A g n u s D e i

EVANGELIUM VITAE
João Paulo II
25.03.1995

Capítulo II
"VIM PARA QUE TENHAM VIDA"
A Mensagem Cristã sobre a Vida

"A vida manifestou-se, nós vimo-la" (1 Jo 1, 2): o olhar voltado para Cristo, "o Verbo da vida"

29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal!

Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, "o Verbo da vida" (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não é uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14, 6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: "Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais" (Jo 11, 25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, para os tornar participantes deste dom: "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância" (Jo 10, 10).

Deste modo, a possibilidade de "conhecer" a verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a ação e a própria pessoa de Jesus; e desta "fonte", vem-lhe, de forma especial, a capacidade de "praticar" perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana.

Em Cristo, de fato, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência "desde o princípio", ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo "com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna".22

30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar d'Ele "as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho da vida. O sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no início da sua Primeira Carta: "O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, — porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco" (1, 1-3).

Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, "Verbo da vida". Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo à sua plena realização.

"O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me salvou" (Ex 15, 2): a vida é sempre um bem

31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex 1, 15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objeto de um terno e intenso amor da parte de Deus.

A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para encontrar n'Ele eficaz assistência: "Formei-te, tu és meu servo; Israel, não te posso esquecer" (Is 44, 21).

Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança também na percepção do sentido e valor da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.

É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Jó? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: "Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um tesouro?" (3, 20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do "mistério": "Sei que podes tudo e que nada Te é impossível" (Jó 42, 2).

Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: "Todas as coisas que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro" (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.

"Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças" (At 3, 16): na precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida

32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os "pobres" que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, "amante da vida" (Sab 11, 26), já tinha tranqüilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.

"Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres" (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1), Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de qualquer modo "limitada" ouvem d'Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34).

Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e ação de Jesus, são os "pobres". As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados sejam os seus anseios de salvação.

Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que "andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele" (At 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente junto da porta "Formosa" do templo de Jerusalém a pedir esmola: "Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!" (At 3, 6). Pela fé em Jesus, "Príncipe da vida" (At 3, 15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma e a sua plena dignidade.

A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: "Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento" (Lc 5, 31-32).

Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: "Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será?" (Lc 12, 20).

33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta "dialética" singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do seu valor. De fato, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos justos, que se unem ao "sim" pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino "para O matar" (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do mistério desta vida que entra no mundo: "não havia para eles lugar na hospedaria" (Lc 2, 7). Exatamente por este contraste — as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro — resplandece com maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2, 10-11).

As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: "sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza" (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: "Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome" (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23, 46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!

"Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho" (Rm 8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem

34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.

Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Jó 34, 15; Sal 103 (102), 14; 104 (103), 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: "A glória de Deus é o homem vivo".23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de Deus.

Afirma-o o Livro do Gênesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no vértice da atividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica submetido: "Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os animais que se movem na terra" (1, 28) — ordena Deus ao homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das origens: "O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar" (Gn 2, 15). Confirma-se assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto de coisa.

Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é evidenciada sobretudo pelo fato de apenas a sua criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular e específica com o Criador: "Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança" (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura.

Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, "revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem" (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: "Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o mal" (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é "capaz de conhecer e amar o seu Criador".24 A vida que Deus dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites do tempo: "Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza" (Sab 2, 23).

35. Também o relato javista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga narração fala de um sopro divino que é insuflado no homem, para que este dê entrada na vida: "O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo" (Gn 2, 7).

A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: "Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós".25

Como é eloqüente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflete-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.

"Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes?" — interroga-se o Salmista (Sal 8, 5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: "Pouco lhe falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes" (Sal 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio: "Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de fato, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso".26

36. Infelizmente, este projeto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: "Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador" (Rm 1, 25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus como tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os homens.

Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: "Ele é a imagem do Deus invisível" (Col 1, 15), "o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância" (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai.

O projeto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: "O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante" (1 Cor 15, 45).

A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se "conformes à imagem do seu Filho" (Rm 8, 29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.

"Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá" (Jo 11, 26): o dom da vida eterna

37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está "n'Ele" e constitui "a luz dos homens" (Jo 1, 4), consiste em ser gerados por Deus e participar na plenitude do seu amor: "A todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de Deus" (Jo 1, 12-13).

Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente como "a vida"; e apresenta o ser gerado por Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: "Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus" (Jo 3, 3). O dom desta vida constitui o objeto próprio da missão de Jesus; Ele "é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo" (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: "Quem Me segue (...) terá a luz da vida" (Jo 8, 12).

Outras vezes, Jesus fala de "vida eterna", sem querer com o adjetivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. "Eterna" é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude de participação na vida do "Eterno". Todo aquele que crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua existência; são as "palavras de vida eterna", que Pedro reconhece na sua confissão de fé: "Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus" (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: "A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste" (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina.

38. Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo João: "Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de fato! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é" (1 Jo 3, 1-2).

Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: "glória de Deus" é, sim, "o homem vivo", mas "a vida do homem consiste na visão de Deus".27

Daqui resultam conseqüências imediatas para a vida humana em sua própria condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o "lugar" da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: "Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais" (Jo 11, 25.26).

"A cada um, pedirei contas do seu irmão" (cf. Gn 9, 5): veneração e amor pela vida dos outros

39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus é o único senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois do dilúvio: "Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão" (Gn 9, 5). E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na sua ação criadora: "Porque Deus fez o homem à sua imagem" (Gn 9, 6).

Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu poder: "Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens" — exclama Jó (12, 10). "O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá" (1 Sam 2, 6). Apenas Ele pode afirmar: "Só Eu é que dou a vida e dou a morte" (Dt 32, 39).

Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma conta do seu filho: "Fico sossegado e tranqüilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma" (Sal 131 (130), 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: "Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência" (Sab 1, 13-14).

40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta "que fizeste?" (Gn 4, 10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —, como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.

O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos "dez mandamentos" na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: "Não matarás" (Ex 20, 13), "não causarás a morte do inocente e do justo" (Ex 23, 7); mas proíbe também — como se explicita na legislação posterior de Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21, 12-27). Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 18).

41. O mandamento "não matarás", contido e aprofundado no mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede "Mestre, que hei de fazer de bom para alcançar a vida eterna?", responde: "Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos" (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita "não matarás" (19, 18). No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: "Ouvistes que foi dito aos antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal" (Mt 5, 21-22).

Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente as exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas com Jesus, essas exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em toda a sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar, membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até ao amor do inimigo.

O desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo de todo aquele que se encontra necessitado, até assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloqüente e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc 6, 27-35) e "fazer-lhe bem" (cf. Lc 6, 27.33.35), levando remédio às carências da sua vida, com prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6, 34-35). No vértice deste amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o amor providente de Deus: "Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores" (Mt 5, 44-45; cf. Lc 6, 28.35).

Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: "Com efeito: "Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás" e qualquer dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo". A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno cumprimento da lei" (Rm 13, 9-10).

"Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra" (Gn 1, 28): as responsabilidades do homem pela vida

42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele tem sobre o mundo: "Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra"" (Gn 1, 28).

O texto bíblico manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que Deus concede ao homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: "Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e justiça" (9, 1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória e honra recebidas do Criador: "Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem excepção, até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que se move nos oceanos" (Sal 8, 7-9).

Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente de vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas também às gerações futuras. É a questão ecológica — desde a preservação do "habitat" natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida, até à "ecologia humana" propriamente dita28 — que, no texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na realidade, "o domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2, 16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas".29

43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se também na específica responsabilidade que lhe está confiada no referente à vida propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da vida, através da geração por obra do homem e da mulher no matrimônio, como nos recorda o Concílio Vaticano II: "O mesmo Deus que disse "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2, 18) e que "desde a origem fez o ser humano varão e mulher" (Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e multiplicai-vos" (Gn 1, 28)".30

Ao falar de "uma participação especial" do homem e da mulher na "obra criadora" de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração do filho é um fato não só profundamente humano mas também altamente religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam "uma só carne" (Gn 2, 24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente. Como escrevi na Carta às Famílias, "quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efetivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação".31

Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloqüente, o texto sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a "mãe de todos os viventes" (Gn 3, 20); consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: "Gerei um homem com o auxílio do Senhor" (Gn 4, 1). Assim, na geração, através da comunicação da vida dos pais ao filho transmite-se, graças à criação da alma imortal,32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o início do "livro da genealogia de Adão": "Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set" (Gn 5, 1-3). Precisamente neste papel de colaboradores de Deus, que transmite a sua imagem à nova criatura, está a grandeza dos cônjuges, dispostos "a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família".33 À luz disto, o bispo Anfilóquio exaltava o "matrimônio santo, eleito e elevado acima de todos os dons terrenos", porque "gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus".34

Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, estão associados a uma obra divina: por meio do ato da geração, o dom de Deus é acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro.

Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições de maior fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para ser amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento: famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que for feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25, 31-46).

"Vós é que plasmastes o meu interior" (Sal 139 (138), 13): a dignidade da criança ainda não nascida

44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra de Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam apelos diretos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas origens, especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do seu termo, isso explica-se facilmente pelo fato de que a mera possibilidade de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do horizonte religioso e cultural do Povo de Deus.

No Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa: "Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor" (Sal 127 (126), 3; cf. Sal 128 (127), 3-4). Para esta convicção, concorre certamente a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: "Ergue os olhos para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será assim a tua descendência" (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas que, com respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da existência e a ação de Deus Criador.

"Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei" (Jr 1, 5): a existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio de Deus. Jó, na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a obra de Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da existência de um projeto divino para a sua vida: "As tuas mãos formaram-me e fizeram-me e, de repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro; far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste-me a vida e favoreceste-me; a tua providência conservou o meu espírito" (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre materno ressoam também nos Salmos.35

Como pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida possa subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que professa a sua fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da esperança da nova vida para além da morte: "Não sei como aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e criador de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor das suas leis" (2 Mac 7, 22-23).

45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da fecundidade e o trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua gravidez: ao Senhor "aprouve retirar a minha ignomínia" (Lc 1, 25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. "Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe".36

"Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz"" (Sal 116 (115), 10): a vida na velhice e no sofrimento

46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrônico esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática atual do respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de fato, perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível para a família e a sociedade.

A velhice goza de prestígio e é circundada de veneração (cf. 2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da velhice nem do seu peso; antes pelo contrário: "Vós sois a minha esperança, a minha confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na velhice e na decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a força do vosso braço, o vosso poder a todos os que hão de vir" (Sal 71 (70), 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele em que "não mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias" (Is 65, 20).

Mas, como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice? Como comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida está nas mãos de Deus: "Senhor, nas tuas mãos está a minha vida" (cf. Sal 16 (15), 5); e d'Ele aceite também a morte: "Este é o juízo do Senhor sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do Altíssimo?" (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte; tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à "vontade do Altíssimo", ao seu desígnio de amor.

Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental n'Aquele que "sara todas as enfermidades" (cf. Sal 103 (102), 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o homem — a ponto de o levar a gritar: "Os meus dias são como a sombra que declina, e vou-me secando como o feno" (Sal 102 (101), 12) — , mesmo então o crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma invocação cheia de esperança: "Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz"" (Sal 116 (115), 10); "Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando já descia ao túmulo" (Sal 30 (29), 3-4).

47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus tem a peito também a vida corporal do homem. "Médico do corpo e do espírito",37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar os seus discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes acompanha o anúncio do Evangelho: "Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios" (Mt 10, 7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).

Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, "quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á" (Mc 8, 35). A este propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Batista, precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e vai ao encontro dos seus lapidadores com as palavras do perdão (cf. At 7, 59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.

Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer; efetivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador, Aquele em quem "vivemos, nos movemos e existimos" (At 17, 28).

"Todos os que a seguirem alcançarão a vida" (Bar 4, 1): da Lei do Sinai ao dom do Espírito

48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida nesta verdade, que lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a si próprio à insignificância e à infelicidade, com a conseqüência de poder tornar-se também uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os diques que garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação.

A verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica concretamente a direção que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico — "não matarás" (Ex 20, 13; Dt 5, 17) — a garantir a proteção da vida; mas a Lei do Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa proteção, porque revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno significado.

Não admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é dado como caminho da vida: "Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres, viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir" (Dt 30, 15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo de Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a humanidade. De fato, não é possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à "lei da vida" (Sir 17, 11). O bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é construída apenas mediante o cumprimento do bem.

Portanto, é a Lei no seu todo que salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao preceito "não matarás", quando não são observadas as demais "palavras de vida" (At 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções. Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do homem e da história, é que o preceito "não matarás" voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade contida na passagem do Livro do Deuteronômio, retomada por Jesus na resposta à primeira tentação: "O homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor" (8, 3; cf. Mt 4, 4).

É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir frutos de vida e de felicidade: "Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e os que a abandonarem cairão na morte" (Bar 4, 1).

49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de projetos de vida alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo particular os Profetas, recordando insistentemente que só o Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias: "O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas" (2, 13). Os Profetas apontam o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os direitos das pessoas: "Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre" (Am 2, 7); "mancharam este lugar com o sangue de inocentes" (Jr 19, 4). E a estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a cidade de Jerusalém, designando-a como "a cidade sanguinária" (22, 2; 24, 6.9), a "cidade que derramou o sangue no seu seio" (22, 3).

Mas, ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam-se sobretudo por suscitar a esperança de um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado relacionamento com Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e extraordinárias para compreender e atuar todas as exigências contidas no Evangelho da vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que purifique e renove: "Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo" (Ez 36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34). Graças a este "coração novo", pode-se compreender e realizar o sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um dom que se consuma no dar-se. É a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da figura do Servo do Senhor: "Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos tormentos, verá a luz" (Is 53, 10.11).

Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento, ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito. Com efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf. Mt 5, 17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf. Mt 7, 12). N'Ele, a Lei torna-se definitivamente "evangelho", feliz notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes e perspectivas originais. É a Nova Lei, "a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus" (Rm 8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos irmãos: "Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos" (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade.

"Hão-de olhar para Aquele que trespassaram" (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida

50. No final deste capítulo, em que meditamos a mensagem cristã sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar Aquele que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os olhos para "o espetáculo" da cruz (cf. Lc 23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho da vida.

Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, "as trevas cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio" (Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de uma luta atroz das forças do bem contra as do mal, da vida contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a "cultura da morte" e a "cultura da vida". Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas; pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e luminosa, revelando-se como o centro, o sentido e o fim da história inteira e de toda a vida humana.

Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima "impotência", e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos dos seus adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente diante de tudo isso e "ao vê-Lo expirar daquela maneira", o centurião romano exclama: "Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus!" (Mc 15, 39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória!

Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino, responde: "Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso" (Lc 23, 43). Depois da sua morte, "abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram" (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. At 10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram sinal de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria vida de Deus.

Na Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar libertação e redenção.

51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece compenetrada meditação. "Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando a cabeça, entregou o espírito" (Jo 19, 30). E o soldado romano "perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água" (Jo 19, 34).

Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O "entregar o espírito" exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser humano, mas parece aludir também ao "dom do Espírito", com que Ele nos resgata da morte e desperta para uma vida nova.

A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os sacramentos da Igreja — cujo símbolo são o sangue e a água, que brotam do lado de Cristo —, aquela vida é incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova aliança. Da Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o "povo da vida".

Deste modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: "Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade" (cf. Heb 10, 9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo "amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13, 1), entregando-Se inteiramente por eles.

Ele que não "veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos" (Mc 10, 45), chega ao vértice do amor na Cruz: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos" (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (cf. Rm 5, 8).

Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu centro, sentido e plenitude quando é doada.

Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21).

Também nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o destino da nossa existência.

Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos a sua vontade.

Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a "não matar" a vida do homem, mas também a sabê-la venerar, amar e promover.

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