A g n u s D e i

DOCUMENTO SOBRE A FAMÍLIA
CNBB
20.03.1975

2. ASPECTOS TEOLÓGICOS-PASTORAIS

2.1 - A indissolubilidade do vínculo conjugal: Mandamento do Senhor

31. Se a Igreja eleva a sua voz em defesa da perenidade da união conjugal, alicerce da estabilidade da família, é porque recebeu este mandamento do Senhor. Já na Antiga Aliança, pelo profeta Malaquias, Deus diz que detesta o divórcio (cf. Mal 2,13ss).

32. No Evangelho o Senhor inculca a indissolubilidade do matrimônio. Na verdade, o matrimônio, entendido como comunidade de vida, instituída por Deus, do homem e da mulher, que se fundamenta no amor e fidelidade incondicionaìs de ambos os cônjuges, nunca mais pode ser dissolvido, segundo a vontade de Deus: "o que Deus uniu, jamais o homem pode separar" (Mt 19,6ss), quem se separa não poderá casar outra vez (cf. Mc 10,11).

Fiel, como o apóstolo Paulo, a Igreja aceita a lei evangélica, (cf. 1Cor 7,10-16) porque ela sabe que essa leì procede da vontade amorosa e da sabedoria infinita de quem anela pela felicidade humana e constantemente ilumina os homens, descortinando-lhes novas dimensões de sua própria realidade humana. Ela traz luz e orienta a própria Igreja e todos os homens de boa vontade e faz descobrir nova dimensão do amor na unìão conjugal, que alcança seu ápice no matrimônio-sacramento, reflexo da união indissolúvel de Cristo com a sua Igreja (Ef 5,31-32).

O Evangelho, de fato, desvenda o mistério original que trabalha, ativa e nutre por dentro os que vivem o amor matrimonial. Coloca-os inseridos no mistério criador e salvador, em nova condição existencial, na qual são absorvidas e transformadas as vidas individuais e as vontades pessoais libertas de seus caprichos egoístas. Surge e se instaura pelo casamento um ser novo, os dois, inseparavelmente, num só; os dois, irrevogavelmente, numa só carne, como diz a Bíblia (cf. Gên 2,24; Mt 19,6; Mc 10,8; Ef 5,31-32).

33. Cristo se recusa a pactuar com a fraqueza humana. Sabe que, onde há fraqueza no homem, ali nascem também novas energias restauradoras, novos anseios e esforços por recuperar valores esquecidos ou perdidos. Nestas forças renovadoras que parecem recursos misteriosos de todo ser vivo, reconhecemos a graça pascal de Cristo que morrendo ressuscita e dá a vida até aos mortos (cf. Jo 11). À luz do Evangelho divisamos a graça do matrimônio elevado à plenitude de sacramento (cf. Ef 5,25-27.32). Pelo Evangelho descobrimos o apelo do amor nupcial para o vínculo estável. 0 Evangelho nos torna mais conscientes da enorme dificuldade em responder plenamente a esse apelo. Do Evangelho também haurimos a promessa e a esperança no dom de Deus de fidelidade absoluta ao compromisso assumido no casamento por todos os dias da vida, fidelidade na qual, em última análise, se funda e repousa a estabilidade da família.

34. Baseando-se, pois, nas Sagradas Escrituras, a Igreja ensinou e ensìna a indissolubilidade do vínculo matrimonial, que adquire peculiar firmeza no matrimônio-sacramento (Cân. 1013 §2°). Mais: segundo a doutrina da Igreja, a indissolubilidade constitui uma das propriedades essenciais do matrimônio, de tal forma que sua exclusão traria consigo a nulidade do casamento.

Assim se compreende que "a ação da Igreja sempre tem sido dirigida e continua a sê-lo ainda hoje no sentido de obter que esta propriedade essencial seja reconhecida e garantida mesmo pela legislação dos Estados no concernente não só no matrimônio-sacramento, mas a todo casamento válido" (Osservatore Romano nº 8, de 23.2.75, comentárìo p. 1).

2.2 - A indissolubilidade do vínculo: exigência do amor

35. Ao falar da família, a Igreja não pode admitir que a sua mensagem seja interpretada em dois níveis irredutivelmente separados, quais seriam o "natural" e o "sobrenatural". É um fato que a Igreja proclama a sacramentalidade do matrimônio como valor altíssimo e novo. Todavia, a Igreja sempre afirmou igualmente que o sacramento do matrimônio não se substitui à realidade do compromisso matrimonial natural, nem a ela se sobrepõe, mas a santifica nas pessoas marcadas pela Fé e pelo Batismo. Por isso, a Igreja, quando fala do matrimônio, visa essencial e fundamentalmente a instituição conjugal e familiar na sua original intangibilidade.

36. A doutrina da Igreja sobre o matrimônio tem por fundamento a sua inconfundível concepção da dignidade do homem, dignidade que se expressa plenamente no amor.

