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Constituição Dogmática
LUMEN GENTIUM
do Concílio Vaticano II
sobre a Igreja ("De Ecclesia")

II. O POVO DE DEUS

A nova aliança e o novo povo

9. Em qualquer tempo e nação, é aceito por Deus todo aquele que o teme e pratica a justiça (cf. At 10,35). Aprouve, no entanto, a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, excluindo toda a relação entre os mesmos, mas formando com eles um povo, que o conhecesse na verdade e o servisse em santidade. E assim escolheu Israel para seu povo, estabeleceu com ele uma aliança, e o foi instruindo gradualmente, manifestando-se a si mesmo e os desígnios da sua vontade, na própria história do povo, santificando-o para si. Tudo isto aconteceu como preparação e figura daquela aliança nova e perfeita, que haveria de ser selada em Cristo, e da revelação mais plena que havia de ser-nos comunicada pelo próprio Verbo de Deus, feito carne. "Eis que vêm os dias (palavra do Senhor), em que estabelecerei com a casa de Israel e a casa de Judá uma aliança nova ... Gravarei no mais profundo do seu ser a minha lei e escrevê-la-ei em seus corações; serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Todos hão de conhecer-me desde o menor ao maior, diz o Senhor" (Jr 31,31-34). Cristo estabeleceu este novo pacto, a nova aliança do seu sangue (cf. 1Cor 11,25), formando, dos judeus e dos gentios, um povo que realizasse a sua própria unidade, não segundo a carne mas no Espírito, e constituísse o novo povo de Deus. Os que crêem em Cristo, renascidos duma semente não corruptível mas incorruptível pela palavra do Deus vivo (cf. lPd 1,23), não da carne mas da água e do Espírito Santo (cf. Jo 3,5-6), vêm a constituir "a estirpe eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo conquistado... que em tempos não o era, mas agora é o povo de Deus" (lPd 2,9-10).

Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, "o qual foi entregue por causa dos nossos crimes e ressuscitou para nossa justificação" (Rm 4,25), e que, havendo recebido um nome que está acima de todo o nome, reina já gloriosamente nos céus. A sua condição é a da dignidade e da liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como num templo. Tem por lei o mandamento novo, de amar como Cristo nos amou (cf. Jo 13,34); e tem por fim, o reino de Deus, começado já na terra pelo próprio Deus mas que deve ser continuamente desenvolvido até ser também por ele consumado no fim dos tempos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf. Cl 3,4), e toda a criação for libertada da escravidão da corrupção, para a "liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8,21). Assim o povo messiânico, ainda que não abranja atualmente os homens todos e repetidas vezes seja mencionado como um pequeno rebanho, é para toda a humanidade um germe fecundíssimo de unidade, de esperança e de salvação. Constituído por Cristo em ordem à comunhão de vida, de amor e de verdade, é, nas mãos do mesmo Cristo, instrumento da redenção universal, e é enviado ao mundo inteiro como luz do mesmo mundo e sal da terra (cf. Mt 5,13-16).

Do mesmo modo que Israel segundo a carne, peregrino no deserto, é já chamado Igreja de Deus (2Esd 13,1; cf. Nm 20,4; Dt 23,l ss), assim também o novo Israel do tempo atual, que anda em busca da cidade futura e permanente (cf. Hb 13,14), se chama Igreja de Cristo (cf. Mt 16,18), porque ele a conquistou com seu sangue (cf. At 20,28), a encheu do seu Espírito e a dotou com meios aptos para uma união visível e social. Deus convocou todos aqueles que em Jesus vêem, com fé, o autor da salvação e o princípio da unidade e da paz, e com eles constituiu a Igreja, a fim de que ela seja, para todos e cada um, o sacramento visível desta unidade salvadora. (1) A Igreja deve estender-se a todas as regiões; entra na história dos homens, ao mesmo tempo que transcende o próprio tempo e os confins dos povos. E ao caminhar por entre as tentações e as provas, ela é fortalecida pelo conforto da graça de Deus, que o Senhor lhe prometera, para que, na fraqueza da carne, se não afaste da fidelidade perfeita, mas se conserve sempre como esposa digna do seu Senhor e não deixe nunca de renovar-se pela ação do Espírito Santo, até que, pela cruz, atinja aquela luz que não conhece ocaso.

