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Autor: Jacques Dupuis Editora: Loyola Páginas: 240 Formato: 21 x 14 cm Preço: * * * Apresentação | O Autor | Conteúdo | Amostra | Maiores Informações | Pedidos via Internet |
» APRESENTAÇÃO
"Quem dizeis que eu sou?" - é a pergunta fundamental de Jesus a seus discípulos.
A mesma pergunta é dirigida hoje a todo aquele que deseja ser cristão.
"Introdução à Cristologia" é uma obra que, em meio a tendências mais ou menos equivocadas ou
reducionistas de ontem e de hoje, procura, à luz das recentes contribuições no campo
cristológico, aprofundar tanto o mistério da pessoa como o próprio sentido do acontecimento
Jesus Cristo na história da humanidade e do mundo.
A obra pretende assinalar uma volta à história humana de Jesus, muitas vezes esquecida pelo
peso excessivo da especulação cristológica. Espera-se, assim, redescobrir alguns aspectos do
mistério de Jesus Cristo nem sempre suficientemente salientados. O mistério de Jesus Cristo
será posto em foco no amplo contexto das tradições religiosas, mostrando que a relação entre
as várias tradições e o mistério de Jesus Cristo abre caminho para uma cristologia das
religiões.
» O AUTOR
Jacques Dupuis (sj) nasceu na Bélgica em 1923. Estudou letras e filosofia nas Facultés
Universitaires de Namur e licenciou-se em filosofia na Universidade de Louvain. Viveu na Índia,
de 1948 a 1984, onde se licenciou em teologia (Kurseong). Fez doutorado em teologia na Pontifícia
Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Lecionou teologia sistemática na Índia durante 25 anos. Em
1984, tornou-se titular dessa matéria na faculdade de teologia da PUG (Roma).
» CONTEÚDO
» AMOSTRA
1. O problema do conhecimento e do desconhecimento
Que tipo de conhecimento humano teve Jesus? Conhecimento
perfeito ou conhecimento limitado?
Ao estudar o conhecimento humano de Jesus, tenha-se em mente
dois poutos: trata-se do conhecimento do Filho de Deus, mas,
por outro lado, o Verbo encarnado, pela quenose, não gozou,
durante os dias terrenos, da "perfeição" (teleiòsis) (cf. Hb 5,9), que
assumiu ressuscitando. Mercê de sua identidade pessoal de Filho de
Deus, algumas perfeições Jesus teve, sem dúvida. Não se esqueça,
porém, de que ele manteve, pela quenose, a natureza humana como tal,
carregando em sua existência humana imperfeições voluntariamente
assumidas.
Hipostaticamente unidas, as duas naturezas não se fundem. A
natureza humana conserva-se integralmente. Com isso, as perfeições
da natureza divina, no caso o conhecimento divino, não são
comunicadas, diretamente, à natureza humana. Mas como as duas
naturezas também não estão separadas uma da outra, o conhecimento
de Jesus é o conhecimento do Filho de Deus. Em suma, as
perfeições do conhecimento de Jesus não devem ser exageradas nem
diminuídas, sem mais. Além disso, o estado quenótico da existência humana
de Jesus deixa perceber que a glória divina (doxa) permanece
recolhida em sua vida terrena, até a hora de sua glorificação. Deixa perceber
também que o Verbo, tendo assumido plenamente a condição concreta
do gênero humano, com exceção do pecado (cf. Hb 4,15),
participa de nossa situação, marcada por sofrimentos e até
pela morte. Livremente, ele assumiu as seqüelas compatíveis do pecado,
transformando-as em instrumento de salvação.
Evidencia-se, pois, que não tem base o "princípio absoluto de
perfeições", tantas vezes aplicado à humanidade de Jesus,
especialmente a seu conhecimento humano.
As perfeições humanas de Jesus são proporcionais a seu
estado querótico e se prendem à sua missão. E é bom lembrar que a
diferença entre o estado querótico de Jesus e seu estado
glorioso reside
numa transformação real. Só na ressurreição estará ele inteiramente
de posse de seu poder messiânico e salvador. E quanto à sua missão,
Jesus, em sua vida terrena, tinha as perfeições e os conhecimentos
humanos necessários para cumpri-la.
