A g n u s D e i

DIVES IN MISERICÓRDIA
João Paulo II
30.11.1980

IV
A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO

Analogia

5. No limiar do Novo Testamento repercute-se no Evangelho de S. Lucas singular correspondência entre duas vozes que proclamam a misericórdia divina, nas quais ecoa intensamente toda a tradição do Antigo Testamento. Nelas encontram expressão os conteúdos semânticos, ligados à terminologia diferenciada dos Livros Antigos. A primeira destas vozes é a de Maria que, entrando em casa de Zacarias, engrandece o Senhor louvando-O com toda a alma «pela sua misericórdia», da qual se tornam participantes, «de geração em geração», os homens que vivem no temor de Deus. Pouco depois, comemorando a eleição de Israel, proclama a misericórdia, da qual «se recorda» desde sempre Aquele que a escolheu (60).

A outra voz é a de Zacarias que, na mesma casa, por ocasião do nascimento de João Baptista, seu filho, bendizendo o Deus de Israel, glorifica a misericórdia que Ele quis «usar... para com os nossos pais e lembrar-se da sua santa aliança» (61).

No ensino do próprio Cristo esta imagem, herdada do Antigo Testamento, torna-se mais simples e, ao mesmo tempo, mais profunda. É o que se manifesta com especial evidência na parábola do filho pródigo (62), na qual a essência da misericórdia divina — embora no texto original não seja usada a palavra «misericórdia» — aparece de modo particularmente límpido. Contribui para isso, não tanto a terminologia, como nos Livros do Antigo Testamento, mas a analogia, que permite compreender com maior profundidade o próprio mistério de misericórdia, como drama profundo que se desenrola entre o amor do pai e a prodigalidade e o pecado do filho.

Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe toca e deixa a casa paterna para esbanjar essa herança numa terra longínqua «vivendo dissolutamente», em certo sentido é o homem de todos os tempos, a começar por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original. Neste ponto a analogia é muito vasta. Indirectamente a parábola estende-se a todas as rupturas da aliança de amor: a toda a perda da graça, e todo o pecado.

Ao contrário do que acontecia na tradição profética, esta analogia, embora se possa estender também a todo o povo de Israel, não o visa em primeiro lugar.

Aquele filho, «depois de ter esbanjado tudo..., começou a passar privações», tanto mais que sobreveio grande carestia «naquela terra» para onde ele tinha ido depois de abandonar a casa paterna. Em tal situação, «bem desejava matar a fome» com qualquer coisa, até mesmo «com as alfarrobas que os porcos comiam», animais que ele guardava, ao serviço de «um dos habitantes daquela terra». Mas até isso lhe era recusado. A analogia desloca-se claramente para o interior do homem. A herança que o jovem tinha recebido do pai era constituída por certa quantidade de bens materiais. Mas, mais importante do que esses bens era a sua dignidade de filho na casa paterna. A situação em que veio a encontrar-se quando se viu sem os bens materiais que dissipara, é natural que o tivesse também feito cair na conta da perda dessa dignidade. Quando pediu ao pai que lhe desse a parte de herança que lhe tocava, para se ausentar para longe, não reflectiu por certo nisso. Parece que nem mesmo agora está bem consciente dessa realidade, quando diz para si próprio: «Quantos jornaleiros na casa de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui morro de fome!». Avalia-se a si mesmo pela medida dos bens que tinha perdido e que já «não possui», enquanto os criados na casa de seu pai «continuam a possuí-los». Estas palavras exprimem principalmente a sua atitude perante os bens materiais. No entanto, por detrás delas esconde-se também o drama da dignidade perdida, a consciência da condição de filho malbaratada.

É então que toma a decisão: «Levantar-me-ei, irei ter com o meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus jornaleiros» (63). Tais palavras permitem descobrir mais profundamente o problema essencial. Através da complexa situação material de penúria a que o filho pródigo chegou, por causa da sua leviandade, por causa do pecado, amadureceu nele o sentido da dignidade perdida. Quando tomou a decisão de voltar para a casa paterna e de pedir ao pai para ser recebido, não já gozando dos direitos de filho, mas na condição de assalariado, o jovem parece à primeira vista agir por motivo da fome e da miséria em que caiu. Subjacente a esse motivo, porém, está a consciência de perda mais profunda: ser um assalariado na casa do próprio pai é com certeza grande humilhação e vergonha. Apesar disso, o filho pródigo está disposto a arrostar com tal humilhação e vergonha. Caiu na conta de que já não tem mais direito algum, senão o de ser um empregado na casa do pai. Esta reflexão, brota em primeiro lugar da plena consciência da perda que mereceu e do que, doutro modo, poderia vir a possuir. Este raciocínio, precisamente, demonstra que, no âmago da consciência do filho pródigo, se manifesta o sentido da dignidade perdida, daquela dignidade que brota da relação do filho com o pai. Com essa decisão empreendeu o caminho de regresso.

Na parábola do filho pródigo não é usado, nem uma vez sequer, o termo «justiça», assim como também não é usado no texto original, o termo «misericórdia». Contudo, a relação da justiça com o amor que se manifesta como misericórdia aparece profundamente vincada no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exacta da justiça: norma precisa mas, por vezes, demasiado rigorosa.

