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A primazia do anúncio
19. Nas vésperas do Terceiro Milénio, ressoa de novo no coração de cada cristão a voz de Cristo Ressuscitado: «Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28, 18-20). Certos da ajuda incessante do próprio Jesus e da presença e força do Espírito, os Apóstolos saíram, imediatamente depois do Pentecostes, para cumprir tal mandato: «Eles, partindo, foram pregar por toda a parte, e o Senhor cooperava com eles» (Mc 16, 20). Aquilo que anunciaram, pode resumir-se nestas palavras de S. Paulo: «Não nos pregamos a nós próprios, mas a Cristo Jesus, o Senhor; e nós não somos senão vossos servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4, 5). Abençoada com o dom da fé, a Igreja continua, dois mil anos depois, a sair ao encontro dos povos do mundo para partilhar com eles a Boa Nova de Jesus Cristo. É uma comunidade ardente de zelo missionário, a fim de tornar Jesus conhecido, amado e seguido.
Não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor. O Concílio Vaticano II e o Magistério posterior, refutando certa confusão sobre a verdadeira natureza da missão da Igreja, tem repetidamente sublinhado a primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização. Neste sentido, o Papa Paulo VI escreveu explicitamente que «não haverá nunca evangelização verdadeira se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados».66 Foi o que fizeram gerações e gerações de cristãos, ao longo dos séculos. Com compreensível orgulho, os Padres Sinodais recordaram como «muitas comunidades cristãs da Ásia preservaram a sua fé, no decurso dos séculos, contra grandes controvérsias e mantiveram a sua herança espiritual com heróica perseverança. Para elas, partilhar este imenso tesouro é motivo de grande alegria e urgência».67
Ao mesmo tempo os participantes na Assembleia Especial afirmaram repetidamente que é necessário um renovado compromisso em prol da proclamação de Jesus Cristo, precisamente no Continente que conheceu o início deste anúncio há dois mil anos. À vista de tanta gente da Asia que nunca se encontrou, de forma clara e consciente, com a pessoa de Jesus, tornam-se ainda mais incisivas as seguintes palavras do apóstolo Paulo: «Todo o que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como hão-de invocar Aquele em quem não acreditaram? E como hão-de acreditar n'Aquele de que não ouviram falar? E como ouvirão se ninguém lhes prega?» (Rom 10, 13-14). A grande questão que a Igreja da Ásia tem agora pela frente é como partilhar com os nossos irmãos e irmãs asiáticos o tesouro que possuímos como um dom onde se encerram todos os dons, ou seja, a Boa Nova de Jesus Cristo?
Anunciar Jesus Cristo na Ásia
20. A Igreja na Ásia sente maior impaciência na sua missão de levar este anúncio, ao pensar que «existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito, uma ânsia — mesmo se inconsciente — de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à libertação do pecado e da morte».68 Esta insistência no anúncio não é ditada por impulso sectário, nem espírito de proselitismo nem ainda qualquer sentido de superioridade. A Igreja evangeliza por obediência ao mandato de Cristo, na certeza de que toda a pessoa tem o direito de ouvir a Boa Nova de Deus, que Se revela e dá em Cristo.69 Dar testemunho de Jesus Cristo é o maior serviço que a Igreja pode oferecer aos povos da Ásia, porque é a resposta ao seu anelo profundo de Absoluto, e desvenda as verdades e valores que hão-de assegurar o seu desenvolvimento humano integral.
