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O Impacto sobre a fé e sob o impacto da fé Autor: João Batista Libânio Editora: Loyola Páginas: 230 Formato: 23 x 16 cm Preço: * * * Apresentação | O Autor | Conteúdo | Amostra | Maiores Informações | Pedidos via Internet |
» APRESENTAÇÃO
Sobretudo na Modernidade, as cidades transformaram-se em centros arredios à prática religiosa.
Os fenômenos da modernização, industrialização e urbanização tiveram enorme impacto sobre a
vivência religiosa, questionando-a nela mesma, obrigando-a a reinterpretar-se e a assumir a
posição crítica diante da sociedade.
O autor desta obra aceita o desafio e oferece ao leitor um livro na linha da teologia fundamental,
em que a cidade é o ponto da perspectiva: dela se olha para a fé cristã a fim de ver como ela
reage no duplo movimento de reinterpretação e de crítica. Escolhe algumas características
urbanas fundamentais e as chama de "lógicas", pois configuram a cidade como as regras de um
jogo: a situação policêntrica da cidade moderna, em que o espaço cede importância ao interesse;
o tempo acelerado e o lazer crescente; o pluralismo religioso; a participação e a mobilização;
a crise da ética ou a mudança rápida e radical dos valores, com as correspondentes reações; o
trabalho e o poder.
Como a sorte histórica do Cristianismo está vinculada à cidade, este livro é um convite a viver
a fé cristã na cidade, consciente do duplo movimento a que ela está sujeita: questionada pela
cidade, deve repensar-se na sua autocompreensão e na sua prática; questionadora da cidade,
continua sua vocação profética e missionária.
» O AUTOR
João Batista Libânio (sj) é professor de Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia
do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus e consultor pastoral da Arquidiocese de
Belo Horizonte. É, também, autor de muitíssimas obras no campo da Teologia e da Pastoral.
» CONTEÚDO
Desafia-nos construir uma
matriz teológica urbana que responda a perguntas diferentes. O Cristianismo em seus
primórdios proliferou antes em áreas urbanas. Tem uma conaturalidade com esse mundo. Sua
ruralização veio depois. E impregnou-o de tal modo que hoje nos parece difícil
pensá-lo fora desse paradigma. A teologia da cidade continua
ainda mais um desejo que uma realidade, mais um programa que uma realização, mais uma
proposta que um fato. Tem sido mais trabalhada pela pastoral e menos pela sistemática.
Talvez porque não apareça claramente sua identidade. A cidade atual e a modernidade
confundem-se sob muitos aspectos. Modernização a modernidade tecnológica
e urbanização massiva caminharam juntas. É a cidade batida pela modernidade e
modernização que nos interessa nesse estudo. Assim as respostas teológicas para a
modernidade servem, em parte, para o fenômeno urbano. Freqüentemente no texto não
distinguimos a discussão com a cidade e com a modernidade. a. Cidade como objeto A teologia da cidade pode
considerá-la como objeto de sua reflexão. Nessa perspectiva, existe a clássica obra de
J. Comblin1. Estuda-se o embate teórico da Palavra de Deus com as cidades, seus
habitantes, perguntando-se pelas razões tanto do simbolismo sagrado de Jerusalém
apesar também das invectivas proféticas contra Jerusalém como do diabólico de
Babilônia, Sodoma, Gomorra. No Novo Testamento e na Tradição eclesial, podem-se colher
elementos teológicos que iluminam a fé cristã vivida na cidade. Como toda teologia
predominantemente positiva, ela enriquece a compreensão da cidade com elementos da
Escritura e Tradição. Tende à abundância e menos ao confronto de interpretação entre
cidade e revelação. No final, sabe-se muito do que se disse teologicamente sobre a
cidade. Esta realidade se ilumina com dados da Revelação para além dos conhecimentos
sociológicos e outros. Goza da vantagem de mostrar a
relevância da fé na compreensão da cidade. Ela tem uma palavra diferente a dizer. Tanto
mais pertinente quanto melhor for a pesquisa positiva que descobre no tesouro maravilhoso
da Tradição de fé material abundante. Recorre à investigação das fontes da fé. No
entanto, padece de certa frialdade existencial e social. Só num segundo momento volta-se
para as pessoas e situações sociais com suas exigências. Não pretendo seguir este
caminho já trilhado. É o método trabalhado, especialmente depois do Concílio Vaticano
II, pela teologia européia. Inverterei o itinerário teórico, tomando a cidade como
ponto de partida. b. Cidade como lugar
heurístico De objeto-chave de captação
do dado revelado, a cidade se transforma em lugar de criação teológica. Assume um papel
heurístico de ajudar-nos a descobrir novas percepções da fé. E, por sua vez, a fé
contribui para entender a cidade à sua luz. A reflexão se desenvolve em três momentos.