Para ver como a tradição apostólica entendeu a humanidade de
Jesus, é essencial retomar os evangelhos. Na realidade eles não
testemunham só as perfeições surpreendentes do homem Jesus, mas
também suas limitações: certos desconhecimentos, a tentação, a
agonia no horto, o grito na cruz... constituem lances tanto mais
confiáveis quanto mais dificuldades poderiam suscitar à fé em Jesus
Cristo, fé que a tradição evangélica visava transmitir.
No fundo, a psicologia humana do Verbo encarnado na quenose
constitui enorme mistério. Como juntar e conciliar nela elementos
que parecem se contrapor e se anular um ao outro? Como afirmar,
ao mesmo tempo, a ausência de pecado e a tentação real, a visão de
Deus e o sentir-se por ele abandonado na cruz, a obediência à
vontade do Pai em sua morte e a liberdade de sua autoentrega?
Nisso tudo, são vãs e despropositadas as deduções apriorísticas. O
necessário é não perder de vista a história de Jesus e de sua missão.
De um lado, ele deve revelar o Pai (Jo 1,18); do outro, deve sofrer
para a salvação da humanidade (Lc 24,26).
Quanto aos conhecimentos de Jesus, a tradição evangélica relata
sua extraordinária perfeição. Ele fala do Pai como alguém que o
está vendo (Jo 1,18). Sua sabedoria espanta já aos doze anos, no
Templo (Lc 2,40). O povo fica estupefato com sua doutrina (Mt
7,28...), ele ensina com autoridade pessoal e única (Mc 1,22).
Revela maravilhosa intimidade com as Escrituras, sem tê-las
estudado formalmente (Jo 7,15). Conhece os segredos dos corações (Lc 6,8).
Prediz o futuro, embora se deva tratar com cautela da predição
de sua morte e ressurreição.
Na síntese de João, Jesus conhecia tudo (Jo 16,30); e Lucas
afirma que o menino Jesus era "cheio de sabedoria" (2,40). Por
outro lado, coutudo, a tradição evangélica atesta que Jesus ganhou
experiência e "crescia em sabedoria" (Lc 2,52). Também saboreava
surpresas, fazia perguntas e chegou a admitir desconhecimentos
(Mt 24,36; Mc 13,32).
Convencidos da falência das deduções apriorísticas, classificadas
de "míticas" por K. Rahner; deveríamos buscar na tradição evangélica
o rumo para uma teologia do conhecimento humano de Jesus. Por
certo, algumas perfeiçães hão de ser reconhecidas nele. Certamente,
sabia de sua identidade pessoal de Filho de Deus e deve ter tido
especial conhecimento do Pai para revelá-lo. Mas que conhecimento
foi esse?
Nem se pode negar, a priori, os limites do saber de Jesus, evidentes
nos Evangelhos, como alguns desconhecimentos e dúvidas, o seu progressp
e suas limitações.
Partindo do "princípio absoluto das perfeições", a teologia
divisou em Jesus três espécies de conhecimento humano perfeito e
universal: a visão beatifica dos bem-aventurados no céu, o
conhecimento infuso (angélico) e o saber da experiência. Jesus, como homem,
sabia tudo de três maneiras diferentes!
Contra tal idealização "mítica", deve-se objetar, primeiro,
que é absurdo atribuir a Jesus a visão dos bem-aventurados se,
durante a vida terrena, ele ainda não atingira o "fim" de sua
caminhada, mas a estava percorrendo. Em segundo lugar, o Verbo de Deus fez-se
homem, não anjo (Hb 2,16). E, por último, é uma contradição terminológica
um conhecimento total gerado pela experiência.
De resto, se Jesus tivesse gozado da visão beatifica durante
a vida inteira, como poderíamos falar do mistério de seu sofrimento e
agonia? Distinguir em seu íntimo de homem "níveis" diferentes e
afirmar "o ápice" no gozo da visão beatifica, enquanto "o plano mais
baixo" ficava sujeito à dor, significa dotar Jesus de uma
"psicologia artificial de diversos planos" que, no final das contas, não
explica nada, já que a visão beatifica invade, essencialmeute, toda a
psicologia humana da pessoa.
Qual a diretriz, no dogma cristológico, para solucionar o problema
da psicologia humana de Jesus? Se o 3º Concílio de Constantinopla
apontou, expressamente, "duas vontades naturais e
duas operações naturais" em Cristo, nenhum concílio cristológico
sentenciou algo parecido em termos de conhecimento duplo: o divino e o humano.
