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AS LÓGICAS DA CIDADE
O Impacto sobre a fé e sob o impacto da fé

Autor: João Batista Libânio
Editora: Loyola
Páginas: 230
Formato: 23 x 16 cm
Preço: * * *

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» APRESENTAÇÃO

Sobretudo na Modernidade, as cidades transformaram-se em centros arredios à prática religiosa. Os fenômenos da modernização, industrialização e urbanização tiveram enorme impacto sobre a vivência religiosa, questionando-a nela mesma, obrigando-a a reinterpretar-se e a assumir a posição crítica diante da sociedade.

O autor desta obra aceita o desafio e oferece ao leitor um livro na linha da teologia fundamental, em que a cidade é o ponto da perspectiva: dela se olha para a fé cristã a fim de ver como ela reage no duplo movimento de reinterpretação e de crítica. Escolhe algumas características urbanas fundamentais e as chama de "lógicas", pois configuram a cidade como as regras de um jogo: a situação policêntrica da cidade moderna, em que o espaço cede importância ao interesse; o tempo acelerado e o lazer crescente; o pluralismo religioso; a participação e a mobilização; a crise da ética ou a mudança rápida e radical dos valores, com as correspondentes reações; o trabalho e o poder.

Como a sorte histórica do Cristianismo está vinculada à cidade, este livro é um convite a viver a fé cristã na cidade, consciente do duplo movimento a que ela está sujeita: questionada pela cidade, deve repensar-se na sua autocompreensão e na sua prática; questionadora da cidade, continua sua vocação profética e missionária.

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» O AUTOR

João Batista Libânio (sj) é professor de Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus e consultor pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte. É, também, autor de muitíssimas obras no campo da Teologia e da Pastoral.

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» CONTEÚDO

  1. Introdução

  2. Considerações metodológicas

  3. A cidade: as lógicas do espaço e do centro

  4. A cidade: as lógicas do tempo e do lazer

  5. As lógicas da pluralidade cultural

  6. As lógicas da participação e da mobilização

  7. As lógicas dos valores

  8. As lógicas do trabalho e do poder

  9. Conclusão geral

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» AMOSTRA

Considerações Metodológicas

1. Determinação do método

Aí estão os dados estatísticos. O Brasil já caminha para uma população 79 por cento urbana. A Igreja rural tende a desaparecer. É verdade que os arquétipos rurais, o imaginário agrário acompanham ainda muitas pessoas da primeira geração que migrou para as cidades. Pouco a pouco, os nascidos no mundo urbano criam novo horizonte de pensar e de agir. A teologia e a pastoral não podem desconhecer tais mudanças.

Desafia-nos construir uma matriz teológica urbana que responda a perguntas diferentes. O Cristianismo em seus primórdios proliferou antes em áreas urbanas. Tem uma conaturalidade com esse mundo. Sua ruralização veio depois. E impregnou-o de tal modo que hoje nos parece difícil pensá-lo fora desse paradigma.

A teologia da cidade continua ainda mais um desejo que uma realidade, mais um programa que uma realização, mais uma proposta que um fato. Tem sido mais trabalhada pela pastoral e menos pela sistemática. Talvez porque não apareça claramente sua identidade. A cidade atual e a modernidade confundem-se sob muitos aspectos. Modernização — a modernidade tecnológica — e urbanização massiva caminharam juntas. É a cidade batida pela modernidade e modernização que nos interessa nesse estudo. Assim as respostas teológicas para a modernidade servem, em parte, para o fenômeno urbano. Freqüentemente no texto não distinguimos a discussão com a cidade e com a modernidade.

a. Cidade como objeto

A teologia da cidade pode considerá-la como objeto de sua reflexão. Nessa perspectiva, existe a clássica obra de J. Comblin1. Estuda-se o embate teórico da Palavra de Deus com as cidades, seus habitantes, perguntando-se pelas razões tanto do simbolismo sagrado de Jerusalém — apesar também das invectivas proféticas contra Jerusalém — como do diabólico de Babilônia, Sodoma, Gomorra. No Novo Testamento e na Tradição eclesial, podem-se colher elementos teológicos que iluminam a fé cristã vivida na cidade.