Num primeiro momento, elabora-se uma fenomenologia da cidade. Em seguida, nos dois
momentos seguintes, estabelece-se um círculo hermenêutico completo entre fé e cidade.
Com a ótica dessa compreensão fenomenológica da cidade reflete-se sobre a fé cristã
vivida numa cidade. E, com essa percepção da fé, busca-se uma melhor com- Iniciar a análise com a
cidade é reconhecer-lhe uma autonomia que pode ser articulada com a fé. Autonomia não
significa independência total, mas ter regras próprias em seu ser. E por isso precisam
ser respeitadas. O Concílio Vaticano II ensina isto, embora use o conceito de
"cidade terrena" num sentido amplo de sociedade humana. Autonomia da cidade terrena "Pois é preciso
reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por
princípios próprios. Mas com razão deve ser rejeitada aquela infausta doutrina que
intenta construir uma sociedade prescindindo totalmente da religião e ataca e destrói a
liberdade religiosa dos cidadãos."2 A cidade permite muitas
aproximações teóricas. Iluminador seria um estudo histórico das cidades,
acompanhando-lhes o nascer e o morrer. As duas capitais do Egito antigo, Mênfis e Tebas,
sofreram os ataques destruidores dos assírios (séc. VIII a.C.) e dos babilônios (séc.
VII a.C.). A própria cidade de Jericó permite hoje ver em suas ruínas a sucessão de
cidades. Jerusalém também conheceu destruições (Nabucodonosor, Tito) e reerguimentos.
Além dos assírios e babilônios, grandes destruidores de cidades, os romanos também
devastaram Cartago, Cápua, Corinto, Tróia e tantas outras cidades. A Bíblia descreve
Sodoma e Gomorra desaparecendo envolvidas pela chuva de enxofre e fogo (Gn 19,23-29).
Nossas Américas conheceram também as cidades esplendorosas de Tenochtitlan e Cuzco, que
os conquistadores arrasaram, deixando-nos ver até hoje seus destroços. Nossa viagem
histórica poderia prolongar-se por tantos impérios e séculos, levantando as memórias
de cidades totalmente destruídas ou hoje existentes sobre ruínas passadas. Tal percurso
nos ensinaria lições sobre elas. Cartografando as cidades,
poderíamos escolher cidades-símbolo e a partir delas penetrar algo desse movente humano
de construir e destruir seus hábitats. A história nos ofereceria exemplos maravilhosos.
Os nomadismos tendiam a construir cidades. Algumas cidades exprimiam na terra toda uma
simbologia e façanhas de deuses e heróis. Cinco mil anos antes da era cristã, já
existiam cidades na Suméria, região da Baixa Mesopotâmia. As mais antigas
civilizações nasceram às margens de um rio. O Tigre e o Eufrates Mesopotâmia
viram florescer a Suméria, Babilônia, Nínive, Assur; o rio Nilo banhou Mênfis e
Tebas. E a figura dos rios vestia-se de divindade. O Eufrates era de tal modo divinizado
que era proibido cuspir e urinar nele3. Outras cidades foram
construídas em torno das sepulturas do rei-deus, como Tebas e Mênfis. Outras remontam a
visões mágicas e espiritualistas da realidade, como no vale do rio Hindus. Outras
refletem a associação do senhor e do comerciante. Outras traduzem a civilização rural.