Mas a presença em Jesus de um conhecimento humano faz
parte da doutrina de fé, porque decorrente da integridade da
natureza humana. Aplica-se aqui também o princípio fixado,
primeiramente, pela "Tomus" de São Leão e depois retomado pelo 3º
Concílio de Constantinopla: "Cada natureza realiza em
comunhão com a outra o que lhe é próprio, ou seja, o Verbo opera o que é do
Verbo e a carne o que é da carne".
Neste século, no contexto do modernismo, um decreto do
Santo Ofício, em 1918, declarou que não se pode afirmar com
segurança (tuto) que não há nenhuma prova evidente (non constat) de
que a alma de Jesus, em sua vida terrestre, tenha tido a visão
beatífica dos eleitos (comprehensores). Esse decreto disciplinar visava à
catequese pública. Não pretendia pôr fim ao debate entre os
estudiosos da Cristologia. Antes, tencionava atribuir a Jesus uma visão
"imediata" do Pai, distinta da visão beatifica dos bem-aventurados. O
que importava era o modo pelo qual Jesus conhecia o Pai e não os efeitos
que acompanham a visão dos bem-aventurados que atingiram o fim da
jornada terrena e, com isso, a fruição definitiva de Deus.
A mesma interpretação vale também para a encíclica Mystici
Corporis, de 1943, em que se confere a Jesus a "visão beatífica"
(visio beata) também em sua existência terrena.
2. Por uma solução do problema
a) A visão imediata do Pai
Não se pode provar que Jesus tenha tido a visão beatífica na
terra. Seu conhecimento íntimo do Pai, por mais direto e
imediato que tenha sido, não a pressupõe necessariamente.
A verdade é que Jesus tinha experiência pessoal e humana do
Pai. Proclamando que "eu e o Pai somos um" (Jo 10,30), ele alude
à experiência imediata de relação profunda e pessoal com o Pai,
derivada de sua própria vida divina. Um conhecimento "infuso" ou
"profético" dificilmente explicaria o caráter imediato e íntimo desse
relacionamento pessoal. De outra parte, se esse relacionamento
implica uma visão imediata do Pai, não supõe, obrigatoriamente, o
nível "beatífico", encontrável nos bem-aventurados, dada a fruição
plena que têm de Deus, após alcançarem a meta final de sua
caminhada na terra.
Observe-se, finalmente, que, na tradição cristã, um único texto
de Santo Agostinho (De diversis quaestionibus I,65)
poderia parecer favorável à visão beatífica em
Jesus Cristo, na terra.
Por conseguinte, é preciso garantir que Jesus, nesta vida,
teve "visão imediata" do Pai. Isso, na verdade, fazia parte do
conhecimento humano subjetivo que Jesus possuía de sua filiação divina,
sobre o qual antes se falou. Subjetivamente, Jesus estava consciente de
sua identidade pessoal de Filho ou, por outras palavras, o
Verbo era autoconsciente de maneira humana. O "ego eini" de Jesus,
categórico e absoluto, várias vezes presente no Evangelho de João (8,24;
8,28; 8,58; 13,19), exprime essa consciência subjetiva direta. A visão
intuitiva e imediata do Pai está implicada no autoconhecimento de Jesus
como Filho, mas enquanto esta é consciência subjetiva, aquela é
objetiva.
Assim, torna-se claro que o Filho encarnado vivenciou em sua
consciência humana o mistério de sua relação pessoal e essencial
com o Pai, dentro da vida divina. A consciência subjetiva do
Filho na humanidade implicava o conhecimento objetivo e intuitivo
daquele de quem, no seio da divindade, o Verbo procede como Filho.
Jesus vê o Pai porque, em sua consciência humana, viveu
conscientemente sua relação pessoal de Filho com ele. A consciência pessoal
de Filho envolvia a visão imediata do Pai.
Por várias razões se deve distinguir essa visão imediata da visão
beatífica dos bem-aventurados. Primeiramente, porque se trata do
relacionamento interpessoal e imediato do Filho-como-homem com
seu Pai e não da visão do Deus trino por uma pessoa humana. Na
relação "Eu-Tu" do Pai com o Filho, é o Pai que se torna o "Tu" do
Filho-na-humanidade e não a Trindade o objeto de uma visão do
homem. Contemplando a Trindade no céu, os bem-aventurados dizem:
"Tu és"; na terra, Jesus no "Eu sou" de sua autoconsciência de
Filho vê o Pai e não a si próprio.
