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Exortação Apostólica
FAMILIARIS CONSORTIO

I. LUZES E SOMBRAS DA FAMÍLIA DE HOJE

Necessidade de conhecer a situação

4. Uma vez que o desígnio de Deus sobre o matrimónio e sobre a família visa o homem e a mulher no concreto da sua existência quotidiana, em determinadas situações sociais e culturais, a Igreja, para cumprir a sua missão, deve esforçar-se por conhecer as situações em que o matrimónio e a família se encontram hoje.

Este conhecimento é, portanto, uma exigência imprescindível para a obra de evangelização. É na verdade, às famílias do nosso tempo que a Igreja deve levar o imutável e sempre novo Evangelho de Jesus Cristo, na forma em que as famílias se encontram envolvidas nas presentes condições do mundo, chamadas a acolher e a viver o projecto de Deus que lhes diz respeito. Não só, mas os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história, e, portanto, a Igreja pode ser guiada para uma intelecção mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da família a partir das situações, perguntas, ansiedades e esperanças dos jovens, dos esposos e dos pais de hoje.

Deve ainda juntar-se a isto uma reflexão ulterior de particular importância no tempo presente. Não raramente ao homem e à mulher de hoje, em sincera e profunda procura de uma resposta aos graves e diários problemas da sua vida matrimonial e familiar, são oferecidas visões e propostas mesmo sedutoras, mas que comprometem em medida diversa a verdade e a dignidade da pessoa humana. É uma oferta frequentemente sustentada pela potente e capilar organização dos meios de comunicação social, que põem subtilmente em perigo a liberdade e a capacidade de julgar com objectividade.

Muitos, já cientes deste perigo em que se encontra a pessoa humana, empenham-se pela verdade. A Igreja, com o seu discernimento evangélico, une-se a esses, oferecendo-lhes o seu serviço em prol da verdade, da liberdade e da dignidade de cada homem e de cada mulher.

O discernimento evangélico 

5.  O discernimento realizado pela Igreja torna-se oferta para orientação que salvaguarde e realize a inteira verdade e a plena dignidade do matrimónio e da família.

Este discernimento atinge-se pelo sentido da fé, dom que o Espírito Santo concede a todos os fiéis, e é, portanto, obra de toda a Igreja, segundo a diversidade dos vários dons e carismas que, ao mesmo tempo e segundo a responsabilidade própria de cada um, cooperam para uma mais profunda compreensão e actuação da Palavra de Deus. A Igreja, portanto, não realiza o discernimento evangélico próprio só por meio dos pastores, os quais ensinam em nome e com o poder de Cristo, mas também por meio dos leigos: Cristo «constituiu-os testemunhas, e concedeu-lhes o sentido da fé e o dom da palavra (cfr. Act. 2, 17-18; Apoc. 19, 10) a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar e social». Os leigos, em razão da sua vocação particular, têm o dever específico de interpretar à luz de Cristo a história deste mundo, enquanto são chamados a iluminar e dirigir as realidades temporais segundo o desígnio de Deus Criador e Redentor.

O «sentido sobrenatural da fé» não consiste, porém, somente ou necessariamente no consenso dos fiéis. A Igreja, seguindo a Cristo, procura a verdade, que nem sempre coincide com a opinião da maioria. Escuta a consciência e não o poder e nisto defende os pobres e desprezados. A Igreja pode apreciar também a investigação sociológica e estatística quando se revelar útil para a compreensão do contexto histórico no qual a acção pastoral deve desenrolar-se e para conhecer melhor a verdade; tal investigação, porém, não pode ser julgada por si só como expressão do sentido da fé.

Porque é dever do ministério apostólico assegurar a permanência da Igreja na verdade de Cristo e introduzi-la sempre mais profundamente, os Pastores devem promover o sentido da fé em todos os fiéis, avaliar e julgar com autoridade a genuinidade das suas expressões, educar os crentes para um discernimento evangélico sempre mais amadurecido.

Para a elaboração de um autêntico discernimento evangélico nas várias situações e culturas em que o homem e a mulher vivem o seu matrimónio e a sua vida familiar, os esposos e os pais cristãos podem e devem oferecer um seu próprio e insubstituível contributo. A esta tarefa habilita-os o carisma ou dom próprio, o dom do sacramento do matrimónio.