No mundo grego, a cidade se vincula à cidadania laica. A divinização já não é do
monarca, mas da própria cidade. E assim poderíamos ir multiplicando as cidades-exemplo:
do lazer, do comércio, das instituições de Igreja (convento, catedral, matriz), do
Renascimento opulento, do triunfo do príncipe, da deusa Razão, do capitalismo, da utopia
socialista, da cidade-máquina, dos futurólogos etc.4 Cidade na história "Se quisermos lançar
novos alicerces para a vida urbana, cumpre-nos compreender a natureza histórica da cidade
e distinguir entre suas funções originais aquelas que dela emergiram e aquelas que podem
ser ainda invocadas. Sem uma longa carreira de saída pela História, não teremos a
velocidade necessária, em nosso próprio consciente, para empreender um salto
suficientemente ousado em direção ao futuro, pois grande parte dos nossos atuais planos,
sem exceção de muitos daqueles que se orgulham de ser avançados ou
progressistas, constituem pouco engraçadas caricaturas mecânicas das formas
urbanas e regionais que ora se acham potencialmente ao nosso alcance."5 Detendo-se na cidade de hoje,
em sua diversidade de tamanho e geografias, é possível detectar os problemas comuns à
fé cristã. Depois de elencá-los, a reflexão teológico-pastoral poderia ir buscando
respostas. É o caminho mais comum da teologia da cidade. Aí estão tantas obras de
pastoral urbana. Inspirando-nos nesse último
modelo, buscaremos analisar a cidade a partir de suas lógicas internas. A preocupação
é didática. Quando se vive numa cidade, seguem-se suas regras, suas lógicas, seus
cânones. Se se desvendam tais lógicas, mais facilmente consegue-se viver nela de maneira
consciente e livre. Deixar-se levar pelo caudal urbano de maneira inexorável gera a
sensação de impotência. E contra ela temos a consciência crítica que nos dá os
limites do navegar na correnteza e a eventual necessidade de remar contra em termos
éticos e de fé. As lógicas da cidade se
organizam em torno de eixos. Os eixos multiplicam-se à medida que consideramos a cidade
detidamente. Em dado momento cabe dar-se por satisfeito, deixando o trabalho aberto para
ulteriores prolongações. O método defronta-se com
empecilhos. Que eixos escolher? Quantos? Toda escolha goza de certo arbítrio. Sua validez
depende tanto da relevância evidente do eixo escolhido como de sua justificativa
teórica. O critério da relevância varia conforme as perspectivas assumidas. Tudo isso
necessita passar por um mínimo de criticidade. Uma definida fenomenologia da
cidade faz parte do método hermenêutico, que é a base teórica fundamental. Embora
depois da virada hermenêutica ele tenha adquirido robusta cidadania teórica, sempre é
bom explicitá-lo e confrontá-lo com outras possibilidades teóricas em suas vantagens e
em seus limites. 2. Explicitação
do método a. No horizonte
pré-hermenêutico: visão especular da realidade O pressuposto básico é a
virada hermenêutica. Esta torna-se mais clara se a confrontamos com o horizonte
pré-hermenêutico. Todo conhecimento sempre foi interpretação, mas nem sempre se teve
clara consciência da subjetividade da interpretação. Em todo conhecimento,
situamo-nos diante de um objeto a ser conhecido. Nossa inteligência capta-lhe a
inteligibilidade e a traduz em linguagem para que outros possam participar da mesma
compreensão. A pretensão da inteligência é atingir a totalidade do real, apreendê-lo
em idéia, conceito, e traduzi-lo em palavra de maneira objetiva. O outro fará o mesmo
processo e constatará a verdade de minha intelecção. Assim vivemos como seres
humanos no interior de uma sociedade. Falamos da realidade todo o tempo no pressuposto de
estar comunicando verdades, se procedemos honestamente e não mentimos. Vamos mais longe.