Pelo uso da sua liberdade, o homem busca o bem, a posse de valores que o elevem e o promovam. Ovando este bem ou este valor é uma coisa, o movimento da liberdade se consuma num gesto de posse. Ovando porém este valor é uma pessoa, o homem intui que ela não se rende a um gesto de posse, mas se oferece livremente em resposta, a um gesto de dom. O amor humano se revela assim como o encontro de um dom mútuo e total. Só a totalidade do dom inaugura um relacionamento de amor. Nesta totalidade está inscrita uma exigência imanente de irreversibilidade. O amor humano, na sua autenticidade original, transcende o tempo e não se deixa limitar pelas precauções de um calculismo egoísta. Um compromisso condicional inaugura, de fato, uma aproximação de egoísmos paralelos, da qual cada um dos cônjuges procura extrair para si a maior soma de satisfações pessoais. Esta contrafação do amor se dissolve quando o balanço hedonista apresenta um saldo negativo, liberando cada um dos cônjuges para uma nova aventura, votada ao mesmo fracasso. Defendendo a indissolubilidade como exigência do amor, a Igreja não se obstina numa irritante intolerância, mas procura defender a dignidade do amor humano contra sua própria fragilidade, para assegurar a experiência de uma verdadeira plenitude que se situa além das inevitáveis crises. Sem uma garantia de indissolubilidade, tais crises, que poderiam reduzir-se a episódios dolorosos mas passageiros, transformam-se em rupturas irreparáveis.

37. Sem o amor irrestrito, pelo qual o homem se ultrapassa e ultrapassa as necessidades dos interesses efêmeros, não há comunhão autêntica. Porque só este amor leva a pessoa à maturidade, à libertação das raízes da escravidão do egoísmo. A comunhão humana, livre do capricho e do instinto, só existe quando há compromisso pelo bem do outro, dedicação ao valor do outro, que não se mede por nenhum interesse. Mas supõe a disposição para as implicações do amor, mesmo com sacrifício. Aí está a dimensão pascal do amor cristão.

38. A vida só é verdadeiramente humana, se vivida em confiança. A juventude, sobretudo, exige um clima de confiança, cuja razão de ser não seja o cálculo, mas exclusivamente a dignidade do outro. Se não o encontra, a sua capacidade de conviver humanamente e a sua generosidade se atrofiam.

No matrimônio o amor tende a se expandir em tal plenitude que compromete os cônjuges em todas as dimensões da vida. Isto só será possível se a confiança mútua tiver por fundamento valores pelos quais se sintam totalmente comprometidos na livre opção que fizeram por essa possibilidade única de um verdadeiro desabrochar humano.

39. Sabemos que todos os homens de boa vontade são guiados pela graça de Deus toda vez que, em generosidade e gratuidade, se comprometem ao irrestrito respeìto mútuo e se dão verdadeira e religiosa confiança recíproca, mediante livre opção por um ideal de vida, que independe do seu arbítrio pessoal. Somente o homem que se emancipa das efêmeras arbitrariedades, está aberto ao mistério de Deus, tenha ele disso consciência ou não. É por isso que o casamento, digno desse nome, mesmo quando vivido por não cristãos, é abertura verdadeira para o sentido divino da existência a dois.

40. O matrimônio que não se abre ao mais alto e absoluto ideal, que não supera o arbítrio, traz em si a causa da esterilidade espiritual e do fastio inevitável. Não podemos afirmar que a busca do ideal seja livre em nossas vidas, pois é o próprio homem que, no exercício de sua liberdade, tem necessidade do ideal. O caminho da realização e da felicidade humanas não coincide com os desvios fáceis que pretendem evitar os obstáculos e as dificuldades, mas que na realidade levam ao engano e à fatal ilusão.

41. Não podemos deixar de mencionar aqui que o Evangelho conhece dois caminhos de realização e planificação humana no amor. Cada qual com o seu próprio dom (cf. 1Cor 7,7), ordena-se um ao outro, complementando-se na construção do Reino de Deus aqui no mundo, com vistas ao destino eterno. Um deles, o casamento em que dois seres humanos, significando o pacto indissolúvel do amor de Deus com a humanidade, concretizado no tempo pela doação total de Cristo, obediente até a morte de cruz (Fil 2,9; Jo 3,16; Jo 15,13; Ef 5,22-32), caminham juntos para Deus, numa só carne, produzindo frutos preciosos de vida, destinados a alegrar eternamente a casa do Pai.

O outro, o do celibato ou castidade por causa do Reino de Deus (cf. Mt 19,12), que, numa tensão constante pelas coisas do Senhor (1Cor 7,32), esforça-se por conservar aceso nos corações humanos o fogo de amor divino trazido por Cristo à terra (Lc 12,49) difundido em todos os corações pelo dom do Espírito Santo (Rom 5,5). Este amor celibatário, também marcado pela renúncia e pela cruz, relembra às criaturas humanas, em suas várias condições existenciais, que só perdendo a vida por Cristo é que ela será de fato encontrada (Mt 10,37-39).

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