Sacerdócio comum

10. Cristo Senhor, Pontífice tomado de entre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo povo "um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai" (cf. Ap 1,6; cf. 5,9-10). Pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, os batizados consagram-se para serem edifício espiritual e sacerdócio santo, a fim de, através de toda a sua atividade cristã, oferecerem sacrifícios espirituais e proclamarem as grandezas daquele que das trevas os chamou para a sua luz maravilhosa (cf. lPd 2,4-10). Assim, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e no louvor de Deus (cf. At 2,42-47), ofereçam-se também a si mesmos como hóstia viva, santa, agradável a Deus (cf. Rm 12,1); dêem testemunho de Cristo em toda a parte; e, àqueles que por isso se interessarem, falem da esperança que possuem, na vida eterna (cf. lPd 3,15).

O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de diferirem entre si essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se um para o outro mutuamente; de fato, ambos participam, cada qual a seu modo; do sacerdócio único de Cristo. (2) O sacerdote ministerial, pelo poder sagrado de que é investido, organiza e rege o povo de Deus, em nome de todo o povo; por seu lado os fiéis, em virtude do seu sacerdócio régio, (3) têm também parte na oblação da eucaristia e exercem o mesmo sacerdócio na recepção dos sacramentos, na oração e na ação de graças, através do testemunho duma vida santa, da abnegação e da caridade operante.

O exercício do sacerdócio comum nos sacramentos

11. A índole sagrada e orgânica da comunidade sacerdotal exerce-se nos sacramentos e na prática das virtudes. Os fiéis, incorporados na Igreja pelo batismo, recebem o caráter que os delega para o culto cristão, e, renascidos como filhos de Deus, são obrigados a professar diante dos homens a fé que pela Igreja receberam de Deus. (4) Pelo sacramento da confirmação vinculam-se mais perfeitamente à Igreja e recebem especial vigor do Espírito Santo. Ficam assim mais seriamente comprometidos, como testemunhas verdadeiras de Cristo, a difundir e defender a fé por palavras e por obras. (5) Participando no sacrifício eucarístico, que é fonte e ponto culminante de toda a vida cristã, oferecem a Deus a Vítima divina, e oferecem-se a si mesmos com ela: (6) e assim, tanto pela oblação como pela sagrada comunhão, todos realizam a sua parte própria na ação litúrgica, não de maneira igual, mas cada qual a seu modo. E, fortificados com o corpo de Cristo na sagrada comunhão, manifestam de forma concreta a unidade do povo de Deus, convenientemente operada por este sacramento augustíssimo.

Aqueles que se aproximam do sacramento da penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa que lhe fizeram e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja que feriram pelo pecado, a qual procura levá-los à conversão pela caridade, pelo exemplo e pela oração. Pela santa unção dos enfermos e a oração dos sacerdotes, toda a Igreja encomenda os doentes ao Senhor, que sofreu e foi glorificado, para que ele os alivie e salve (cf. Tg 5,14-16), e exorta-os a unirem-se livremente à paixão e morte de Cristo (cf. Rm 8,17; Cl 1,24; 2Tm 2,11-12; lPd 4,13), e a contribuírem assim para o bem do povo de Deus. Por sua vez, os fiéis que chegam a receber as sagradas ordens, ficam, em nome de Cristo, destinados a apascentar a Igreja, com a palavra e a graça de Deus.

Finalmente os esposos cristãos, pela virtude do sacramento do matrimônio, que faz com que eles sejam símbolos do mistério de unidade e de amor fecundo entre Cristo e a Igreja, e que do mesmo mistério participem (cf. Ef 5,32), ajudam-se mutuamente a conseguir a santidade na vida conjugal e na aceitação e educação dos filhos, e gozam, para isso, no estado e na função que lhes são próprios, de um dom característico dentro do povo de Deus (cf. 1Cor 7,7). (7) É realmente desta união que procede a família, na qual para a sociedade humana nascem os novos cidadãos, os quais - pela graça do Espírito Santo e para perpetuarem através dos séculos o povo de Deus - pelo batismo se tornam filhos de Deus. É necessário que nesta, que bem pode chamar-se Igreja doméstica, os pais sejam para os filhos, através da palavra e do exemplo, os primeiros arautos da fé, e fomentem a vocação própria de cada um, com especial cuidado a vocação sagrada.

Dispondo de meios tão numerosos e eficazes, todos os cristãos, qualquer que seja a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor a procurarem, cada um por seu caminho, a perfeição daquela santidade pela qual é perfeito o próprio Pai celeste.