Em segundo lugar, a visão imediata do Pai por Jesus não inclui
a fruição beatífica, outorgada aos eleitos pela união definitiva com
Deus, no fim da peregrinação terrestre. Ao contrário, o Jesus terreno,
pré-pascal, está a caminho, rumo ao Pai. Sua alma humana, em
situação quenótica, ainda não logrou a glória divina. A visão imediata
do Pai por Jesus tornar-se-á "beatífica" somente no estado glorioso da
Ressurreição. Entrementes, no estágio quenótico, há espaço para o
sofrimento humano de Jesus, para o mistério de sua agonia e para se
sentir abandonado pelo Pai na cruz, sem que se verifique nele uma
"psicologia de vários níveis".
Além disso, a autoconsciência de Jesus e a visão imediata do Pai
podem crescer e desenvolver-se, algo que inexiste na "visão beatífica".
A humanidade de Jesus está sujeita às leis da psicologia humana
e da atividade espiritual. Assim como a autoconsciência aumenta pela
prática da atividade espiritual de uma pessoa, também a autoconsciência
humana de Jesus como Filho e a visão concomitante do Pai
foram crescendo desde os primeiros anos até a fase madura de sua
missão pública. Jesus intensificou a consciência de sua missão messiânica
e do modo como deveria bem realizá-la a partir do batismo no
Jordão, quando foi identificado como o Servo sofredor de Deus, até
Jerusalém, onde defrontou com a iminência da morte na cruz.
Não obstante a encíclica Mystici Corporis, nada indica ou exige
que Jesus, desde o momento da encarnação, estivesse consciente de
sua divindade ou que partilhasse da visão do Pai. Na verdade, Hb
10,5 refere-se ao estado quenótico da vida terrestre do Filho em geral
e não, precisamente, ao momento da encarnação.
Por fim, não é preciso admitir que a visão imediata de Deus
desfrutada por Jesus, ao longo da existência terrena, tenha sido
de abrangência universal. Inclui, sem dúvida, as relações interpessoais
com o Pai e o Espírito, mas nada nos leva a deduzir que tenha se
estendido ao plano salvífico de Deus, como aconteceria com a "visão
beatifica" dos eleitos no céu. Certamente, Jesus sabia tudo o que
precisava saber para o exercício de sua missão de salvador, inclusive
o sentido salvífico de sua morte na cruz. Mas esse conhecimento não
vinha da visão do Pai. Para tanto, impunha-se outro tipo de
conhecimento humano.
b) O conhecimento pela experiência
Não é necessário dizer algo sobre o conhecimento adquirido
por Jesus pela experiência, exceto que tal ocorreu num processo
inteiramente normal e comum. Tratando-se de um saber
naturalmente limitado, a experiência de Jesus também foi suscetível de
crescimento. Não era, absolutamente, total e exaustiva. Ele
aprendia com o povo, com os acontecimentos, com a natureza, com a
experiência, enfim. Partilhava, nesse nível de saber, a condição ordinária
de todo ser humano e, assim, atingiu a maturidade humana, aprendendo,
passo a passo, a consumir sua vida humana numa total
"pro-existência" para os outros.
c) E o conhecimento infuso?
Certos teólogos, como E. Gutwenger, não aceitaram o conhecimento
infuso em Jesus, entendendo-o como supérfluo em quem
gozava da visão imediata de Deus. Para eles, a visão de Deus
abrangia tudo o que Jesus deveria saber em vista de sua missão ou era,
eventualmente, uma visão universal.
Não há dúvida de que Jesus sabia tudo o que devia conhecer,
porque imprescindível ao exercício de sua missão. Mas, precisamente
por isso, cumpre afirmar que possuía um conhecimento "infuso". E
tal conhecimento não deve ser defendido a priori mas em
função do papel que desenvolve no exercício da missão de Jesus. Nem se há
de entendê-lo como conhecimento "angélico". Melhor compará-lo
ao conhecimento "infuso" dos profetas. Estes, mercê de sua experiência
de Deus, recebiam dele uma mensagem que, depois, deveriam transmitir
a Israel. Assim, de certa forma, Jesus veio a conhecer de Deus
tudo o que lhe era necessário para levar a termo a própria missão
e tudo quanto deveria nos revelar.