Como toda teologia predominantemente positiva, ela enriquece a compreensão da cidade com elementos da Escritura e Tradição. Tende à abundância e menos ao confronto de interpretação entre cidade e revelação. No final, sabe-se muito do que se disse teologicamente sobre a cidade. Esta realidade se ilumina com dados da Revelação para além dos conhecimentos sociológicos e outros.

Goza da vantagem de mostrar a relevância da fé na compreensão da cidade. Ela tem uma palavra diferente a dizer. Tanto mais pertinente quanto melhor for a pesquisa positiva que descobre no tesouro maravilhoso da Tradição de fé material abundante. Recorre à investigação das fontes da fé. No entanto, padece de certa frialdade existencial e social. Só num segundo momento volta-se para as pessoas e situações sociais com suas exigências.

Não pretendo seguir este caminho já trilhado. É o método trabalhado, especialmente depois do Concílio Vaticano II, pela teologia européia. Inverterei o itinerário teórico, tomando a cidade como ponto de partida.

b. Cidade como lugar heurístico

De objeto-chave de captação do dado revelado, a cidade se transforma em lugar de criação teológica. Assume um papel heurístico de ajudar-nos a descobrir novas percepções da fé. E, por sua vez, a fé contribui para entender a cidade à sua luz. A reflexão se desenvolve em três momentos. Num primeiro momento, elabora-se uma fenomenologia da cidade. Em seguida, nos dois momentos seguintes, estabelece-se um círculo hermenêutico completo entre fé e cidade. Com a ótica dessa compreensão fenomenológica da cidade reflete-se sobre a fé cristã vivida numa cidade. E, com essa percepção da fé, busca-se uma melhor com-
preensão da cidade.

Iniciar a análise com a cidade é reconhecer-lhe uma autonomia que pode ser articulada com a fé. Autonomia não significa independência total, mas ter regras próprias em seu ser. E por isso precisam ser respeitadas. O Concílio Vaticano II ensina isto, embora use o conceito de "cidade terrena" num sentido amplo de sociedade humana.

Autonomia da cidade terrena

"Pois é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, se rege por princípios próprios. Mas com razão deve ser rejeitada aquela infausta doutrina que intenta construir uma sociedade prescindindo totalmente da religião e ataca e destrói a liberdade religiosa dos cidadãos."2

A cidade permite muitas aproximações teóricas. Iluminador seria um estudo histórico das cidades, acompanhando-lhes o nascer e o morrer. As duas capitais do Egito antigo, Mênfis e Tebas, sofreram os ataques destruidores dos assírios (séc. VIII a.C.) e dos babilônios (séc. VII a.C.). A própria cidade de Jericó permite hoje ver em suas ruínas a sucessão de cidades. Jerusalém também conheceu destruições (Nabucodonosor, Tito) e reerguimentos. Além dos assírios e babilônios, grandes destruidores de cidades, os romanos também devastaram Cartago, Cápua, Corinto, Tróia e tantas outras cidades. A Bíblia descreve Sodoma e Gomorra desaparecendo envolvidas pela chuva de enxofre e fogo (Gn 19,23-29). Nossas Américas conheceram também as cidades esplendorosas de Tenochtitlan e Cuzco, que os conquistadores arrasaram, deixando-nos ver até hoje seus destroços. Nossa viagem histórica poderia prolongar-se por tantos impérios e séculos, levantando as memórias de cidades totalmente destruídas ou hoje existentes sobre ruínas passadas. Tal percurso nos ensinaria lições sobre elas.

Cartografando as cidades, poderíamos escolher cidades-símbolo e a partir delas penetrar algo desse movente humano de construir e destruir seus hábitats. A história nos ofereceria exemplos maravilhosos. Os nomadismos tendiam a construir cidades. Algumas cidades exprimiam na terra toda uma simbologia e façanhas de deuses e heróis. Cinco mil anos antes da era cristã, já existiam cidades na Suméria, região da Baixa Mesopotâmia. As mais antigas civilizações nasceram às margens de um rio. O Tigre e o Eufrates — Mesopotâmia — viram florescer a Suméria, Babilônia, Nínive, Assur; o rio Nilo banhou Mênfis e Tebas. E a figura dos rios vestia-se de divindade. O Eufrates era de tal modo divinizado que era proibido cuspir e urinar nele3.

