A g n u s D e i

DIVES IN MISERICÓRDIA
João Paulo II
30.11.1980

VIII
A ORAÇÃO DA IGREJA DOS NOSSOS TEMPOS

A Igreja faz apelo à misericórdia divina

15. A Igreja proclama a verdade da misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, e proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar a misericórdia para com os homens por meio dos homens, como condição indispensável da sua solicitude por um mundo melhor e «mais humano», hoje e amanhã.

Mas, além disso, em nenhum momento e em nenhum período da história, especialmente numa época tão crítica como a nossa, pode esquecer a oração que é um grito de súplica à misericórdia de Deus, perante as múltiplas formas do mal que pesam sobre a humanidade e a ameaçam. Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da secularização, esquecer o próprio significado da palavra «misericórdia», e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar «com grande clamor» (135) para o Deus da misericórdia. Este «grande clamor», elevado até Deus para implorar a sua misericórdia há-de caracterizar a Igreja do nosso tempo. A mesma Igreja professa e proclama que a manifestação clara de tal misericórdia se verificou em Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério pascal. É este Mistério que contém em si a mais completa revelação da misericórdia, isto é, daquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do que o pecado e que todo o mal, do amor que ergue o homem das suas quedas, mesmo mais profundas, e o liberta das maiores ameaças.

O homem contemporâneo sente estas ameaças. O que se disse acima a este propósito não é mais do que simples esboço. O homem contemporâneo interroga-se com profunda ansiedade quanto à solução das terríveis tensões que se acumulam sobre o mundo e se entrecuzam nos caminhos da humanidade. Se algumas vezes o homem não tem a coragem de pronunciar a palavra «misericórdia», ou não lhe encontra equivalente na sua consciência despojada de todo o sentido religioso, ainda se torna mais necessário que a Igreja pronuncie esta palavra, não só em nome próprio, mas também em nome de todos os homens contemporâneos.

É, pois, necessário que tudo o que acabamos de dizer no presente documento, sobre a misericórdia, se transforme continuamente em fervorosa oração, num clamor a suplicar a misericórdia, segundo as necessidades do homem no mundo contemporâneo. E que este clamor esteja impregnado de toda a verdade sobre a misericórdia que tem expressão tão rica na Sagrada Escritura e na Tradição, e também na autêntica vida de fé de tantas gerações do Povo de Deus. Com este clamor apelamos, como fizeram os Autores sagrados, para o Deus que não pode desprezar nada daquilo que Ele criou (136), para o Deus que é fiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu amor.

Como os Profetas, apelamos para o amor que tem características maternais e, à semelhança da mãe, vai acompanhando cada um dos seus filhos, cada ovelha desgarrada, ainda que houvesse milhões de extraviados, ainda que no mundo a iniquidade prevalecesse sobre a honestidade e ainda que a humanidade contemporânea merecesse pelos seus pecados um novo «dilúvio», como outrora sucedeu com a geração de Noé. Recorramos, pois, a tal amor, que permanece amor paterno, como nos foi revelado por Cristo na sua missão messiânica, e que atingiu o ponto culminante na sua Cruz, morte e ressurreição! Recorramos a Deus por meio de Cristo, lembrados das palavras do Magnificat de Maria, que proclamam a misericórdia «de geração em geração». Imploremos a misericórdia divina para a geração contemporânea! Que a Igreja, que procura, a exemplo de Maria ser em Deus, mãe dos homens, exprima nesta oração a sua solicitude maternal e o seu amor confiante, donde nasce a mais ardente necessidade da oração.

Elevemos as nossas súplicas, guiados pela fé, pela esperança e pela caridade, que Cristo implantou nos nossos corações. Esta atitude é, ao mesmo tempo, amor para com Deus, que o homem contemporâneo por vezes afastou tanto de si, que O considera um estranho e de várias maneiras O proclama «supérfluo». É, ainda, amor para com Deus, em relação ao Qual sentimos profundamente quanto o homem contemporâneo O ofende e O rejeita; e por isso estamos prontos para clamar com Cristo na cruz: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (137). Tal atitude é também amor para com os homens, para com todos os homens, sem excepção e sem qualquer discriminação: sem diferenças de raça, de cultura, de língua, de concepção do mundo e sem distinção entre amigos e inimigos. Tal é o amor para com todos os homens, que deseja todo o bem verdadeiro a cada um deles, e a toda comunidade humana, a cada família, nação, grupo social, aos jovens, aos adultos, aos pais, anciãos e doentes, enfim, amor para com todos sem excepção. Tal é o amor, esta viva solicitude para garantir a cada um todo o bem autêntico e afastar e esconjurar todo o mal.

Se alguns contemporâneos não compartilharem comigo a fé e a esperança que me impelem, como servo de Cristo e ministro dos mistérios de Deus (138), a implorar nesta hora da história a misericórdia do mesmo Deus para a humanidade, que esses procurem ao menos compreender o motivo desta solicitude. Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a intuição de grande parte dos nossos contemporâneos, está ameaçado por perigo imenso. O mistério de Cristo que, revelando-nos a alta vocação do homem, me levou a pôr em evidência na Encíclica Redemptor Hominis a incomparável dignidade do mesmo homem, obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia, como amor misericordioso de Deus, manifestado no mistério de Cristo. Impele-me ainda a recorrer à misericórdia e a implorá-la, nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo, ao aproximarmo-nos do final do segundo Milénio.

Em nome de Jesus Cristo crucificado e ressucitado, e no espírito da sua missão messiânica que continua presente na história da humanidade, elevemos as nossas vozes e supliquemos que nesta fase da história, se manifeste uma vez mais o Amor que está no Pai e que, por obra do Filho e do Espírito Santo, tal Amor manifeste no nosso mundo contemporâneo a sua presença, mais forte do que o mal, e o pecado e a morte. Pedimos isto por intercessão d'Aquela que não cessa de proclamar «a misericórdia, de geração em geração»; e também pela intercessão daqueles em que já se realizaram até ao fim as palavras do Sermão da Montanha, «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (139).

Prosseguindo na grande tarefa de dar cumprimento ao Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente descobrir nova fase da auto-realização da Igreja — na medida adaptada à época que nos coube viver — a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efectivamente, é revelar Deus, isto é, o Pai, que nos permite «vê-l'O», em Cristo (140). Por mais forte que possa ser a resistência da história humana, por mais marcante que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde toda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo, realmente comunicado ao homem por meio Jesus Cristo.

Com a minha Bênção Apostólica!

- Dado em Roma, junto de São Pedro, aos trinta dias do mês de Novembro, Primeiro Domingo do Advento, do ano de 1980, terceiro do meu Pontificado.