A situação da família no mundo de hoje

6. A situação em que se encontra a família apresenta aspectos positivos e aspectos negativos: sinal, naqueles, da salvação de Cristo operante no mundo; sinal, nestes, da recusa que o homem faz ao amor de Deus.

Por um lado, de facto, existe uma consciência mais viva da liberdade pessoal e uma maior atenção à qualidade das relações interpessoais no matrimónio, à promoção da dignidade da mulher, à procriação responsável, à educação dos filhos; há, além disso, a consciência da necessidade de que se desenvolvam relações entre as famílias por uma ajuda recíproca espiritual e material, a descoberta de novo da missão eclesial própria da família e da sua responsabilidade na construção de uma sociedade mais justa. Por outro lado, contudo, não faltam sinais de degradação preocupante de alguns valores fundamentais: uma errada concepção teórica e prática da independência dos cônjuges entre si; as graves ambiguidades acerca da relação de autoridade entre pais e filhos; as dificuldades concretas, que a família muitas vezes experimenta na transmissão dos valores; o número crescente dos divórcios; a praga do aborto; o recurso cada vez mais frequente à esterilização; a instauração de uma verdadeira e própria mentalidade contraceptiva.

Na raiz destes fenómenos negativos está muitas vezes uma corrupção da ideia e da experiência de liberdade concebida não como capacidade de realizar a verdade do projecto de Deus sobre o matrimónio e a família, mas como força autónoma de afirmação, não raramente contra os outros, para o próprio bem-estar egoístico.

Merece também a nossa atenção o facto de que, nos países do assim chamado Terceiro Mundo, faltem muitas vezes às famílias quer os meios fundamentais para a sobrevivência, como o alimento, o trabalho, a habitação, os medicamentos, quer as mais elementares liberdades. Nos países mais ricos, pelo contrário, o bem-estar excessivo e a mentalidade consumística, paradoxalmente unida a uma certa angústia e incerteza sobre o futuro, roubam aos esposos a generosidade e a coragem de suscitarem novas vidas humanas: assim a vida é muitas vezes entendida não como uma bênção, mas como um perigo de que é preciso defender-se.

A situação histórica em que vive a família apresenta-se, portanto, como um conjunto de luzes e sombras.

Isto revela que a história não é simplesmente um progresso necessário para o melhor, mas antes um acontecimento de liberdade, e ainda um combate entre liberdades que se opõem entre si; segundo a conhecida expressão de Santo Agostinho, um conflito entre dois amores: o amor de Deus impelido até ao desprezo de si, e o amor de si impelido até ao desprezo de Deus.

Segue-se que só a educação para o amor, radicada na fé, pode levar a adquirir a capacidade de interpretar «os sinais dos tempos», que são a expressão histórica deste duplo amor.

O influxo da situação na consciência dos fiéis

7.  Vivendo em tal mundo, sob pressões derivadas sobretudo dos mass-media, nem sempre os fiéis souberam e sabem manter-se imunes diante do obscurecimento dos valores fundamentais e pôr- se como consciência crítica desta cultura familiar e como sujeitos activos da construção de um humanismo familiar autêntico.

Entre os sinais mais preocupantes deste fenómeno, os Padres Sinodais sublinharam, em particular, o difundir-se do divórcio e do recurso a uma nova união por parte dos mesmos fiéis; a aceitação do matrimónio meramente civil, em contradição com a vocação dos baptizados «a casarem-se no Senhor»; a celebração do sacramento do matrimónio sem uma fé viva, mas por outros motivos; a recusa das normas morais que guiam e promovem o exercício humano e cristão da sexualidade no matrimónio.

A nossa época tem necessidade de sabedoria

 8. Põe-se assim a toda a Igreja o dever de uma reflexão e de um empenho bastante profundo, para que a nova cultura emergente seja intimamente evangelizada, sejam reconhecidos os verdadeiros valores, sejam defendidos os direitos do homem e da mulher e seja promovida a justiça também nas estruturas da sociedade. Em tal modo o «novo humanismo» não afastará os homens da sua relação com Deus, mas conduzi-los-á para Ele mais plenamente.