Outras cidades foram construídas em torno das sepulturas do rei-deus, como Tebas e Mênfis. Outras remontam a visões mágicas e espiritualistas da realidade, como no vale do rio Hindus. Outras refletem a associação do senhor e do comerciante. Outras traduzem a civilização rural. No mundo grego, a cidade se vincula à cidadania laica. A divinização já não é do monarca, mas da própria cidade. E assim poderíamos ir multiplicando as cidades-exemplo: do lazer, do comércio, das instituições de Igreja (convento, catedral, matriz), do Renascimento opulento, do triunfo do príncipe, da deusa Razão, do capitalismo, da utopia socialista, da cidade-máquina, dos futurólogos etc.4

Cidade na história

"Se quisermos lançar novos alicerces para a vida urbana, cumpre-nos compreender a natureza histórica da cidade e distinguir entre suas funções originais aquelas que dela emergiram e aquelas que podem ser ainda invocadas. Sem uma longa carreira de saída pela História, não teremos a velocidade necessária, em nosso próprio consciente, para empreender um salto suficientemente ousado em direção ao futuro, pois grande parte dos nossos atuais planos, sem exceção de muitos daqueles que se orgulham de ser ‘avançados’ ou ‘progressistas’, constituem pouco engraçadas caricaturas mecânicas das formas urbanas e regionais que ora se acham potencialmente ao nosso alcance."5

Detendo-se na cidade de hoje, em sua diversidade de tamanho e geografias, é possível detectar os problemas comuns à fé cristã. Depois de elencá-los, a reflexão teológico-pastoral poderia ir buscando respostas. É o caminho mais comum da teologia da cidade. Aí estão tantas obras de pastoral urbana.

Inspirando-nos nesse último modelo, buscaremos analisar a cidade a partir de suas lógicas internas. A preocupação é didática. Quando se vive numa cidade, seguem-se suas regras, suas lógicas, seus cânones. Se se desvendam tais lógicas, mais facilmente consegue-se viver nela de maneira consciente e livre. Deixar-se levar pelo caudal urbano de maneira inexorável gera a sensação de impotência. E contra ela temos a consciência crítica que nos dá os limites do navegar na correnteza e a eventual necessidade de remar contra em termos éticos e de fé.

As lógicas da cidade se organizam em torno de eixos. Os eixos multiplicam-se à medida que consideramos a cidade detidamente. Em dado momento cabe dar-se por satisfeito, deixando o trabalho aberto para ulteriores prolongações.

O método defronta-se com empecilhos. Que eixos escolher? Quantos? Toda escolha goza de certo arbítrio. Sua validez depende tanto da relevância evidente do eixo escolhido como de sua justificativa teórica. O critério da relevância varia conforme as perspectivas assumidas. Tudo isso necessita passar por um mínimo de criticidade.

Uma definida fenomenologia da cidade faz parte do método hermenêutico, que é a base teórica fundamental. Embora depois da virada hermenêutica ele tenha adquirido robusta cidadania teórica, sempre é bom explicitá-lo e confrontá-lo com outras possibilidades teóricas em suas vantagens e em seus limites.

2. Explicitação do método

a. No horizonte pré-hermenêutico: visão especular da realidade

O pressuposto básico é a virada hermenêutica. Esta torna-se mais clara se a confrontamos com o horizonte pré-hermenêutico. Todo conhecimento sempre foi interpretação, mas nem sempre se teve clara consciência da subjetividade da interpretação.

Em todo conhecimento, situamo-nos diante de um objeto a ser conhecido. Nossa inteligência capta-lhe a inteligibilidade e a traduz em linguagem para que outros possam participar da mesma compreensão. A pretensão da inteligência é atingir a totalidade do real, apreendê-lo em idéia, conceito, e traduzi-lo em palavra de maneira objetiva. O outro fará o mesmo processo e constatará a verdade de minha intelecção.

Assim vivemos como seres humanos no interior de uma sociedade. Falamos da realidade todo o tempo no pressuposto de estar comunicando verdades, se procedemos honestamente e não mentimos. Vamos mais longe. Pretendemos que nossos conhecimentos gozem da absoluta objetividade do real. Não fazemos mais do que refletir, como um espelho inteligível, o real em linguagem.