Pretendemos que nossos conhecimentos gozem da absoluta objetividade do real. Não fazemos
mais do que refletir, como um espelho inteligível, o real em linguagem. Toda vez que julgamos possuir
um conhecimento verdadeiro não nos cabe outra possibilidade de linguagem do que o
transmitir em qualquer tempo e espaço. Toda verdade é absoluta e universal. Se atingimos
a verdade, atingimos o universal e o absoluto. E como tal, pode ser percebido por outro e,
assim, acolhido. Este horizonte tradicional
pressupõe nossa capacidade de conhecer objetivamente uma realidade sem interferência
intrínseca de algum fator subjetivo. Fatores externos podem induzir a erro, mas, uma vez
detectados, processa-se a justa correção. O sujeito comporta-se diante
do objeto como tabula rasa que capta dele toda a sua realidade. A verdade, os
valores, o bem vêm de fora, do lado do objeto. O sujeito situa-se passivamente diante
dele. É como a terra que acolhe a totalidade da árvore na semente sem influir na
configuração da planta. O conhecimento é
unidirecional. Do objeto para o sujeito. No caso da teologia, toda a verdade já está na
Revelação, no dogma. Toca-nos apreendê-la sem mais e transmiti-la na mais pura
ortodoxia. A rigidez da ortodoxia passeia nesse horizonte pré-hermenêutico. Em geral,
trabalha-se com conceitos abstratos, deduzindo deles, num jogo de raciocínios, outros
conhecimentos. E as regras que regem esta lógica dedutiva formal são bem definidas. O
seu seguimento correto garante a verdade das conseqüências. Expressões como
"filosofia perene", verdades absolutas, sobretudo quando formuladas numa língua
morta como o latim, permitem a consciência da universalidade, da imutabilidade desses
conhecimentos. A escolástica esmerou-se na elaboração de tal teologia, que predominou
no ensino da Igreja católica até os albores do Concílio Vaticano II. Teologia no horizonte
pré-hermenêutico "Considerando a teologia
escolástica, temos a impressão de que é uma doutrina virtualmente acabada, fixa e
definitiva. Trata-se de um bem, que já não mudará substancialmente, e constitui um
tesouro definitivo da Igreja; não mudará nas suas estruturas, nas suas categorias, nos
seus conceitos, nas suas teses"
"A teologia escolástica é definitiva.
Fundada nos conceitos da filosofia humana eterna, não pode submeter-se a uma relatividade
histórica."6 Esse método permitiu rigor de
linguagem, acribia teórica de pensar, objetividade a toda prova, firmeza e estabilidade
na verdade conhecida. Daí sua enorme resistência aos embates das tempestades culturais. Desconheceu o nascer da
modernidade com suas reivindicações de subjetividade e historicidade. São elas que
provocam a virada hermenêutica a ser assumida pela teologia sobretudo a partir do
Concílio Vaticano II. A teologia liberal européia e a da libertação da América Latina
situam-se nesse novo horizonte hermenêutico. b. No horizonte da
hermenêutica subjetiva e histórica Sentido geral de hermenêutica É a maneira própria de
conhecer da modernidade. No discurso científico se produz uma profunda mudança. As
teorias científicas não são imagem refletida da realidade, mas modelos representativos,
construídos da realidade, que necessitam ser testados, verificados. Estes modelos
traduzem-se numa linguagem descritiva e em seguida formalizada pela matemática. Os
modelos subsistem enquanto não se encontre outro melhor ou enquanto não se revelem
equivocados, superados por outros. Cria-se assim a perspectiva de provisoriedade do
conhecimento científico, de suas verdades. Todo conhecimento científico depende do
"olhar", de um método específico escolhido. Aí aparece a subjetividade das
ciências. Episteme das ciências "Uma descrição
fenomenológica do que são as ciências hoje nos revela que se trata de um
conjunto de práticas teóricas, de observação e experimentação, visando dominar
efetivamente diversos campos de fenômenos
As ciências e as tecnologias atingem a
realidade e nos fornecem um conhecimento"[
] [isso se processa] a modo de uma
reconstrução teórica (modelização, formalização, simulação,
) ou empírica
(constituição de imagens nos instrumentos
). Esta reconstrução é correlativa de
um olhar, de um método específico caracterizado pela objetivação e pelo
que Weinberg ou Changeux chamariam de redução metodológica, que explica todo fenômeno
no quadro, eventualmente unificado, de uma hierarquia de níveis, sustentados por um
nível fundamental de entidades elementares."7 Ao deter-se na figura do
sujeito, a hermenêutica avança ainda mais. Anuncia-se a "virada