Bem ciente da complexidade das numerosas situações da Ásia, tão diversificada, e «anunciando a verdade na caridade» (cf. Ef 4, 15), a Igreja proclama a Boa Nova com amoroso respeito e estima pelos seus ouvintes. Um anúncio, que respeite os direitos das consciências, não viola a liberdade, já que a fé requer sempre uma resposta livre por parte do indivíduo.70 Todavia, tal respeito não exclui a necessidade de anunciar explicitamente o Evangelho em toda a sua amplitude. Há que sublinhar, especialmente no contexto rico de culturas e religiões da Ásia, que «nem o respeito e a estima para com essas religiões, nem a complexidade dos problemas levantados são motivo para a Igreja calar, diante dos não cristãos, o anúncio de Jesus Cristo».71 Ao visitar a Índia em 1986, afirmei claramente que «a aproximação da Igreja às outras religiões é ditada por autêntico respeito. (...) Este respeito é duplo: respeito pelo homem na sua procura de resposta às perguntas mais profundas da sua vida, e respeito pela acção do Espírito no homem».72 De facto, os Padres Sinodais reconheceram de boa vontade, nas sociedades, culturas e religiões asiáticas, a acção do Espírito, pela qual o Pai prepara os corações das pessoas para a plenitude de vida em Cristo.73
Apesar disso, já durante as consultações que precederam o Sínodo, muitos Bispos asiáticos referiram-se a dificuldades no anúncio de Jesus como o único Salvador. No decurso da Assembleia, a situação foi descrita desta forma: «Alguns dos seguidores das grandes religiões da Ásia não sentem problema em aceitar Jesus como uma manifestação da Divindade ou do Absoluto, ou como um "ser iluminado". Mas, é difícil para eles vê-l'O como a única manifestação da Divindade».74 De facto, o esforço por partilhar o dom da fé em Jesus como o único Salvador apresenta-se carregado de dificuldades filosóficas, culturais e teológicas, sobretudo à luz das crenças de grandes religiões da Ásia profundamente permeadas por específicos valores culturais e visões do mundo.
Na opinião dos Padres Sinodais, a dificuldade é criada pelo facto de Jesus ser muitas vezes considerado como alheio à Ásia. É paradoxal que muitos asiáticos tendam a ver Jesus — nascido no continente asiático — como uma figura ocidental em vez de asiática. Era inevitável que o anúncio do Evangelho, feito por missionários ocidentais, estivesse influenciado pelas culturas donde vieram. Os Padres Sinodais reconheceram-no um facto sempre presente na história da evangelização, aproveitando a ocasião para «testemunhar de modo muito especial o seu agradecimento a todos os missionários — homens e mulheres, religiosos e leigos, estrangeiros e autóctones — que lhes trouxeram a mensagem de Jesus Cristo e o dom da fé. Uma palavra especial de gratidão deve ser expressa ainda a todas as Igrejas particulares que enviaram e continuam a enviar missionários para a Ásia».75
Os evangelizadores podem tirar proveito da experiência de S. Paulo que se empenhou em dialogar com os valores filosóficos, culturais e religiosos dos seus ouvintes (cf. Act 14, 13-17; 17, 22-31). Mesmo os Concílios Ecuménicos, que formularam doutrinas vinculantes para toda a Igreja, tiveram de lançar mão dos recursos linguísticos, filosóficos e culturais disponíveis. Assim, estes recursos tornaram-se um bem partilhado pela Igreja inteira, capazes de exprimir a sua doutrina cristológica de modo apropriado e universal. Fazem parte da herança de fé que deve ser assumida e incessantemente partilhada no encontro com as várias culturas.76 Por isso mesmo, a tarefa de anunciar Jesus de modo tal que permita aos povos asiáticos identificarem-se com Ele, continuando eles fiéis simultaneamente à doutrina teológica da Igreja e às suas próprias origens asiáticas, permanece o maior desafio.
A apresentação de Jesus Cristo como o único Salvador necessita de seguir uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do mistério. Obviamente, a evangelização inicial dos não cristãos e o anúncio posterior de Jesus aos crentes terá de ser diferente na sua abordagem. No anúncio inicial, por exemplo, «a apresentação de Jesus Cristo poderia aparecer como a realização dos desejos expressos nas mitologias e tradições dos povos asiáticos».77 Geralmente há que preferir os métodos narrativos, mais parecidos com as formas culturais asiáticas. Com efeito, o anúncio de Jesus Cristo pode fazer-se mais eficazmente narrando a sua história, como fazem os Evangelhos. E o uso de termos ontológicos, que hão-de ser sempre supostos e usados para se apresentar Jesus, pode ser contrabalançado pelo uso de categorias mais relacionais, históricas e cósmicas. Como observaram os Padres Sinodais, a Igreja deve permanecer aberta a novos e imprevistos caminhos pelos quais o rosto de Jesus possa ser apresentado aos habitantes da Ásia.78