O sentido da fé e os carismas do povo cristão

12. O povo santo de Deus participa também da missão profética de Cristo: dá testemunho vivo dele especialmente pela vida de fé e de caridade, e oferece a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que glorificam o seu nome (cf. Hb 13, 15). A totalidade dos fiéis, que possuem a unção que vem do Espírito Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se na fé, e manifesta esta sua propriedade característica através do sentido sobrenatural da fé do povo inteiro, quando desde os bispos até' aos últimos fiéis leigos", (8) exprime o seu consenso universal a respeito das verdades de fé e costumes. Graças a este sentido da fé, que tem a sua origem e o seu alimento no Espírito de verdade, o povo de Deus, sob a orientação do sagrado magistério e na fiel obediência ao mesmo, recebe, não uma palavra humana, mas a palavra de Deus (cf. lTs 2,13), adere indefectivelmente à fé, transmitida aos santos duma vez para sempre (cf. Jd 3), penetra-a mais profunda e convenientemente, e transpõe-na para a vida com maior intensidade.

Além disso, o mesmo Espírito Santo não se limita a santificar e a dirigir o povo de Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, e a orná-lo com as virtudes, mas também, nos fiéis de todas as classes, - distribui individualmente e a cada um, conforme entende", os seus dons (1Cor 12,11), e as graças especiais, que os tornam aptos e disponíveis para assumir os diversos cargos e ofícios úteis à renovação e maior incremento da Igreja, segundo aquelas palavras: "A cada qual se concede a manifestação do Espírito para utilidade comum" (1Cor 12,7). Devem aceitar-se estes carismas com ação de graças e consolação, pois todos, desde os mais extraordinários aos mais simples e comuns, são perfeitamente acomodados e úteis às necessidades da Igreja. Não devemos pedir temerariamente estes dons, nem esperar deles com presunção os frutos das obras apostólicas; é aos que governam a Igreja que pertence julgar da sua genuinidade e da conveniência do seu uso, e cuidar especialmente de não extinguir o espírito, mas tudo ponderar, e reter o que é bom (cf. lTs 5,12-21 e 19-21).

A universalidade ou catolicidade do único povo de Deus

13. Todos os homens são chamados ao povo de Deus. É por isso que este povo, permanecendo uno e único, deve dilatar-se até os confins do mundo inteiro e em todos os tempos, para se dar cumprimento ao desígnio de Deus que, no princípio, criou a natureza humana e decidiu congregar finalmente na unidade todos os seus filhos que andavam dispersos (cf. Jo 11,52). Para isto mandou Deus o seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas (cf. Hb 1,2), para ser o Mestre, o Rei e o Sacerdote de todos, a cabeça do povo novo e universal dos filhos de Deus. Para isto, enfim, mandou Deus o Espírito do seu Filho, o Espírito soberano e vivificante que é para toda a Igreja e para todos e cada um dos crentes, o princípio da aglutinação e da unidade na doutrina dos apóstolos, na união fraterna, na fração do pão e nas orações (cf. At 2,42, grego).

Assim, o único povo de Deus estende-se a todos os povos da terra, dentre os quais vai buscar os seus membros, cidadãos dum reino, de natureza celeste e não terrena. De fato, todos os fiéis espalhados pelo mundo mantêm-se em comunhão com os demais no Espírito Santo e assim "aquele que reside em Roma sabe que os índios são membros seus". (9) Mas porque o reino de Deus não é deste mundo (cf. Jo 18,36), a Igreja, o povo de Deus, instaurando este reino não subtrai nada ao bem temporal de cada povo, antes, pelo contrário, fomenta e assume as possibilidades, os recursos e o estilo de vida dos povos, naquilo que têm de bom, e, ao assumi-los, purifica-os, consolida-os e eleva-os. Ela sabe que tem de recolher com aquele Rei a quem todos os povos foram dados por herança (cf. Sl 2,8) e para cuja cidade levam os seus dons e as suas ofertas (cf. Sl 71 (72) ,10; Is 60,4-7; Ap 21, 24). Este caráter de universalidade que distingue o povo de Deus, é um dom do Senhor, graças ao qual a Igreja tende constante e eficazmente para congregar em Cristo, sua cabeça, na unidade do Espirito, (10) a humanidade inteira, com tudo o que ela tem de bom.