Ressalta-se que a visão que Jesus tinha do Pai, porque imediata
não era, de per si, comunicável. Precisava ser traduzida num saber
conceitual e compreensível, para que ele pudesse revelar o Pai. É
esse o objetivo do conhecimento infuso. Além do que, a visão imediata
do Pai em Jesus não incluía todas as realidades. Estendia-se,
primeiramente, às relações intratrinitárias, vividas por Jesus em sua
consciência humana.
Por "infusão", outros conhecimentos chegavam até ele, como
a profunda percepção do significado das Escrituras (cf. Jo 7,15), sua
intuição a respeito do plano de salvação da humanidade por Deus,
o sentido salvífico de sua morte na cruz... Em todos esses casos, o
conhecimento "infuso" destinava-se, por inteiro, ao cumprimento da
missão de Jesus. Ele conheceu tudo o que era necessário a tal fim e
não precisava conhecer mais nada fora disso.
d) O que Jesus não sabia
O domínio de tudo o que estava relacionado à missão de Jesus
não descarta alguma "ignorância" real. E sobretudo a propósito do
"dia do juízo" que se põe essa questão. A tradição evangélica mostra-nos
Jesus afirmando, com certa ênfase, que não conhece "o dia" (Mc 12,32;
Mt 24,36). Discutem os exegetas se os textos se referem à
destruição de Jerusalém ou ao "Juízo Final". Há ambigüidade nos
textos escatológicos. Diante da recusa freqüente entre os teólogos de
toda e qualquer ignorância em Jesus e, por outro lado, relembrando
também um decreto do Santo Ofício que define como temeridade
sustentar qualquer "ignorância" em Jesus, K. Adam pergunta com
perspicácia: "Afinal, quem tem razão? Jesus ou os teólogos?
Jesus ou o Santo Ofício?"
Alguns Padres da Igreja, como Atanásio e Cirilo de Alexandria,
admitiram que Jesus desconhecia "o dia". Outros, como Jerônimo e
João Crisóstomo, ensinaram que ele sabia, mas confessava não o saber;
porque não era sua missão revelá-lo. Para Agostinho, sendo o
"não-saber" conseqüência do pecado e caminho para ele, Jesus não
poderia ignorar coisa alguma. Outros Padres, enfim, entenderam
que Jesus sabia e, ao mesmo tempo, não sabia. Na "visão beatífica" que
abarca tudo, ele sabia; mas não sabia, no sentido de que, não
lhe cabendo revelar seu conhecimento, não o traduzia em linguagem
comunicável. Dessa forma, Jesus teria confessado sua ignorância com
sinceridade.
Deixando de lado essas sutilezas, não vemos nenhuma razão
teológica para não aceitar, francamente, alguns desconhecimentos
de Jesus. Vimos que, em sua existência terrena, a visão que
desfrutava de Deus não era universal. Por um conhecimento infuso e
profético, conhecia tudo o que precisava saber, em sua missão
reveladora e salvífica. Se o dia do juízo não constava da missão
reveladora de Jesus, não era preciso que o conhecesse e então,
simplesmente, não o conhecia. O não-saber fazia parte de seu estado quenótico.
Outras questões seriam: se Jesus desconhecia, especificamente,
o dia do Juízo, como os Evangelhos bem atestam (Mc 13,32), podem
os teólogos pensar que Jesus se equivocou sobre isso? Em meio às
idéias confusas e divergentes que circulavam a esse respeito
no tempo de Jesus, seria possível ele não ter opinião própria e
esclarecida sobre tal matéria? Ou poderia partilhar a idéia muito
difundida, mas errada, de que a parusia se concretizaria logo mais?
Sobre essa perplexidade, R. E. Brown escreve:
Passa-se, assim, do desconhecimento à dúvida e desta a uma
opinião incorreta. Mas a teologia pode aceitar que Jesus compartilhou
falsas opiniões contemporâneas, em assuntos não relacionados
a sua missão reveladora? Vale repetir, mais uma vez: Jesus sabia, sem
erro algum, tudo quanto interessava à sua missão. Ao lado disso, porém,
pode ter condividido idéias muito comuns em sua época.
Supondo-se que a iminência da "hora" figurava entre tais opiniões, é
difícil admiti-lo, pois pareceria contradizer sua vontade de continuar
sua missão na Igreja. Entretanto, se alguma ignorância fazia parte da
situaçâo quenótica da vida terrestre de Jesus, a possibilidade de comungar
opiniões contemporâneas não ligadas à sua missão deve ser
entendida como parte integrante de sua participação em nossa condição humana.