O Sínodo recomendou que a catequese, etapa posterior ao anúncio, devia seguir «uma pedagogia evocativa, usando narrações, parábolas e símbolos, tão característicos da metodologia asiática no campo do ensino».79 O próprio ministério de Jesus mostra claramente o valor do contacto pessoal, que exige ao evangelizador que tenha a peito a situação do ouvinte, para lhe oferecer um anúncio adaptado ao seu nível de maturidade e numa forma e linguagem apropriadas. Nesta perspectiva, os Padres Sinodais sublinharam várias vezes a necessidade de um modo de evangelizar que toque a sensibilidade das pessoas asiáticas, sugerindo algumas imagens de Jesus que seriam inteligíveis para a mentalidade e as culturas asiáticas e, ao mesmo tempo, fiéis à Sagrada Escritura e à Tradição. Contam-se entre elas «Jesus Cristo como mestre de sabedoria, médico, libertador, guia espiritual, ser iluminado, amigo compassivo do pobre, bom samaritano, bom pastor, ser obediente».80 Jesus poderia ser apresentado como a Sabedoria encarnada de Deus, cuja graça faz frutificar as «sementes» da Sabedoria divina já presentes nas vidas, religiões e povos da Ásia.81 No meio de povos asiáticos que vivem a braços com tantos sofrimentos, seria melhor proclamar Jesus como o Salvador «que pode dar significado a quantos suportam penas e sofrimentos sem sentido».82
A fé que a Igreja oferece em dom aos seus filhos e filhas asiáticos não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma mera cultura humana, porque transcende tais limites e desafia realmente todas as culturas a elevarem-se para novas luzes de compreensão e expressão. Porém, ao mesmo tempo, os Padres Sinodais estavam cientes da necessidade premente que as Igrejas locais da Ásia têm de apresentar o mistério de Cristo às respectivas populações segundo os seus modelos culturais e formas de pensamento. Eles puseram em destaque que uma tal inculturação da fé no seu Continente implica redescobrir a fisionomia asiática de Jesus e identificar os meios pelos quais estas culturas possam compreender o significado salvífico universal do mistério de Jesus e da sua Igreja.83 O profundo conhecimento dos povos e suas culturas, demonstrado por homens como João de Montecorvino, Mateus Ricci e Roberto de Nobili, precisa de ser imitado no tempo actual.
O desafio da inculturação
21. A cultura é o espaço vital onde a pessoa humana se encontra face a face com o Evangelho. Se uma cultura é o resultado da vida e actividade dum grupo humano, também as pessoas pertencentes a este grupo são modeladas em larga medida pela cultura onde vivem. Dado que pessoas e sociedade mudam, também a cultura muda com elas. Se uma cultura se transforma, as pessoas e a sociedade são transformadas por ela. A partir desta perspectiva, torna-se mais claro por que evangelização e inculturação aparecem natural e intimamente ligadas uma com a outra. O Evangelho e a evangelização não são certamente identificáveis com a cultura; são independentes dela. Mas o Reino de Deus irrompe em pessoas que estão profundamente ligadas a uma cultura, e a edificação do Reino não pode deixar de servir-se de elementos das culturas humanas. Por isso, Paulo VI definiu a ruptura entre o Evangelho e a cultura como o drama do nosso tempo, com um impacto profundo tanto na evangelização como na cultura.84
Neste processo que leva a Igreja a encontrar-se com as diversas culturas do mundo, ela não só transmite as suas verdades e valores renovando intimamente as culturas, mas aproveita também das várias culturas os elementos positivos que nelas se encontram já. Este é o caminho obrigatório para os evangelizadores apresentarem a fé cristã e tornarem-na parte da herança cultural de um povo. Inversamente, as diversas culturas, quando purificadas e renovadas pela luz do Evangelho, podem tornar-se verdadeiras expressões de fé cristã. «Por sua vez, a Igreja, com a inculturação, torna-se um sinal mais transparente daquilo que realmente ela é, e um instrumento mais apto para a missão».85 Este compromisso com as culturas esteve sempre presente na peregrinação da Igreja ao longo da história; mas hoje reveste-se de uma urgência particular na situação pluriétnica, plurirreligiosa e pluricultural da Ásia, onde o cristianismo muitas vezes é visto ainda como religião estrangeira.