Por força desta catolicidade cada parte contribui com os seus dons peculiares para as demais e para toda a Igreja, de modo que o todo e cada parte crescem por comunicação mútua e pelo esforço comum em ordem a alcançar a plenitude na unidade. É por isso que o povo de Deus não só reúne povos diversos, mas ainda comporta em si mesmo variedade orgânica. Entre os seus membros reina a diversidade, quer nos cargos, e assim alguns exercem o sagrado ministério para o bem dos seus irmãos, quer na condição e no modo de vida, e assim muitos no estado religioso, procurando a santidade por um caminho mais estreito, são um estímulo e exemplo para os seus irmãos. É ainda por este motivo que existem legitimamente, no seio da comunhão eclesial, Igrejas particulares, gozando de tradições próprias, sem prejuízo do primado da Sé de Pedro, que preside à comunhão universal da caridade, (11) protege as diversidades legítimas e vela para que as particularidades, não só não prejudiquem a unidade, mas para ela contribuam mesmo positivamente.

Daí, enfim, haver entre as diversas partes da Igreja vínculos de comunhão íntima quanto às riquezas espirituais e quanto à distribuição dos operários apostólicos e dos recursos materiais. Os membros do povo de Deus são realmente chamados a porem em comum os seus bens, e a cada uma das Igrejas se aplicam as palavras do apóstolo: "Servir aos outros, cada qual na medida do dom que recebeu, comunicando-o uns aos outros como bons administradores da multiforme graça de Deus" (lPd 4,10).

A esta unidade católica do povo de Deus, que prefigura e promove a paz universal, são chamados todos os homens: a ela pertencem ou para ela se orientam, embora de maneira diferente, tanto os católicos como todos os cristãos, e mesmo todos os homens em geral, chamados pela graça de Deus à salvação.

Os fiéis católicos

14. Em primeiro lugar, é aos fiéis católicos que o santo Concílio dirige o pensamento. Apoiado na Sagrada Escritura e na Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação: ora, ele torna-se-nos presente no seu corpo que é a Igreja; e, ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do batismo (cf Mc 16,16; Jo 3,5), ao mesmo tempo corroborou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pela porta do batismo. Por conseguinte, não poderão salvar-se aqueles que se recusam a entrar ou, a perseverar na Igreja católica, sabendo que Deus a fundou por Jesus Cristo como necessária à salvação.

São incorporados plenamente na sociedade, que é a Igreja, todos os que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam integralmente a organização da mesma e todos os meios de salvação nela instituídos, e que, além disso, graças aos vínculos da profissão de fé , dos sacramentos, do governo e da comunhão eclesial, permanecem unidos, no conjunto visível da Igreja, com Cristo, que a rege por meio do Sumo Pontífice e dos bispos. Não se salvam, porém, os que, embora incorporados na Igreja, não perseveram na caridade, e por isso pertencem ao seio da Igreja não pelo "coração" mas tão-só pelo "corpo". (12) Lembrem-se todos os filhos da Igreja que a grandeza da sua condição não se deve atribuir aos próprios méritos, mas a uma graça especial de Cristo; se não correspondem a essa graça por pensamentos, palavras e obras, em vez de se salvarem, incorrem num juízo mais severo. (13)

Os catecúmenos que, sob a ação do Espírito Santo, desejam e querem expressamente ser incorporados na Igreja, já em virtude deste desejo lhe estão unidos. E a Igreja, como mãe, já lhes dedica o seu amor e os seus cuidados.

As relações da Igreja com os cristãos não católicos

15. Por múltiplas razões a Igreja reconhece-se unida aos batizados que se honram do nome de cristãos, mas não professam integralmente a fé, ou não mantêm a unidade de comunhão sob o sucessor de Pedro. (14) Há muitos que veneram a Sagrada Escritura como norma de fé e de vida, manifestam sincero zelo religioso, crêem de todo o coração em Deus-Pai Onipotente e em Cristo Filho de Deus e Salvador, (15) são marcados pelo batismo que os une a Cristo, e admitem mesmo outros sacramentos e recebem-nos nas suas igrejas próprias ou nas suas comunidades eclesiais. Vários dentre eles possuem também o episcopado, celebram a sagrada eucaristia, e cultivam a devoção pela Virgem Mãe de Deus. (16) A isto se junta ainda a comunhão de orações e de outros benefícios espirituais; e mesmo certa união verdadeira no Espírito Santo que, também neles, opera com o seu poder santificante por meio de dons e graças, e a alguns fortaleceu até à efusão do sangue. Assim, o Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a ação, para que todos, do modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente, num só rebanho, sob um único Pastor. (17) Para o conseguir, a Igreja, verdadeira mãe, não deixa de rezar, de esperar, e de atuar, exortando os seus filhos a purificarem-se e a renovarem-se, para que sobre a sua face resplandeça mais brilhante o sinal de Cristo.