Toda vez que julgamos possuir um conhecimento verdadeiro não nos cabe outra possibilidade de linguagem do que o transmitir em qualquer tempo e espaço. Toda verdade é absoluta e universal. Se atingimos a verdade, atingimos o universal e o absoluto. E como tal, pode ser percebido por outro e, assim, acolhido.

Este horizonte tradicional pressupõe nossa capacidade de conhecer objetivamente uma realidade sem interferência intrínseca de algum fator subjetivo. Fatores externos podem induzir a erro, mas, uma vez detectados, processa-se a justa correção.

O sujeito comporta-se diante do objeto como tabula rasa que capta dele toda a sua realidade. A verdade, os valores, o bem vêm de fora, do lado do objeto. O sujeito situa-se passivamente diante dele. É como a terra que acolhe a totalidade da árvore na semente sem influir na configuração da planta.

O conhecimento é unidirecional. Do objeto para o sujeito. No caso da teologia, toda a verdade já está na Revelação, no dogma. Toca-nos apreendê-la sem mais e transmiti-la na mais pura ortodoxia. A rigidez da ortodoxia passeia nesse horizonte pré-hermenêutico. Em geral, trabalha-se com conceitos abstratos, deduzindo deles, num jogo de raciocínios, outros conhecimentos. E as regras que regem esta lógica dedutiva formal são bem definidas. O seu seguimento correto garante a verdade das conseqüências.

Expressões como "filosofia perene", verdades absolutas, sobretudo quando formuladas numa língua morta como o latim, permitem a consciência da universalidade, da imutabilidade desses conhecimentos. A escolástica esmerou-se na elaboração de tal teologia, que predominou no ensino da Igreja católica até os albores do Concílio Vaticano II.

Teologia no horizonte pré-hermenêutico

"Considerando a teologia escolástica, temos a impressão de que é uma doutrina virtualmente acabada, fixa e definitiva. Trata-se de um bem, que já não mudará substancialmente, e constitui um tesouro definitivo da Igreja; não mudará nas suas estruturas, nas suas categorias, nos seus conceitos, nas suas teses"… "A teologia escolástica é definitiva. Fundada nos conceitos da filosofia humana eterna, não pode submeter-se a uma relatividade histórica."6

Esse método permitiu rigor de linguagem, acribia teórica de pensar, objetividade a toda prova, firmeza e estabilidade na verdade conhecida. Daí sua enorme resistência aos embates das tempestades culturais.

Desconheceu o nascer da modernidade com suas reivindicações de subjetividade e historicidade. São elas que provocam a virada hermenêutica a ser assumida pela teologia sobretudo a partir do Concílio Vaticano II. A teologia liberal européia e a da libertação da América Latina situam-se nesse novo horizonte hermenêutico.

b. No horizonte da hermenêutica subjetiva e histórica

Sentido geral de hermenêutica

É a maneira própria de conhecer da modernidade. No discurso científico se produz uma profunda mudança. As teorias científicas não são imagem refletida da realidade, mas modelos representativos, construídos da realidade, que necessitam ser testados, verificados. Estes modelos traduzem-se numa linguagem descritiva e em seguida formalizada pela matemática. Os modelos subsistem enquanto não se encontre outro melhor ou enquanto não se revelem equivocados, superados por outros. Cria-se assim a perspectiva de provisoriedade do conhecimento científico, de suas verdades. Todo conhecimento científico depende do "olhar", de um método específico escolhido. Aí aparece a subjetividade das ciências.

Episteme das ciências

"Uma descrição ‘fenomenológica’ do que são as ciências hoje nos revela que se trata de um conjunto de práticas teóricas, de observação e experimentação, visando dominar efetivamente diversos campos de fenômenos… As ciências e as tecnologias atingem a realidade e nos fornecem um conhecimento"[…] [isso se processa] a modo de uma reconstrução teórica (modelização, formalização, simulação,…) ou empírica (constituição de imagens nos instrumentos…). Esta reconstrução é correlativa de um ‘olhar’, de um método específico caracterizado pela objetivação e pelo que Weinberg ou Changeux chamariam de redução metodológica, que explica todo fenômeno no quadro, eventualmente unificado, de uma hierarquia de níveis, sustentados por um nível fundamental de entidades elementares."7

