelo lugar, deve ser in­cluída neste aspecto fundamental da vida cristã.

      Este sentimento de amor ao próximo é efetivo quan­do se estuda e se trabalha tendo em vista a preparação ou a realização de um serviço para a comunidade; quan­do se trata de render e produzir mais para maior bene­fício da comunidade; quando se dispõe organicamente a economia e o poder em benefício da comunidade.

  10. Serviço: a Igreja não é impulsionada por nenhuma ambição terrena. O que ela quer é ser humilde servidora de todos os homens (GS 3; Paulo VI, 7-12-65).

    Precisamos acentuar esse espírito em nossa América Latina.

    Queremos que nossa Igreja latino-americana esteja livre de peias temporais, de conveniências indevidas e de prestígio ambíguo; que livre pelo espírito dos vínculos da riqueza (Paulo VI, 24-8-68), seja mais transparente e for­te sua missão de serviço; que esteja presente na vida e nas tarefas temporais, refletindo a luz de Cristo, presen­te na construção do mundo.

    Queremos reconhecer todo o valor e autonomia le­gítima das tarefas temporais; servindo-nos delas, não que­remos desvirtuá-las nem desviá-las de seus próprios fins (GS 38). Desejamos respeitar sinceramente a todos os ho­mens, escutando-os para servi-tos em todos os seus pro­blemas e angústias (GS 1,3) . Assim, a Igreja, continua­dora da obra de Cristo, «que sendo rico se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (2 Cor 8,9), apresentará ao mundo um sinal claro e inequívoco da po­breza do Senhor.