antropocêntrica", a emergência da subjetividade em oposição a uma exterioridade
expressa na força das tradições, da imagem tradicional de mundo fixista e repetitiva,
do autoritarismo das figuras de poder. O sujeito descobre sua autonomia. Percebe também
que se situa diante das realidades exteriores assentado em tudo o que ele já é, já
aprendeu. Nunca totalmente vazio, inocente. Não se aproxima da realidade desprovido de
todo conhecimento, mas com uma "pré-compreensão" que se modifica à medida que
se defronta com a realidade. Por sua vez, as realidades são captadas diferentemente a
partir da diferença das pré-compreensões. Não existe nem um sujeito nem um objeto
totalmente neutro. As pré-compreensões são históricas. Estabelece-se um círculo
indefinido de volta crítica sobre o sujeito. O grau de objetividade ganha à medida que
se consegue denotar, denunciar, desvelar as cargas subjetivas de quem conhece. Estas
provêm das mais diferentes fontes e muitas ciências exercem aí sua crítica. A psicanálise vasculha o
inconsciente na sua forma de "id" e de "superego" que influencia o
conhecimento. Quanto mais desvendamos esse universo, mais nos aproximamos da objetividade
da verdade. Sempre paira no ar de qualquer conhecimento, por mais objetivo que se
demonstre, a suspeita de que experiências, armazenadas no inconsciente, lhe perturbam a
limpidez objetiva. A sociologia do conhecimento
detém-se no estudo das condições sociais presentes na produção do conhecimento.
Aponta os limites de uma consciência possível, ligada às coordenadas de história e
geografia, cultura e raça, religião e ideologia. Tenta romper o círculo ideológico em
que uma verdade pode estar engastada. No caso da teologia, a
hermenêutica se traduz na dura tarefa de interpretação da Revelação, do dogma. Para
isso, um olhar para o passado busca conhecer o melhor possível o contexto produtor do
texto na história de suas formas literárias, de suas tradições, dos redatores
individuais ou coletivos. Num segundo momento,
pergunta-se pelo contexto atual e pelo modo como traduzir para ele a verdade produzida em
outro contexto. Teologia é interpretação. E interpretação tem a ver com o sujeito e a
história de ontem e de hoje e sua transposição significativa. No fundo, quer-se superar
a ingenuidade de pensar que se alcança o real em sua imediatez, mas sempre no interior de
uma interpretação inserida numa tradição. Compreender o real numa
cultura "O real que se trata de
compreender nos pega dentro já do concreto de uma interpretação por meio do sistema de
símbolos de uma dada cultura, que se manifesta especialmente na linguagem.
A
conexão entre interpretação e tradição mostra claramente que é necessário
livrar-nos de um realismo ingênuo. Em nossos conhecimentos, não atingimos nunca o real
em sua crua nudez, mas sempre dentro do contexto cultural do homem, já interpretado pela
tradição e possuído por uma comunidade atual."8 A respeito da teologia da
cidade, nosso círculo hermenêutico se constitui a partir da melhor compreensão
possível da realidade da cidade, oferecida por uma análise fenomenológica da própria
cidade. Com essa ocular, aproximamo-nos da Revelação e procuramos descobrir nela
experiências significativas normativas, isto é, de natureza de fé. A pergunta soa de
maneira simples: o que a cidade de hoje consegue descobrir de significativo na
Revelação? Quantas verdades e ensinamentos ali presentes que uma compreensão rural não
fora capaz de perceber e agora a vivência da cidade desoculta-os! O círculo faz um giro. E
muda-se a pergunta. Já não é a cidade que lê a Revelação. É a Revelação que
questiona profética, escatologicamente a cidade. Pede-lhe conversão, mudanças culturais
e práticas. Cobra de seus habitantes outra compreensão da realidade e conduta diferente
de agir. Procuraremos superar um método
histórico positivo, que já se situa na virada antropocêntrica da modernidade e que
carrega o acento na pesquisa positiva. No parágrafo anterior, ao traçar as diferentes
possibilidades de abordar a teologia da cidade, falávamos desse método de vasculhar o
dado da Revelação na Escritura em tudo o que se refira à cidade. E assim se acumularia,
mesmo de maneira crítica e interpretada corretamente, uma massa informativa positiva da
Revelação sobre a cidade. Não corresponderia, no entanto, a um verdadeiro círculo, já
que sua captação não se fez a partir da pergunta da fenomenologia da cidade moderna,
mas de uma pergunta muito mais geral: qualquer aspecto referente à cidade, sem mais.