Na construção de tal humanismo, a ciência e as suas aplicações técnicas oferecem novas e imensas possibilidades. Todavia, a ciência, em consequência de posições políticas que decidem a direcção de investigações e aplicações, é muitas vezes usada contra o seu significado originário, a promoção da pessoa humana.

Torna-se, portanto, necessário recuperar por par te de todos a consciência do primado dos valores morais, que são os valores da pessoa humana como tal. A nova compreensão do sentido último da vida e dos seus valores fundamentais é a grande tarefa que se impõe hoje para a renovação da sociedade. Só a consciência do primado destes valores consente um uso das imensas possibilidades colocadas nas mãos do homem pela ciência, que vise verdadeiramente a promoção da pessoa humana na sua verdade integral, na sua liberdade e dignidade. A ciência é chamada a juntar-se à sabedoria.

Podem aplicar-se aos problemas da família as palavras do Concílio Vaticano II: «Mais do que os séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria».

A educação da consciência moral, que faz o homem capaz de julgar e discernir os modos aptos para a sua realização segundo a verdade originária, torna-se assim uma exigência prioritária e irrenunciável.

É a aliança com a sabedoria divina que deve ser mais profundamente reconstituída na cultura moderna. De tal Sabedoria cada homem foi feito participante pelo mesmo gesto criador de Deus. E é só na fidelidade a esta aliança que as famílias de hoje estarão em grau de influenciar positivamente na construção de um mundo mais justo e fraterno.

Gradualidade e conversão

 9. Todos devemos opor-nos com uma conversão da mente e do coração, seguindo a Cristo Crucificado, no dizer não ao próprio egoísmo, à injustiça originada pelo pecado - profundamente penetrado também nas estruturas do mundo de hoje - e que muitas vezes obsta a família na plena realização de si mesma e dos seus direitos fundamentais. Uma semelhante conversão não poderá deixar de ter influência benéfica e renovadora mesmo sobre as estruturas da sociedade.

É pedida uma conversão contínua, permanente, que, embora exigindo o afastamento interior de todo o mal e a adesão ao bem na sua plenitude, se actua concretamente em passos que conduzem sempre para além dela. Desenvolve-se assim um processo dinamico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social do homem. É, por isso, necessário um caminho pedagógico de crescimento, a fim de que os fiéis, as famílias e os povos, antes, a própria civilização, daquilo que já receberam do Mistério de Cristo, possam ser conduzidos pacientemente mais além, atingindo um conhecimento mais rico e uma integração mais plena deste mistério na sua vida.

«Inculturação»

10.  É de facto conforme à tradição constante da Igreja recolher das culturas dos povos tudo aquilo que é em grau de exprimir melhor as inexauríveis riquezas de Cristo. Só com o concurso de todas as culturas, tais riquezas poderão manifestar-se sempre mais claramente e a Igreja poderá caminhar para um conhecimento cada dia mais completo e aprofundado da verdade, que já lhe foi inteiramente oferecida pelo seu Senhor.

Tendo firme o duplo princípio da compatibilidade das várias culturas a assumir com o Evangelho e da comunhão com a Igreja universal, deverá prosseguir-se no estudo - particularmente por parte das Conferências episcopais e dos Dicastérios competentes da Cúria Romana - e no empenhamento pastoral para que esta «inculturação» da fé cristã se realize sempre mais amplamente também no âmbito do matrimónio e da família.

É mediante a «inculturação» que se caminha para a reconstituição plena da aliança com a Sabedoria de Deus, que é o próprio Cristo. A Igreja inteira será enriquecida também por aquelas culturas que, embora carentes de tecnologia, são ricas em sabedoria humana e vivificadas por profundos valores morais.

Para que seja clara a meta deste caminho e, por conseguinte, seguramente indicada a estrada, o Sínodo, em primeiro lugar e em profundidade considerou justamente o projecto originário de Deus acerca do matrimónio e da família: quis «retornar ao princípio» em obséquio ao ensinamento de Cristo.