Neste momento, é bom lembrar a verdade repetidamente afirmada durante o Sínodo de que o Espírito Santo é o primeiro agente da inculturação da fé cristã na Ásia.86 O mesmo Espírito Santo que nos guia para a verdade total, torna possível um diálogo frutuoso com os valores culturais e religiosos dos diversos povos, no meio dos quais Ele se encontra já em certa medida presente, dando aos homens e mulheres de coração sincero a força para vencerem o mal e as insídias do maligno e oferecendo realmente a todos, embora de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de terem parte no Mistério Pascal.87 A presença do Espírito garante que o diálogo se desenrole com verdade, lealdade, humildade e respeito.88 «Ao oferecer aos outros a Boa Nova da Redenção, a Igreja esforça-se por compreender a sua cultura. Procura conhecer as mentalidades e os corações dos seus ouvintes, os seus valores e costumes, os seus problemas e dificuldades, as suas esperanças e sonhos. Uma vez que conhece e compreende estes vários aspectos da cultura, então ela pode começar o diálogo da salvação; pode oferecer, de modo respeitoso, com clareza e convicção, a Boa Nova da Redenção a todos aqueles que livremente desejarem ouvir e responder».89 Por isso, o povo da Ásia, que deseja assumir a fé cristã segundo a sua maneira própria de asiáticos, pode estar certo de que as suas esperanças, expectativas, inquietações e sofrimentos não só são partilhadas por Jesus, mas tornam-se verdadeiramente o ponto pelo qual o dom da fé e o poder do Espírito penetram no âmago mais profundo das suas vidas.
Compete aos Pastores, em virtude do seu carisma, conduzir este diálogo com discernimento. De igual modo, os peritos em ciências sagradas e profanas têm um papel importante a desempenhar no processo de inculturação. Mas, o processo deve envolver todo o Povo de Deus, já que a vida da Igreja inteira deve mostrar exteriormente a fé que está a ser anunciada e recebida. Para garantir que isso se verifique como convém, os Padres Sinodais identificaram algumas áreas que merecem particular atenção: reflexão teológica, liturgia, a formação de sacerdotes e religiosos, catequese e espiritualidade.90
Áreas-chave de inculturação
22. O Sínodo encorajou os teólogos no cumprimento do seu delicado trabalho de desenvolver uma teologia inculturada, especialmente na área da cristologia.91 Lá foi observado que «este trabalho teológico tem de ser realizado com coragem, fidelidade à Sagrada Escritura e à Tradição da Igreja, sincera adesão ao Magistério e conhecimento das realidades pastorais».92 Desejo também incitar os teólogos a trabalharem em espírito de união com os Pastores e o povo, que — cada um em união com os outros, e nunca um separado dos outros — «reflecte aquele sentido da fé, que é necessário nunca perder de vista».93 O trabalho teológico deve procurar sempre respeitar a sensibilidade dos cristãos, para que, graças a um crescimento gradual para formas inculturadas de exprimir a fé, o povo nunca seja confundido nem escandalizado. Em todo o caso, a inculturação há-de ser marcada pela compatibilidade com o Evangelho e a comunhão com a fé da Igreja universal, em plena concordância com a Tradição da Igreja e com o intuito de fortalecer a fé do povo.94 O teste de uma inculturação verdadeira é verificar se o povo adere mais à sua fé cristã, porque a vê melhor com os olhos da sua própria cultura.
A liturgia é a fonte e o vértice de toda a vida e missão cristã.95 É decisivamente um meio de evangelização, sobretudo na Ásia, onde os seguidores das diferentes religiões são muito sensíveis ao culto, festas religiosas e devoções populares.96 Na sua maior parte, a liturgia das Igrejas Orientais tem sido inculturada com bom êxito ao longo de séculos de interacção com a cultura circundante, mas as Igrejas de formação mais recente precisam de assegurar que a liturgia se torne uma fonte ainda maior de nutrimento para os seus povos, através de um uso claro e efectivo de elementos tirados das culturas locais. Mas, para a inculturação litúrgica, não basta fixar a atenção sobre os valores, símbolos e rituais da cultura tradicional; é preciso atender também às mudanças causadas na consciência e nos comportamentos pelas culturas secularistas e consumistas emergentes, que estão a afectar o sentido asiático do culto e da oração. Nem se podem descuidar, numa inculturação litúrgica genuinamente asiática, as necessidades específicas dos pobres, migrantes, refugiados, jovens e mulheres.
As Conferências Nacionais e Regionais dos Bispos têm necessidade de trabalhar de forma mais estreita com a Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos na busca de meios efectivos para fomentar formas de culto apropriadas ao contexto asiático.97 Tal cooperação é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igrejas locais isoladamente da Igreja universal.