Assim se trabalhou em teologia muitos temas como a própria Revelação, o trabalho etc.9.
Método, aliás, recomendado pela Optatam totius do Concílio Vaticano II. Apesar
disso, não será nosso caminho. Parecido com esse método, há
o caminho do estudo da semântica. É um método histórico lingüístico.
Acrescenta ao anterior um cuidado maior pela evolução do significado dos termos, tanto
ao elaborar a fenomenologia da cidade como na coleta do dado da Tradição teológica.
Como o arco da Revelação bíblica e da tradição eclesial cobre mais de três
milênios, é normal que os conceitos tenham sofrido mudanças de significado.
Debruçar-se sobre elas e sobre suas condições sociais e culturais explicativas permite
entender melhor os dados positivos da Tradição. Trabalho de erudição e de muito
conhecimento histórico para operar bem as interpretações. Conjugar o método histórico
perseguindo a gênese dos conceitos com uma atenção às relações que estes conceitos
estabelecem em cada momento da história faz a riqueza do método genético-estrutural10. O corte diacrônico permite
acompanhar como a realidade da cidade evolui e como também a Tradição de fé sofre o
mesmo processo. Dentro de cada momento, aparecem diferentes figuras históricas da cidade
que provocam diferentemente a Palavra de Deus. Não se pensa a fé cristã igualmente numa
cidade regida pela religiosidade tradicional ou pela secularidade moderna ou pela
exuberância religiosa da pós-modernidade. E em cada momento os mesmos elementos
estruturais da fé cristã estabelecem relações diferentes. A tradição hermenêutica
tende a valorizar o peso da subjetividade na interpretação. Uma afirmação de Husserl,
"só é objetivo o que é subjetivo", traduz bem esse pensar. Reagindo a tal
perspectiva, acusa-se uma crise da subjetividade, da história e da dialética no
horizonte da lingüística pós- A entrada desse novo horizonte
veio por causa tanto da pluralidade das ciências humanas, a ponto de dissolver o ser
humano como sujeito, como da crise da história e da dialética pela queda do socialismo,
da inviabilidade de um futuro como negação crescente das contradições do presente. Por isso, prefere-se, em vez
de concentrar-se no conteúdo e no que dizer, fixar-se na forma do dizer, em suas regras.
Surge um pensamento exato, mas freqüentemente estéril, que não nos leva a nenhuma
reflexão sobre a fé e a uma práxis construtiva. Caminho também que não nos atrai. Conclusão Escolhemos um método
indutivo a partir da realidade no horizonte da hermenêutica dialética e da
perspectiva ideológica da ruptura. Partiremos de uma análise fenomenológica da cidade
suficiente para nossa reflexão teológico-pastoral. E nessa análise recorreremos às
suas lógicas. O método é indutivo porque
parte da realidade concreta da cidade. É hermenêutico porque envolve uma dupla relação
entre cidade e revelação, de modo que, a partir da compreensão de cidade, se interpreta
a revelação e a partir da revelação se criticam as lógicas da cidade. É dialética
no sentido platônico e moderno. Platônico porque por uma oposição entre cidade
imanência e revelação transcendência se abre um caminho de
intelecção, de conhecimento, de verdade. "A demonstração tem lugar no próprio
movimento do lógos e se cumpre ao termo desse movimento que deve ser dito
propriamente dialético. O movimento dialético tem seu termo normalmente numa
Idéia última que integra todos os seus momentos."12 Assim a idéia de cidade no
final da reflexão deveria integrar sua fenomenologia e os elementos da fé cristã.