Ao deter-se na figura do sujeito, a hermenêutica avança ainda mais. Anuncia-se a "virada antropocêntrica", a emergência da subjetividade em oposição a uma exterioridade expressa na força das tradições, da imagem tradicional de mundo fixista e repetitiva, do autoritarismo das figuras de poder. O sujeito descobre sua autonomia. Percebe também que se situa diante das realidades exteriores assentado em tudo o que ele já é, já aprendeu. Nunca totalmente vazio, inocente. Não se aproxima da realidade desprovido de todo conhecimento, mas com uma "pré-compreensão" que se modifica à medida que se defronta com a realidade. Por sua vez, as realidades são captadas diferentemente a partir da diferença das pré-compreensões. Não existe nem um sujeito nem um objeto totalmente neutro. As pré-compreensões são históricas.

Estabelece-se um círculo indefinido de volta crítica sobre o sujeito. O grau de objetividade ganha à medida que se consegue denotar, denunciar, desvelar as cargas subjetivas de quem conhece. Estas provêm das mais diferentes fontes e muitas ciências exercem aí sua crítica.

A psicanálise vasculha o inconsciente na sua forma de "id" e de "superego" que influencia o conhecimento. Quanto mais desvendamos esse universo, mais nos aproximamos da objetividade da verdade. Sempre paira no ar de qualquer conhecimento, por mais objetivo que se demonstre, a suspeita de que experiências, armazenadas no inconsciente, lhe perturbam a limpidez objetiva.

A sociologia do conhecimento detém-se no estudo das condições sociais presentes na produção do conhecimento. Aponta os limites de uma consciência possível, ligada às coordenadas de história e geografia, cultura e raça, religião e ideologia. Tenta romper o círculo ideológico em que uma verdade pode estar engastada.

No caso da teologia, a hermenêutica se traduz na dura tarefa de interpretação da Revelação, do dogma. Para isso, um olhar para o passado busca conhecer o melhor possível o contexto produtor do texto na história de suas formas literárias, de suas tradições, dos redatores individuais ou coletivos.

Num segundo momento, pergunta-se pelo contexto atual e pelo modo como traduzir para ele a verdade produzida em outro contexto. Teologia é interpretação. E interpretação tem a ver com o sujeito e a história de ontem e de hoje e sua transposição significativa. No fundo, quer-se superar a ingenuidade de pensar que se alcança o real em sua imediatez, mas sempre no interior de uma interpretação inserida numa tradição.

Compreender o real numa cultura

"O real que se trata de compreender nos pega dentro já do concreto de uma interpretação por meio do sistema de símbolos de uma dada cultura, que se manifesta especialmente na linguagem. … A conexão entre interpretação e tradição mostra claramente que é necessário livrar-nos de um realismo ingênuo. Em nossos conhecimentos, não atingimos nunca o real em sua crua nudez, mas sempre dentro do contexto cultural do homem, já interpretado pela tradição e possuído por uma comunidade atual."8

A respeito da teologia da cidade, nosso círculo hermenêutico se constitui a partir da melhor compreensão possível da realidade da cidade, oferecida por uma análise fenomenológica da própria cidade. Com essa ocular, aproximamo-nos da Revelação e procuramos descobrir nela experiências significativas normativas, isto é, de natureza de fé. A pergunta soa de maneira simples: o que a cidade de hoje consegue descobrir de significativo na Revelação? Quantas verdades e ensinamentos ali presentes que uma compreensão rural não fora capaz de perceber e agora a vivência da cidade desoculta-os!

O círculo faz um giro. E muda-se a pergunta. Já não é a cidade que lê a Revelação. É a Revelação que questiona profética, escatologicamente a cidade. Pede-lhe conversão, mudanças culturais e práticas. Cobra de seus habitantes outra compreensão da realidade e conduta diferente de agir.