Os Padres Sinodais assinalaram de forma particular a importância da palavra da Bíblia na transmissão da mensagem de salvação aos povos da Ásia, porque neste Continente a palavra é muito importante para a salvaguarda e comunicação da experiência religiosa.98 Daqui se deduz que é necessário desenvolver um efectivo apostolado bíblico a fim de assegurar que o texto sagrado seja mais amplamente difundido e mais intensa e devotamente usado entre os membros da Igreja da Ásia. Os Padres Sinodais incitaram a fazer dela a base de todo o anúncio missionário, catequese, pregação e géneros de espiritualidade.99 Há necessidade de estimular e apoiar iniciativas para traduzir a Bíblia para as línguas locais. A formação bíblica deveria ser considerada um meio importante para educar as pessoas na fé e habilitá-las para a tarefa do anúncio. Cursos sobre a Bíblia, de orientação pastoral, com a devida ênfase na aplicação dos seus ensinamentos às complexas realidades da vida asiática, devem ser incorporados nos programas de formação para o clero, as pessoas de vida consagrada e o laicado. 100 A Sagrada Escritura deveria ser dada a conhecer também entre os seguidores doutras religiões; a Palavra de Deus possui, inerente a si mesma, um poder que toca o coração das pessoas, visto que, através das Escrituras, o Espírito Santo revela o plano de Deus para a salvação do mundo. Além disso, o estilo narrativo presente em muitos livros da Bíblia tem afinidades com os textos religiosos próprios da Ásia. 101
Outro aspecto-chave do processo de inculturação é a formação dos evangelizadores, de que depende em grande parte o futuro do mesmo. No passado, a formação seguiu frequentemente o estilo, os métodos e programas importados do Ocidente; os Padres Sinodais, ao mesmo tempo que manifestavam o seu apreço pelo serviço prestado por este modo de formação, reconheceram, como evolução positiva, os esforços que se têm feito recentemente para adaptar a formação dos evangelizadores ao contexto cultural da Ásia. Juntamente com um sólido fundamento nos estudos bíblicos e patrísticos, os seminaristas deveriam adquirir uma detalhada e firme compreensão do património teológico e filosófico da Igreja, como recomendei na Encíclica Fides et ratio. 102 Tendo esta preparação por base, ser-lhes-á proveitoso o contacto com as tradições filosóficas e religiosas asiáticas. 103 Os Padres Sinodais encorajaram também os professores e orientadores dos Seminários a procurarem uma profunda compreensão dos elementos de espiritualidade e oração próprios do continente asiático, e a comprometerem-se mais profundamente na luta dos povos asiáticos por uma vida mais abundante. 104 Tendo isso em vista, foi realçada a necessidade de assegurar a formação apropriada dos orientadores dos Seminários. 105 O Sínodo falou também da formação das pessoas de vida consagrada, deixando claro que a sua espiritualidade e estilo de vida há-de ser sensível à herança religiosa e cultural da gente com quem vivem e a quem servem, sempre pressupondo o necessário discernimento do que é, ou não, conforme ao Evangelho. 106 Além disso, visto que a inculturação do Evangelho envolve todo o povo de Deus, o papel do laicado é de suprema importância. São sobretudo os leigos os que são chamados a transformar a sociedade, em colaboração com os Bispos, clero e religiosos, infundindo o «pensamento de Cristo» na mentalidade, costumes, leis e estruturas do mundo secular onde vivem. 107 Uma inculturação do Evangelho alargada a todos os níveis da sociedade asiática dependerá imenso da formação adequada que as Igrejas locais poderem dar ao laicado.
Vida cristã como anúncio
23. Quanto mais a Comunidade cristã estiver arraigada na experiência de Deus que brota duma fé viva, tanto mais será capaz de anunciar credivelmente aos outros a realização do Reino de Deus em Cristo. Isso será o resultado da escuta fiel da palavra de Deus, da oração e contemplação, da celebração do mistério de Jesus nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, e do exemplo dado de verdadeira comunhão de vida e integridade de amor. O coração da Igreja particular deve permanecer fixo na contemplação de Jesus Cristo, Deus feito homem, e esforçar-se constantemente por chegar a uma união cada vez mais íntima com Ele, cuja missão ela continua. A missão é acção contemplativa e contemplação activa. Por isso, um missionário que não possua uma profunda experiência de Deus na oração e na contemplação terá pouca influência espiritual e reduzido sucesso missionário. Trata-se de uma conclusão extraída do meu próprio ministério sacerdotal; e, como escrevi noutro lugar, o meu contacto com representantes das tradições espirituais não cristãs, de modo particular as da Ásia, veio confirmar a minha convicção de que o futuro da missão depende em grande parte da contemplação. 108 Na Ásia, berço de grandes religiões onde indivíduos e mesmo populações inteiras têm sede do Divino, a Igreja é chamada a ser uma comunidade orante, profundamente espiritual, mesmo quando directamente ocupada em assuntos humanos e sociais. Todos os cristãos necessitam duma verdadeira espiritualidade missionária feita de oração e contemplação.