3. A oração e a fé do Senhor Jesus
a) A oração de Jesus
Jesus Cristo, o Mediador, é uma pessoa divino-humana que, em
si mesma, une divindade e humanidade. Ele é Deus que se dirige
aos homens pelo seu Verbo, autocomunicando-se e autodoando-se,
e, ao mesmo tempo, é a humanidade - por ele "recapitulada" e
"representada" - voltada para Deus, com ânimo agradecido. Jesus
é um "mistério de adoração salvífica" (E. Schilleheeckx),
constituído de duplo movimento: de Deus para a humanidade, na salvação, e da
humanidade para Deus, na adoração. Daí vêm as duas direções dos
atos humanos de Jesus: no movimento descendente, eles podem
tornar-se a expressão humana do poder salvífico de Deus, como nos
milagres de Jesus, (...) nos quais sua vontada
humana se torna expressão do poder divino; no movimento ascendente,
os atos humanos de jesus constituem a perfeita adoração divina.
Nessa segunda categoria enquadra-se a "religião" de Jesus, sua
oração, o modo como reverenciava e adorava o Pai. Além das
circuntâncias concretas e exteriores da vida de oração de Jesus,
cumpre sondar o significado de sua oração e a profundidade de sua adoração a
Deus.
Levando ao extremo a interpretação antioquena, Galtier
apresenta Jesus, o homem, como aquele que se dirigia em oração a
Deus trino, incluindo o Filho. Assim, Jesus, como homem, orava
também a Cristo, como Deus. Esse enfoque da oração de Jesus
baseia-se numa leitura equivocada dos dados evangélicos. Nessa visão,
sustenta-se que quando Jesus ora ao "Pai" (Mc 14,36) deve-se, na realidade,
entender Deus (theos). Mas acontece o contrário. Jesus ora ao Pai até
mesmo quando Deus (theos) é mencionado no texto evangélico (cf Mc
15,34). K. Rahner mostrou, de forma convincente, que a palavra theos se
refere, no Novo Testamento, à pessoa do Pai (Javé do Antigo
Testamento), exceto onde - em Paulo(?) ou João - o conceito é
aplicado também a Jesus. De qualquer modo, nunca se refere a Deus
nem à Trindade de maneira indeterminada.
Galtier, para embasar sua tese teologicamente, ressalta que a
oração de Jesus é o reconhecimeuto de sua relação com a Trindade
na criação. Além disso, a natureza humana de Jesus é o
princípio de seus atos humanos e, embora hipostaticamente unida ao Verbo, não
foi assumida nas relações intratrinitárias.
A essa argumentação deve-se alegar que, embora criada pela
Trindade, a natureza humana de Jesus é assumida numa união
pessoal com o Verbo e, portanto, assumida também, indiretamente, nas
relações intratrinitárias. Toda a vida religiosa de Jesus, sua obediência
e sua auto-entrega à morte, sua oração e sua adoração, parte não do
homem Jesus para a Trindade, mas do Filho encarnado, em sua
humanidade, ao Pai. Todas essas ações entretecem a expressão humana,
na humanidade assumida pelo Filho, de sua relação interpessoal com
o Pai, com quem está "substancialmente" unido na divindade.
Assim, Jesus orou ao Pai e não genericamente a Deus ou à
Trindade, nem ao Filho ou ao Espírito. Viveu em nível humano suas
relações pessoais intratrinitárias com o Pai e com o Espírito. Vivida e
experimentada de maneira consciente em sua psicologia humana, sua
origem eterna intratrinitária do Pai, por meio da geração, é expressa
pela oração e por um sentido de dependência total em relação a ele.
Por isso é que Jesus orava ao Pai e somente a ele, segundo os evangelistas.
Quanto ao Espírito Santo, conta o Evangelho que Jesus
promete enviá-lo da parte do Pai, após sua ressurreição e glória
(Jo 15,26). Essa promessa demonstra, em dimensão humana, a relação pela qual,
no seio da vida divina, o Espírito tira sua origem do Pai por meio do
Filho. Em ambos os casos e dos dois lados, aconteceu na psicologia
humana de Jesus uma transposição, em nível humano, das relações
intratrinitárias no íntimo da divindade.
