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Carta Apostólica
INDULGENTIARUM DOCTRINA
sobre a doutrina das indulgências

I

1. A doutrina e o uso das indulgências vigentes na Igreja Católica há vários séculos encontram sólido apoio na revelação divina, (1) a qual vindo dos Apóstolos "se desenvolve na Igreja sob a assistência do Espírito Santo", enquanto "a Igreja, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de Deus". (2)

Mas para que essa doutrina e esse uso salutares sejam de modo exato compreendidos, é necessário relembrar certas verdades em que a Igreja Universal iluminada pela palavra de Deus sempre acreditou, e que os Bispos, sucessores dos Apóstolos, e principalmente os Pontífices Romanos, sucessores de São Pedro, no decorrer dos séculos ensinaram e sempre ensinam, quer no exercício de sua função pastoral, quer em seus documentos doutrinais.

2. Assim nos ensina a revelação divina que os pecados acarretam como conseqüência penas infligidas pela santidade e pela justiça divina, penas que devem ser pagas ou neste mundo, mediante os sofrimentos, dificuldades e tristezas desta vida e sobretudo mediante a morte, (3) ou então no século futuro pelo fogo, pelos tormentos ou penas purgatórias. (4) Da mesma forma achavam-se sempre os fiéis convencidos de que o caminho do mal é semeado de numerosos obstáculos, duro, espinhoso e prejudicial aos que por ele enveredam. (5)

E essas penas são impostas pelo julgamento, de Deus, julgamento a um tempo justo e misericordioso, a fim de purificar as almas, defender a integridade da ordem moral e restituir â glória de Deus a sua plena majestade. Todo pecado, efetivamente, acarreta uma perturbação da ordem universal, por Deus estabelecida com indizível sabedoria e caridade infinita, e uma destruição de bens imensos, quer se considere o pecador como tal quer a comunidade humana. E doutra parte, o pecado nunca deixou de aparecer claramente ao pensamento cristão não só como uma transgressão da lei divina, mas sobretudo, mesmo que não o seja sempre de modo direto e evidente, como um desprezo ou negligência da amizade pessoal entre Deus e o homem (6) e uma ofensa contra Deus, ofensa verdadeira que jamais pode ser avaliada na justa medida, afinal de contas como a recusa por um coração ingrato de amor de Deus que nos é oferecido em Cristo, uma vez que Cristo chamou a seus discípulos amigos e não mais servos. (7)

3. É portanto necessário para o que se chama plena remissão e reparação dos pecados não só que, graças a uma sincera conversão, se restabeleça a amizade com Deus e se expie a ofensa feita à sua sabedoria e bondade, mas também que todos os bens, ou pessoais ou comuns à sociedade ou relativos à própria ordem universal, diminuídos ou destruídos pelo pecado, sejam plenamente restaurados; isto ocorrerá pela reparação voluntária que não se dará sem sofrimento ou pelo suportar as penas fixadas pela justíssima e santíssima sabedoria divina, e com isso brilharão com novo resplendor no mundo inteiro a santidade e o esplendor da glória de Deus. E a existência bem como a gravidade dessas penas fazem reconhecer a insanidade e a malícia do pecado, e também as desgraçadas conseqüências que acarreta.

Podem restar e de fato restam freqüentemente penas a expiar ou seqüelas de pecados a purificar, mesmo depois de remida a falta; (8) a doutrina relativa ao purgatório mui bem o mostra: nesse lugar, com efeito, as almas dos defuntos que "verdadeiramente penitentes deixaram esta vida na caridade de Deus, antes de terem satisfeito suas ofensas e omissões por justos frutos de penitência", (9) são após a morte purificadas pelas penas purgatórias. E as próprias orações litúrgicas são reveladoras orações que desde os mais recuados tempos usa a comunidade cristã no santo sacrifício, pedindo "que nós, que somos justamente afligidos por causa de nossos pecados, sejamos misericordiosamente libertados para a glória de vosso nome". (10)

E todos os homens em seu caminhar neste mundo cometem pecados, ao menos leves, a que se chamam cotidianos: (11) de tal forma que todos têm necessidade da misericórdia de Deus para se verem libertados das conseqüências penais do pecado.