O filho pródigo, depois de ter gasto os bens recebidos do pai, ao regressar merece apenas ganhar para viver, trabalhando na casa paterna como empregado e, eventualmente, ir amealhando, pouco a pouco, certa quantidade de bens materiais, mas sem dúvida nunca em quantidade igual aos que tinha esbanjado. Tal seria a exigência da ordem da justiça, até porque aquele filho, com o seu comportamento, não tinha somente dissipado a parte de herança que lhe competia, mas tinha também magoado profundamente e ofendido o pai. Na verdade o seu comportamento, que a seu juízo o tinha privado da dignidade de filho não podia deixar indiferente o pai; devia fazê-lo sofrer e fazer com que se sentisse, de algum modo, envolvido nesse procedimento. Tratava-se com efeito do seu próprio filho, e esta relação não podia ser alienada nem destruída, fosse qual fosse o seu comportamento. O filho pródigo tem consciência disso, e é precisamente essa consciência que lhe mostra claramente a dignidade perdida e o leva a avaliar correctamente o lugar que ainda lhe poderia tocar na casa do pai.

Consideração pela dignidade humana

6. A imagem que acabei de descrever do estado de espírito do filho pródigo permite-nos compreender com exactidão em que consiste a misericórdia divina. Não há dúvida de que naquela simples mas penetrante comparação, a figura do pai revela-nos Deus como Pai.

A atitude do pai da parábola, todo o seu modo de agir manifestação da disposição interior, permite-nos encontrar cada um dos fios que entretecem a visão da misericórdia no Antigo Testamento, mas numa síntese totalmente nova, cheia de simplicidade e profundidade. O pai do filho pródigo é fiel à sua paternidade, fiel ao amor que desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade manifesta-se na parábola não apenas na prontidão em recebê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso para com o esbanjador que regressa. Esta atitude provoca até a inveja do irmão mais velho, que nunca se tinha afastado do pai, nem abandonado a casa paterna.

A fidelidade a si próprio por parte do pai — traço característico já conhecido pelo termo do Antigo Testamento «hesed» — exprime-se de modo particularmente denso de afecto. Lemos, com efeito, que, ao ver o filho pródigo regressar a casa, o pai, «movido de compaixão, correu ao seu encontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o» (64). Procede deste modo levado certamente por profundo afecto; e assim se explica também a sua generosidade para com o filho, generosidade que causará tanta indignação no irmão mais velho.

Todavia, as causas da sua comoção hã-de ser procuradas em algo mais profundo. O pai sabe que o que se salvou foi um bem fundamental: o bem da vida de seu filho. Embora tenha esbanjado a herança, a verdade é que a sua vida está salva. Mais ainda, esta, de algum modo, foi reencontrada. É o sentido das palavras dirigidas pelo próprio pai ao filho mais velho: «Era preciso que fizéssemos festa e nos alegrássemos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado» (65). No mesmo capítulo XV do Evangelho de S. Lucas lemos as parábolas da ovelha desgarrada e reencontrada (66) e a seguir a da dracma perdida e de novo achada (67). Em cada uma destas parábolas é posta em evidência a mesma alegria , que transparece no caso do filho pródigo . A fidelidade do pai a si próprio está inteiramente centralizada na vida do filho perdido, na sua dignidade. Assim, sobretudo, se explica a imensa alegria que manifesta quando o filho volta para casa.

Pode-se dizer, portanto, que o amor para com o filho, o amor que brota da própria essência da paternidade, como que obriga o pai, se assim nos podemos exprimir, a desvelar-se pela dignidade do filho. Esta solicitude constitui a medida do seu amor; amor, do qual escreverá S. Paulo: «A caridade é paciente, é benigna..., não busca o próprio interesse, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido... rejubila com a verdade ..., tudo espera, tudo suporta» e «não acaba nunca» (68).

A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado «agape». Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objecto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e «revalorizado». O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido «reencontrado» e ,por ter «voltado à vida». Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio.

O que, na parábola de Cristo, se verificou na relação do pai para com o filho, não se pode avaliar «de fora». As nossas opiniões acerca da misericórdia são de maneira geral o resultado de um juízo meramente externo. Acontece até por vezes que seguindo tal critério, percebemos na misericórdia sobretudo uma relação de desigualdade entre aquele que a exercita e aquele que a recebe. Por consequência, somos levados a deduzir que a misericórdia degrada aquele que a recebe e ofende a dignidade do homem.

A parábola do filho pródigo persuade-nos que a realidade é diferente: a relação de misericórdia baseia-se na experiência daquele bem que é o homem, na experiência comum da dignidade que lhe é própria. Esta experiência comum faz com que o filho pródigo comece a ver-se a si próprio e às suas acções com toda a verdade (e esta visão da verdade é autêntica humildade). Por outro lado para o pai, precisamente por isso, torna-se o seu único bem. Graças a uma misteriosa comunicação da verdade e do amor, o pai vê com tal clareza o bem operado, que parece esquecer todo o mal que o filho tinha cometido.

A parábola do filho pródigo exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem. Entendida desta maneira, constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão. Desta mesma maneira entendiam e praticavam a misericórdia os discípulos e seguidores de Cristo. A misericórdia nunca cessou de se manifestar nos seus corações e nas suas obras, como prova particularmente criadora do amor, que não se deixa «vencer pelo mal», mas vence «o mal com o bem» (69). É preciso que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre descoberto de maneira nova. Não obstante vários preconceitos, a misericórdia apresenta-se como particularmente necessária nos nossos tempos.