Os não cristãos

16. Por último, também aqueles que ainda não receberam o Evangelho estão destinados, de modos diversos, a formarem parte do povo de Deus. (18) Em primeiro lugar, aquele povo que foi objeto das alianças e promessas, e do qual Cristo nasceu segundo a carne (Rm 9,4-5); povo em virtude da sua eleição tão amado por causa dos patriarcas: pois os dons e os chamamentos de Deus são irrevogáveis (cf. Rm 11, 28-29). Mas o desígnio de salvação abrange igualmente aqueles que reconhecem o Criador, em particular os muçulmanos, que, professando manter a fé de Abraão, adoram conosco um Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia. Nem mesmo dos outros, que buscam ainda nas sombras e em imagens o Deus desconhecido, está longe esse mesmo Deus, pois ele é quem a todos dá a vida e a ressurreição e tudo o mais (cf. At 17,25-28), e quem, como Salvador, quer que todos os homens sejam salvos (cf. lTm 2,4). Aqueles que ignoram sem culpa o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, mas buscam a Deus na sinceridade do coração, e se esforçam. sob a ação da graça, por cumprir na vida a sua vontade, conhecida através dos ditames da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna. (19) Nem a divina providência nega os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram com a graça divina viver retamente. De fato, tudo o que neles há de bom e de verdadeiro, considera-o a Igreja como preparação evangélica (20) e dom daquele que ilumina todo o homem para que afinal venha a ter vida. Contudo, os homens, muitas vezes enganados pelo demônio, entregaram-se a pensamentos vãos e trocaram a verdade de Deus pela mentira, servindo mais às criaturas que ao Criador (cf. Rm 1,21 e 25); ou então vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, expõem-se à desesperação final. Por isso, solícita da glória de Deus e da salvação de todos, a Igreja, lembrada do mandamento do Senhor: Pregai o Evangelho a toda criatura (Mc 16,15), põe todo seu cuidado em desenvolver as missões.

O caráter missionário da Igreja

17. Assim como fora enviado pelo Pai, assim também o Filho enviou os apóstolos (cf. Jo 20,21), dizendo: "Ide pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo aquilo que vos mandei. E eis que eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos" (Mt 28,18-20). Este mandamento solene de Cristo, de anunciar a verdade da salvação, recebeu-o a Igreja dos apóstolos para lhe dar cumprimento até aos confins da terra (cf. At 1,8); por isso faz suas as palavras do Apóstolo: Ai de mim se não evangelizar!" (1Cor 9,16), e continua, sem descanso, a enviar arautos do Evangelho, até que as jovens Igrejas fiquem perfeitamente estabelecidas, e continuem por si mesmas a obra de evangelização. O Espírito Santo impele-a a cooperar na realização do propósito de Deus, que estabeleceu Cristo como princípio de salvação para o mundo inteiro. Pregando o Evangelho, a Igreja dispõe os ouvintes para crerem e confessarem a fé, prepara-os para o batismo, liberta-os da escravidão do erro e incorpora-os a Cristo, para que, amando-o, cresçam até à plenitude. E consegue que tudo o que há de bom no coração e na mente dos homens, ou nos ritos e nas culturas próprias de cada povo, não só não pereça, mas se purifique, se eleve e aperfeiçoe, para glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem. Cada discípulo de Cristo participa na responsabilidade de propagar a fé; (21) mas se o batismo pode ser administrado aos crentes por qualquer pessoa, é ao sacerdote que compete acabar a edificação do corpo com o sacrifício eucarístico, cumprindo as palavras de Deus pelo Profeta: "Do Oriente ao Ocidente o meu nome é grande entre as nações, e em todos os lugares é oferecido ao meu nome um sacrifício e uma oblação pura (MI 1,11). (22) Assim a Igreja conjuga operações e esforços para que o mundo inteiro se transforme em povo de Deus, corpo do Senhor e templo do Espírito Santo, e para que em Cristo, cabeça de todos, seja dada ao Pai e Criador do universo toda a honra e toda a glória.