Procuraremos superar um método histórico positivo, que já se situa na virada antropocêntrica da modernidade e que carrega o acento na pesquisa positiva. No parágrafo anterior, ao traçar as diferentes possibilidades de abordar a teologia da cidade, falávamos desse método de vasculhar o dado da Revelação na Escritura em tudo o que se refira à cidade. E assim se acumularia, mesmo de maneira crítica e interpretada corretamente, uma massa informativa positiva da Revelação sobre a cidade. Não corresponderia, no entanto, a um verdadeiro círculo, já que sua captação não se fez a partir da pergunta da fenomenologia da cidade moderna, mas de uma pergunta muito mais geral: qualquer aspecto referente à cidade, sem mais. Assim se trabalhou em teologia muitos temas como a própria Revelação, o trabalho etc.9. Método, aliás, recomendado pela Optatam totius do Concílio Vaticano II. Apesar disso, não será nosso caminho.

Parecido com esse método, há o caminho do estudo da semântica. É um método histórico lingüístico. Acrescenta ao anterior um cuidado maior pela evolução do significado dos termos, tanto ao elaborar a fenomenologia da cidade como na coleta do dado da Tradição teológica. Como o arco da Revelação bíblica e da tradição eclesial cobre mais de três milênios, é normal que os conceitos tenham sofrido mudanças de significado. Debruçar-se sobre elas e sobre suas condições sociais e culturais explicativas permite entender melhor os dados positivos da Tradição. Trabalho de erudição e de muito conhecimento histórico para operar bem as interpretações.

Conjugar o método histórico perseguindo a gênese dos conceitos com uma atenção às relações que estes conceitos estabelecem em cada momento da história faz a riqueza do método genético-estrutural10.

O corte diacrônico permite acompanhar como a realidade da cidade evolui e como também a Tradição de fé sofre o mesmo processo. Dentro de cada momento, aparecem diferentes figuras históricas da cidade que provocam diferentemente a Palavra de Deus. Não se pensa a fé cristã igualmente numa cidade regida pela religiosidade tradicional ou pela secularidade moderna ou pela exuberância religiosa da pós-modernidade. E em cada momento os mesmos elementos estruturais da fé cristã estabelecem relações diferentes.

A tradição hermenêutica tende a valorizar o peso da subjetividade na interpretação. Uma afirmação de Husserl, "só é objetivo o que é subjetivo", traduz bem esse pensar. Reagindo a tal perspectiva, acusa-se uma crise da subjetividade, da história e da dialética no horizonte da lingüística pós-
-histórica e pós-dialética
. Da subjetividade, ao proclamar a "morte do homem" com a corrente estruturalista. Substitui o homem pelo sistema. Não pensa construir o homem, mas dissolvê-lo11. Em lugar da história, coloca um sistema como invariante que prescinde do tempo e transcende-o. Da dialética, ao desacreditar do caminhar do espírito em busca da verdade sempre em construção.

A entrada desse novo horizonte veio por causa tanto da pluralidade das ciências humanas, a ponto de dissolver o ser humano como sujeito, como da crise da história e da dialética pela queda do socialismo, da inviabilidade de um futuro como negação crescente das contradições do presente.

Por isso, prefere-se, em vez de concentrar-se no conteúdo e no que dizer, fixar-se na forma do dizer, em suas regras. Surge um pensamento exato, mas freqüentemente estéril, que não nos leva a nenhuma reflexão sobre a fé e a uma práxis construtiva. Caminho também que não nos atrai.

Conclusão

Escolhemos um método indutivo a partir da realidade no horizonte da hermenêutica dialética e da perspectiva ideológica da ruptura. Partiremos de uma análise fenomenológica da cidade suficiente para nossa reflexão teológico-pastoral. E nessa análise recorreremos às suas lógicas.

O método é indutivo porque parte da realidade concreta da cidade. É hermenêutico porque envolve uma dupla relação entre cidade e revelação, de modo que, a partir da compreensão de cidade, se interpreta a revelação e a partir da revelação se criticam as lógicas da cidade. É dialética no sentido platônico e moderno. Platônico porque por uma oposição entre cidade — imanência — e revelação — transcendência — se abre um caminho de intelecção, de conhecimento, de verdade. "A demonstração tem lugar no próprio movimento do lógos e se cumpre ao termo desse movimento que deve ser dito propriamente dialético. O movimento dialético tem seu termo normalmente numa Idéia última que integra todos os seus momentos."12 Assim a idéia de cidade no final da reflexão deveria integrar sua fenomenologia e os elementos da fé cristã. Moderno, porque procura-se ir negando as limitações das compreensões em busca de uma mais plena.