Moderno, porque procura-se ir negando as limitações das compreensões em busca de uma
mais plena. Dialética na acepção
original "A dialética, em sua
acepção original, não é um conjunto de regras ou esquemas de pensamento a serem
aplicados indiferentemente a qualquer conteúdo
.Platão pode falar de um
caminho dialético (he dialektikè, Rep 533 c-d) como sendo um caminho
através das Idéias e que, por sua própria natureza, é demonstrativo da verdade e tende
a uma Idéia suprema que dá razão (lógon didónai), ou seja,
justifica racionalmente a articulação das Idéias ou o roteiro seguido pela
Dialética."13 Optaremos por uma leitura da
ruptura antes que da ordem. A leitura da ordem atende de preferência à continuidade.
Corresponde a duas opções ideológicas bem diferentes no tempo, mas que se aproximam na
sua raiz. Uma leitura tradicional costuma seguir a reflexão do homem do Eclesiastes: a
sucessão das gerações, o movimento do sol, do vento, dos rios, de modo que o "o
que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de novo sob o sol!" (Ecl
1,4-9). Assim seu discurso prefere a ordem, a continuidade. Tem dificuldade de captar a
mudança. Vê-a como moda transitória na esperança de que tudo volte como era
antigamente. Mostra enorme sensibilidade para perceber mínimos refluxos, alegrando-se com
eles, como sinal do esperado retorno. Outra postura semelhante, com
tintas modernas, espelha-se no "pensamento único" do neoliberalismo. Também
aqui se anunciam somente as mudanças que, no fundo, mantêm a continuidade. Mudanças sem
ruptura. A única alternativa que significava real ruptura em relação ao capitalismo
fracassou com a queda do socialismo. Resta unicamente a forma capitalista, que se adapta
como camaleão às circunstâncias em sua mesma identidade. Esta perspectiva ideológica
dificulta também entender teologicamente a cidade. Fixa-se ou num modelo único
estrutural de cidade ou situa-se diante da Escritura em atitude fundamentalista de sentido
único e fixo. A perspectiva assumida pela
hermenêutica defronta-se com verdadeiros cortes epistemológicos, por causa de mudanças
radicais tanto na compreensão da cidade como na da Tradição de fé. As rupturas não
anunciam inícios de tal modo novos que se perca toda continuidade. Trata-se antes de
acentuar ou o pólo da continuidade, mesmo aceitando mudanças, ou o da ruptura, embora
admitindo continuidades. Privilegiamos esse aspecto da ruptura que nos parece mais
sugestivo e apto para entender o momento atual. Continuidades e interrupções "Sob as grandes
continuidades do pensamento, sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito
ou de uma mentalidade coletiva, sob o devir obstinado de uma ciência que luta
apaixonadamente por existir e por se aperfeiçoar desde seu começo, sob a persistência
de um gênero, de uma forma, de uma disciplina, de uma atividade teórica, procura-se
agora destacar a incidência das interrupções."14 Uma vez situados nessa
plataforma de ruptura, partimos das perguntas que determinado contexto sociocultural
levanta, tanto na linha das idéias, do sentido, dos questionamentos científicos, da
compreensão da realidade (teologia moderna européia) como na dos fatos, da prática, das
situações socioeconômicas e políticas (primeira fase da Teologia da Libertação) e na
linha da percepção da relação mais profunda entre a situação estrutural
socioeconômica, política e a situação cultural (nova fase da Teologia da
Libertação). Ao dizer que partimos de uma
pergunta, estabelecemos a relação imediata entre pergunta e resposta. Assumimos o
pressuposto de que toda afirmação é uma resposta. A toda resposta corresponde uma
pergunta. Sem conhecer bem a pergunta em questão, não se entende a afirmação, já que
ela responde a determinada pergunta. Num primeiro momento, a pergunta de nossa reflexão
é a cidade. Ela interpela a Revelação. Num segundo momento, a pergunta é a fé. Ela
interpela a cidade. O esforço maior desse trabalho é elaborar a pergunta da cidade, já
que as perguntas que a fé faz à cidade são mais conhecidas pela teologia. Menos são