Uma pessoa verdadeiramente religiosa ganha prontamente respeito e aceitação na Ásia. É que a oração, o jejum e as várias formas de ascetismo são tidas em grande estima; e a renúncia, o desapego, a humildade, a simplicidade e o silêncio são considerados grandes valores pelos seguidores de outras religiões. Para que a oração não apareça desunida da promoção humana, os Padres Sinodais insistiram em que «as obras de justiça, de caridade e de solidariedade façam parte duma autêntica vida de oração e contemplação, e de facto só uma tal espiritualidade poderá ser a fonte boa da nossa obra evangelizadora». 109 Plenamente convictos da importância de testemunhas autênticas para a evangelização da Ásia, os Padres Sinodais declararam: «A Boa Nova de Jesus Cristo só pode ser proclamada por aqueles que se deixarem conquistar e inspirar pelo amor do Pai a seus filhos, manifestado na pessoa de Jesus Cristo. Este anúncio é uma missão que necessita de homens e mulheres santos que desejam, através de suas vidas, tornar conhecido e amado o Salvador. Um fogo só pode ser aceso por algo que já esteja incendiado. Do mesmo modo, também só é possível realizar, na Ásia, um frutuoso anúncio da Boa Nova da salvação, se Bispos, clero, pessoas de vida consagrada e laicado estiverem, eles próprios, abrasados pelo amor de Cristo e inflamados de zelo por tornarem-No mais largamente conhecido, mais profundamente amado e mais intimamente imitado». 110 Os cristãos que falam de Cristo devem manifestar na vida a mensagem que proclamam.
A propósito disto, há uma circunstância particular no contexto asiático que merece a nossa atenção: a Igreja sabe que o testemunho silencioso de vida permanece ainda o único meio de proclamar o Reino de Deus em muitos lugares da Ásia, onde é proibido o anúncio explícito, e a liberdade religiosa é negada ou sistematicamente restringida. A Igreja abraça conscientemente este tipo de testemunho, considerando-o como parte da cruz que deve carregar (cf. Lc 9, 23), embora não cesse de implorar e incitar os Governos a reconhecerem a liberdade religiosa como um direito humano fundamental. Vale a pena repetir aqui as palavras do Concílio Vaticano II: «A pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, por parte quer dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou de qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites». 111 Em alguns países asiáticos, esta declaração tem ainda de ser reconhecida e posta em prática.
É claro, portanto, que o anúncio de Jesus Cristo na Ásia apresenta aspectos vários e complexos tanto no conteúdo como no método. Os Padres Sinodais estavam bem cientes da legítima variedade de modelos para o anúncio de Jesus, tomando providências para que a própria fé seja respeitada em toda a sua integridade ao longo do processo da sua recepção e partilha. O Sínodo observou que «a evangelização é, hoje, uma realidade rica e dinâmica. Possui vários aspectos e elementos: testemunho, diálogo, anúncio, catequese, conversão, baptismo, inserção na comunidade eclesial, a implantação da Igreja, inculturação e promoção humana integral. Alguns destes elementos comparecem juntos, enquanto outros constituem fases sucessivas do processo global de evangelização». 112 Mas, em todo o trabalho de evangelização há que anunciar a verdade completa de Jesus Cristo. Pôr em destaque determinados aspectos do mistério inexaurível de Jesus é simultaneamente legítimo e necessário para iniciar gradualmente uma pessoa no conhecimento de Cristo, mas isso não deve levar a comprometer a integridade da fé. No fim, a aceitação da fé por um indivíduo deve estar assente numa compreensão segura da pessoa de Jesus Cristo, tal como é apresentada pela Igreja em todo o tempo e lugar, o Senhor de todos, que é «o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade» (Heb 13, 8).