Dialética na acepção original

"A dialética, em sua acepção original, não é um conjunto de regras ou esquemas de pensamento a serem aplicados indiferentemente a qualquer conteúdo….Platão pode falar de um ‘caminho dialético’ (he dialektikè, Rep 533 c-d) como sendo um caminho através das Idéias e que, por sua própria natureza, é demonstrativo da verdade e tende a uma Idéia suprema que ‘dá razão’ (lógon didónai), ou seja, justifica racionalmente a articulação das Idéias ou o roteiro seguido pela Dialética."13

Optaremos por uma leitura da ruptura antes que da ordem. A leitura da ordem atende de preferência à continuidade. Corresponde a duas opções ideológicas bem diferentes no tempo, mas que se aproximam na sua raiz. Uma leitura tradicional costuma seguir a reflexão do homem do Eclesiastes: a sucessão das gerações, o movimento do sol, do vento, dos rios, de modo que o "o que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de novo sob o sol!" (Ecl 1,4-9). Assim seu discurso prefere a ordem, a continuidade. Tem dificuldade de captar a mudança. Vê-a como moda transitória na esperança de que tudo volte como era antigamente. Mostra enorme sensibilidade para perceber mínimos refluxos, alegrando-se com eles, como sinal do esperado retorno.

Outra postura semelhante, com tintas modernas, espelha-se no "pensamento único" do neoliberalismo. Também aqui se anunciam somente as mudanças que, no fundo, mantêm a continuidade. Mudanças sem ruptura. A única alternativa que significava real ruptura em relação ao capitalismo fracassou com a queda do socialismo. Resta unicamente a forma capitalista, que se adapta como camaleão às circunstâncias em sua mesma identidade.

Esta perspectiva ideológica dificulta também entender teologicamente a cidade. Fixa-se ou num modelo único estrutural de cidade ou situa-se diante da Escritura em atitude fundamentalista de sentido único e fixo.

A perspectiva assumida pela hermenêutica defronta-se com verdadeiros cortes epistemológicos, por causa de mudanças radicais tanto na compreensão da cidade como na da Tradição de fé. As rupturas não anunciam inícios de tal modo novos que se perca toda continuidade. Trata-se antes de acentuar ou o pólo da continuidade, mesmo aceitando mudanças, ou o da ruptura, embora admitindo continuidades. Privilegiamos esse aspecto da ruptura que nos parece mais sugestivo e apto para entender o momento atual.

Continuidades e interrupções

"Sob as grandes continuidades do pensamento, sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito ou de uma mentalidade coletiva, sob o devir obstinado de uma ciência que luta apaixonadamente por existir e por se aperfeiçoar desde seu começo, sob a persistência de um gênero, de uma forma, de uma disciplina, de uma atividade teórica, procura-se agora destacar a incidência das interrupções."14

Uma vez situados nessa plataforma de ruptura, partimos das perguntas que determinado contexto sociocultural levanta, tanto na linha das idéias, do sentido, dos questionamentos científicos, da compreensão da realidade (teologia moderna européia) como na dos fatos, da prática, das situações socioeconômicas e políticas (primeira fase da Teologia da Libertação) e na linha da percepção da relação mais profunda entre a situação estrutural socioeconômica, política e a situação cultural (nova fase da Teologia da Libertação).

Ao dizer que partimos de uma pergunta, estabelecemos a relação imediata entre pergunta e resposta. Assumimos o pressuposto de que toda afirmação é uma resposta. A toda resposta corresponde uma pergunta. Sem conhecer bem a pergunta em questão, não se entende a afirmação, já que ela responde a determinada pergunta. Num primeiro momento, a pergunta de nossa reflexão é a cidade. Ela interpela a Revelação. Num segundo momento, a pergunta é a fé. Ela interpela a cidade. O esforço maior desse trabalho é elaborar a pergunta da cidade, já que as perguntas que a fé faz à cidade são mais conhecidas pela teologia. Menos são aquelas que a cidade faz à Tradição de fé.