Notas:

    (1) Cf. São Cipriano, Epist. 69, 6: PL 3, 1142 D; Hartel 3 B, p. 754; "inseparabile unitatis sacramentum".
    (2) Cf. Pio XII, AIoc. Magnificate Dominum, 2 nov. 1954: AAS 46 (1954) p. 669. Carta Enc. Mediator Dei, 20 nov. 1947: AAS 39 (1947) p. 555.
    (3) Cf. Pio XI, Carta Enc. Miserentissimus Redemptor, 8 maio 1928:, AAS 20 (1928) p. 171 ss. Pio XII, Aloc. Vous vous avez, 22 set. 1956: AAS 48 (1956) p. 714.
    (4) Cf. Santo Tomás, Summa Theol. III, q. 63, a. 2.
    (5) Cf. São Cirilo de Jerusalém, Catech. 17, de Spiritu Sancto, II, 35-37: PG 33, 1009-1012. Nicolau Cabásilas, De Vita in Christo, liv. III, de utilitate chrismatis: PG 150, 569-580. Santo Tomás, Summa Theol. III, q. 65, a. 3 e q. 72, a. 1 e 5.
    (6) Cf. Pio XII, Carta Enc. Mediator Dei, 20 nov. 1947: AAS 39 (1947), principalmente p. 552 ss.
    (7) 1Cor 7,7: "Unusquisque proprium donum (idion charisma) habet ex Deo: alius quidem sic, alius vero sic". Cf. Santo Agostinho, De Dono Persev., 14, 37: PL 45, 1015 88. - "Non tantum continentia Dei donum est, sed coniugatorum etiam castitas".
    (8) Cf. Santo Agostinho, De Praed. Sanct., 14, 27: PL 44, 980.
    (9) Cf. São João Crisóstomo, ln lo. Hom. 65, 1: PG 59, 361.
    (10) Cf. santo Irineu, Adv. Haer. III. 16, 6; III, 22, 1-3: PG 7, 925 C-926 A e 958 A; Harvey 2, 87 e 120-123. Sagnard, Ed. Sources Chrét., pp. 290-292 e 372 ss.
    (11) Santo Inácio Mart. Ad Mom., praef.: Ed. Funk, 1, p. 252.
    (12) Cf. Santo Agostinho, Bapt. c. Donat., V, 28,39: PL 43, 197: "Certe manifestum est, id quod dicitur, in Ecclesia intus et foris, in corde, non in corpore cogitandum". Cf. ib., III,' 19, 26 col. 152; V, 18, 24: col. 189; in lo., Trat. 61, 2: PL 35, 1800, e muitas vezes noutros lugares.
    (13) Cf. Lc 12,48: "Omnis autem, cui multum datum est, muItum quaeretur ab eo". Cf. também Mt 5,19-20; 7,21-22; 25,41-46; Tg 2,14.
    (14) Leão XIII, Epist. Apost. Praeclara Gratulationis, 20 junho 1894: ASS 26 (1893-94) p. 707.
    (15) Cf. Leão XIII, Epist. Enc. Satis Cognitum, 29 junho 1896: ASS 28 (1895-96) p. 738. Epist. Enc. Caritatis Studium, 25 julho 1898: ASS 31 (1898-99) p. 11. Pio XII, Radiomensagem Nell'alba, 24 dez. 1941: AAS 34 (1942) p. 21.
    (16) Cf. Pio XI, Carta Enc. Rerum Orientalium, 8 set. 1928: AAS 20 (1928) p. 287. Pio XII, Carta Enc. Orientalis Ecclesiae.
    (17) Cf. Instr. S. Ofício, 20 dez. 1949: AAS 42 (1950) p. 142.
    (18) Cf. santo Tomás, Suma Theol. III, q. 8, a. 3, ad 1.
    (19) Cf. Epist. do 5. Ofício ao Arceb. de Boston: Denz 3869-72.
    (20) Cf. Eusébio de Ces., Praeparatio Evangelica, 1,1: PG 21,27 AB.
    (21) Cf. Bento XV, Epist. Apost. Maximum IIIud: AAS 11 (1919) p. 440, principalmente p. 451 55. Pio XI, Carta Enc. Rerum Ecclesiae: AAS 18 (1926) pp. 68-69. Pio XII, Carta Enc. Fidei Donum, 21 abril 1957: AAS 49 (1957) pp. 236-237.
    (22) Cf. Didaquè, 14: ed. Funk, I, p. 32. São Justino, Dial. 41: PG 6, 564. Santo Irineu, Adv. Haer., IV, 17, 5: PG 7, 1023: Harvey 2, p. 1992, 85: Conc. de Trento, Sess. 22, cap. 1; Denz. 939 (1742).