aquelas que a cidade faz à Tradição de fé. * * * Para um estudo
pessoal ou grupal 1. Em que consiste fazer uma
teologia da cidade tendo-a como objeto? Vantagens e limites. 2. Em que consiste fazer uma
teologia da cidade tendo-a como lugar heurístico? Vantagens e limites. 3. Quais os três passos do
método assumido? 4. Indique aproximações
possíveis para elaborar a compreensão de cidade. Explique-as. 5. Em que consiste entender a
cidade a partir de suas lógicas? Vantagens e limites de tal abordagem. 6. Explicite o horizonte
pré-hermenêutico de compreensão. 7. Em que consiste a virada
hermenêutica? Que dados culturais a propiciaram? 8. Explique o que seja
círculo hermenêutico. 9. Explique os métodos
histórico-positivo, histórico-lingüístico, genético-estrutural, lingüístico
pós-histórico e pós-dialético. 10. Exponha o método adotado:
indutivo, hermenêutico e dialético. 11. Qual a diferença de uma
leitura da realidade a partir da ordem e da ruptura? 12. Explicite a relação
teórica entre pergunta e resposta. Dinâmica do confronto dos
métodos 1. Dividam-se os alunos em
três grupos. 2. Cada grupo estuda uma
dessas posições: horizonte
pré-hermenêutico horizonte hermenêutico horizonte
pós-hermenêutico 3. Nesse estudo procure-se
levar três coisas em consideração: de que se trata
realmente que elementos positivos
têm este horizonte em questão que elementos negativos
têm os outros horizontes 4. Dedique-se um terço ou
mais do tempo a essa primeira tarefa. 5. Depois reúnam-se todos os
alunos. Conscientes da positividade de seu horizonte e dos limites dos outros,
estabeleça-se uma discussão de defesa da própria opinião e de ataque da oposta em
busca de maior clareza dos horizontes em questão. Bibliografia Notas
» MAIORES INFORMAÇÕES
- OU -
Caixa Postal 42.335 - São Paulo/SP - CEP 04299-970
preensão da cidade.
-histórica e pós-dialética. Da subjetividade, ao proclamar a "morte do
homem" com a corrente estruturalista. Substitui o homem pelo sistema. Não pensa
construir o homem, mas dissolvê-lo11. Em lugar da história, coloca um sistema como
invariante que prescinde do tempo e transcende-o. Da dialética, ao desacreditar do
caminhar do espírito em busca da verdade sempre em construção.
Boff, Cl., Teologia e prática: teologia do político e suas mediações,
Petrópolis, Vozes, 1978.
Goldmann, L., Marxisme et sciences humaines, Paris, Gallimard, 1969.
Lima Vaz, H. Cl., Método e dialética, mimeo., Belo Horizonte, CES, 2000.
Maduro, O., Mapas para a festa: reflexões latino-americanas sobre a crise e o
conhecimento, Petrópolis, Vozes, 1994.
____, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas
inter-relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981.
Sobrino, J., "El conocimiento teológico en la teología europea y
latinoamericana", in Encuentro latinoamericano, liberación y cautiverio,
México, 1976, pp. 177-207.
2. Lumen gentium, 36.
3. M. Ragon, Lhomme et les villes, Paris, Abin Michel, 1975, p. 34. Muitas
das reflexões que aqui aparecem são devedoras desse livro.
4. M. Ragon, op. cit., passim.
5. L. Mumford, A Cidade na história. Suas origens, suas transformações, suas
perspectivas, Belo Horizonte, Itatiaia, 1965, vol. I, p. 11.
6. J. Comblin, História da teologia católica, São Paulo, Herder, 1969, pp. 6 e
39.
7. D. Lambert, Sciences et théologie. Les figures dun dialogue, Namur,
Presses Universitaires de Namur/Lessius, 1999, p. 41.
8. Comissão Teológica Internacional, "A interpretação dos dogmas", Atualização
20 (1990), n. 224, p. 704.
9. É uma obra paradigmática desse método o estudo sobre a Revelação de R. Latourelle:
Teologia da Revelação, São Paulo, Paulinas, 1972.
10. Explicitei este método em As grandes rupturas sócio-culturais e eclesiais,
Petrópolis/Rio, Vozes/CRB, 21981, pp. 18-23.
11. Cl. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 326.
12. H. Cl. de Lima Vaz, Método e dialética, mimeo., Belo Horizonte, CES, 2000, p.
2.
13. Ibid., p. 1.
14. M. Foucault, A arqueologia do saber, Petrópolis, Vozes 1972, p. 10.
Texto retirado das páginas 13 a 25.
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