Portanto, a origem eterna do Filho, gerado pelo Pai, transporta
ao plano humano da psicologia humana de Jesus, tomou um sentido
de dependência total. Essa idéia de dependência total para com o
Pai é que se revela na oração de Jesus. Sua oração ao Pai constitui
expressão de uma consciência essencialmente filial.
b) A fé do Senhor Jesus
Para muitos teólogos não há como atribuir fé a Jesus. Uns a
excluem dele, por causa da "visão beatifica". A visão de Deus e sua
fruição plena eliminam a fé, conforme o próprio Paulo nos lembra
(lCor l3,8-l3). Outros a negam por causa de sua autoconsciência de
Filho e de sua visão imediata do Pai, que não deixariam espaço
algum para a fé.
Recentemente, porém, alguns teólogos afirmaram que Jesus viveu
uma verdadeira vida de fé, constituindo-se, na verdade, no modelo
perfeito e paradigmático da fé.
A fé não deve ser concebida, primariamente, como adesão a
verdades reveladas, mas, no sentido bíblico, como entrega confiante
e pessoal a Deus. Ora, a auto-entrega de Jesus visa ao Pai. Ela
integra a "vida religiosa" de Jesus, sua vida de oração. Ao longo de
sua existência terrena, doou-se a si mesmo ao Pai, procurou cumprir
sua vontade e somente a ela se prendeu. Não de forma passiva,
mas sempre ajustando-se, livremeute, a ela e envidando todas as
suas energias humanas para executá-la. Essa conformação à vontade do Pai
transforma-se, porém, em "fé cega", quando, no cenário da agonia no
horto, a vontade do Pai se torna obscura e Jesus tem de
procurá-la entre tormentos e lágrimas. Criou-se, então, misteriosa
distância entre a vontade do Pai e a vontade humana de Jesus, distância
que Jesus vivenciou profundamente e superou pela oração. Cabem à
cena da agonia as palavras da Carta aos Hebreus:
Temos acima a descrição perfeita do que representou a vida de
fé para Jesus em seus aspectos mais trágicos e profundos: a
luta na busca da vontade do Pai e na submissão a ela, uma
confiança indestrutível nela e o abandono total a ele na obediência máxima e,
graças a tudo isso, o crescimento do homem Jesus em sua filiação divina
e em seu poder salvífico em prol da bumanidade. E de notar
também que a Carta aos Hebreus descreve Jesus como o "iniciador da fé
e (quem) a conduz à realização" (12,12). Origem ou modelo, ou
ambas as coisas? Seja qual for a interpretação desse texto, ele transluz,
junto com o Evangelho de João, a expressão mais profunda da fé que
Jesus depositava em Deus, seu Pai. A compatibilidade dessa fé com
a autoconsciência de Jesus como Filho e com sua "visão imediata" do
Pai será exposta [posteriormente], quando se falar, explicitamente, da vontade
humana e do sofrimeuto de Jesus. Já que o sentido de dependência
do Pai vivido por Jesus era a expressão humana de sua relação filial
intratrinitária, isso pressupunha, mais do que contrariá-la, sua
identidade de Filho. A fé que havia em Jesus não anula nossa fé em Jesus,
mas fundamenta-a. Faz parte da cristologia implícita do Jesus terreno,
no qual se baseia a cristologia explícita da Igreja apostólica.
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O Conhecimento Humano de Jesus
"Se Jesus não sabia quando a parusia viria a acontecer, é
totalmente inconcebível que se inclinasse a pensar e a dizer que ela
logo se daria? A incapacidade de corrigir opiniões sobre isso, então em
voga, não seria conseqüência lógica de seu desconhecimento?... Como há
indicios e até quase uma declaração de que Jesus não sabia quando a
vitória final seria concretizada, muitos teólogos católicos
acabaram propondo que esse saber não era essencial à missão de
Jesus. Diriam eles, então, que Jesus não estava isento das idéias confusas
de seu tempo a respeito da data da parusia? Esse é um problema que um
exegeta não pode resolver. Cabe-lhe, apenas evidenciar a inegável
confusao das afirmações atribuídas a Jesus."
"Foi ele quem, durante sua vida terrena, ofereceu orações e
súplicas com grande clamor e lágrimas àquele que podia salvá-lo da
morte, e foi atendido por causa de sua submissão. Embora sendo Filho,
aprendeu a obediência pelos próprios sofrimentos, e, levado até
a própria consumaçáo, veio a ser, para quantos lhe obedecem, causa da
salvação eterna" (5,7-9).
Texto retirado das páginas 162 a 175. Notas omitidas.
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