* * *

Para um estudo pessoal ou grupal

1. Em que consiste fazer uma teologia da cidade tendo-a como objeto? Vantagens e limites.

2. Em que consiste fazer uma teologia da cidade tendo-a como lugar heurístico? Vantagens e limites.

3. Quais os três passos do método assumido?

4. Indique aproximações possíveis para elaborar a compreensão de cidade. Explique-as.

5. Em que consiste entender a cidade a partir de suas lógicas? Vantagens e limites de tal abordagem.

6. Explicite o horizonte pré-hermenêutico de compreensão.

7. Em que consiste a virada hermenêutica? Que dados culturais a propiciaram?

8. Explique o que seja círculo hermenêutico.

9. Explique os métodos histórico-positivo, histórico-lingüístico, genético-estrutural, lingüístico pós-histórico e pós-dialético.

10. Exponha o método adotado: indutivo, hermenêutico e dialético.

11. Qual a diferença de uma leitura da realidade a partir da ordem e da ruptura?

12. Explicite a relação teórica entre pergunta e resposta.

Dinâmica do confronto dos métodos

1. Dividam-se os alunos em três grupos.

2. Cada grupo estuda uma dessas posições:

— horizonte pré-hermenêutico

— horizonte hermenêutico

— horizonte pós-hermenêutico

3. Nesse estudo procure-se levar três coisas em consideração:

— de que se trata realmente

— que elementos positivos têm este horizonte em questão

— que elementos negativos têm os outros horizontes

4. Dedique-se um terço ou mais do tempo a essa primeira tarefa.

5. Depois reúnam-se todos os alunos. Conscientes da positividade de seu horizonte e dos limites dos outros, estabeleça-se uma discussão de defesa da própria opinião e de ataque da oposta em busca de maior clareza dos horizontes em questão.

Bibliografia
Boff, Cl., Teologia e prática: teologia do político e suas mediações, Petrópolis, Vozes, 1978.
Goldmann, L., Marxisme et sciences humaines, Paris, Gallimard, 1969.
Lima Vaz, H. Cl., Método e dialética, mimeo., Belo Horizonte, CES, 2000.
Maduro, O., Mapas para a festa: reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento, Petrópolis, Vozes, 1994.
____, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na América Latina, Petrópolis, Vozes, 1981.
Sobrino, J., "El conocimiento teológico en la teología europea y latinoamericana", in Encuentro latinoamericano, liberación y cautiverio, México, 1976, pp. 177-207.

Notas

1. Considerada uma das maiores cidades pré-industrializadas do mundo, chegou a ter uma população de 125 mil habitantes com 2 mil templos: B. Meggers, América Pré-Histórica, Rio de Janeiro, 1979, apud F. Niño, La Iglesia em la ciudad. El fenómeno de las grandes ciudades em América Latina, como problema teológico y como desafío pastoral, Roma, Pontifícia Università Gregoriana, 1996, p. 63.
2. Lumen gentium, 36.
3. M. Ragon, L’homme et les villes, Paris, Abin Michel, 1975, p. 34. Muitas das reflexões que aqui aparecem são devedoras desse livro.
4. M. Ragon, op. cit., passim.
5. L. Mumford, A Cidade na história. Suas origens, suas transformações, suas perspectivas, Belo Horizonte, Itatiaia, 1965, vol. I, p. 11.
6. J. Comblin, História da teologia católica, São Paulo, Herder, 1969, pp. 6 e 39.
7. D. Lambert, Sciences et théologie. Les figures d’un dialogue, Namur, Presses Universitaires de Namur/Lessius, 1999, p. 41.
8. Comissão Teológica Internacional, "A interpretação dos dogmas", Atualização 20 (1990), n. 224, p. 704.
9. É uma obra paradigmática desse método o estudo sobre a Revelação de R. Latourelle: Teologia da Revelação, São Paulo, Paulinas, 1972.
10. Explicitei este método em As grandes rupturas sócio-culturais e eclesiais, Petrópolis/Rio, Vozes/CRB, 21981, pp. 18-23.
11. Cl. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 326.
12. H. Cl. de Lima Vaz, Método e dialética, mimeo., Belo Horizonte, CES, 2000, p. 2.
13. Ibid., p. 1.
14. M. Foucault, A arqueologia do saber, Petrópolis, Vozes 1972, p. 10.

Texto retirado das páginas 13 a 25.

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