»» Documentos da Igreja

Carta Encíclica
DIVINO AFFLANTE SPIRITU

II. PARTE DOUTRINAL:
O ESTUDO DA SAGRADA ESCRITURA NOS NOSSOS TEMPOS

Estado atual dos Estudos Bíblicos.

Ninguém há que não possa facilmente, notar que nos últimos cinquenta anos mudaram muito as condições da ciência bíblica e das suas ciências auxiliares. Porque omitindo outros muitos fatos, quando o Nosso Predecessor escreveu a encíclica «Providentissimus Deus» apenas um ou outro lugar da Palestina se havia começado a explorar com escavações destinadas a tais estudos. Agora, porém, estas investigações cresceram muitíssimo em número e, aperfeiçoadas com método e processos mais rigorosos, ensinam-nos muito mais e com mais certeza. Todos os especialistas e os que se dedicam a estes estudos conhecem bem quanta luz saiu daquelas investigações, para mais reta e plena inteligência dos Livros Sagrados. A importância dessas explorações aumenta ainda com a descoberta de documentos escritos, que servem grandemente para o conhecimento das línguas, literaturas, acontecimentos, costumes e cultos dos homens mais antigos. De não menor importância é o descobrimento e a investigação - tão frequente na nossa época - de papiros, que tanto serviram para conhecer as letras e instituições públicas e privadas, sobretudo da época do nosso Salvador. Além disso encontraram-se e editaram-se conscienciosamente velhos códices dos Livros Sagrados; investigou-se mais ampla e profundamente a exegese dos Padres da Igreja; esclareceu-se, finalmente, com inumeráveis exemplos, o modo de falar, narrar e escrever dos antigos. Tudo isto, que não sem especial desígnio da Providência o nosso tempo conseguiu, convida e adverte em certo modo os intérpretes das Sagradas Letras para que usem animosamente de tanta luz conseguida, para perscrutar com mais perfeição, ilustrar mais claramente, e propor mais luminosamente a palavra de Deus. E se é certo que, com grande conforto da alma, vemos que os aludidos intérpretes já secundaram e secundam cuidadosamente este convite, isso é fruto, e não o último nem o mais pequeno, da encíclica «Providentissimus Deus», com que o Nosso Predecessor Leão XIII, como que pressagiando este novo florescimento das disciplinas bíblicas, chamou ao trabalho os exegetas católicos e lhes definiu sabiamente qual havia de ser o seu caminho e o seu método de trabalho.

Nós, também, por Nossa parte, desejamos conseguir, por meio desta encíclica, que este trabalho não só perdure constante, mas se aperfeiçoe e torne mais fecundo, procurando sobretudo mostrar a todos o que resta fazer e com que disposição de ânimo o exegeta católico há de empreender hoje tão grande e excelsa empresa, e acrescentar novo alento e novos estímulos aos operários que trabalham com diligência na vinha do Senhor.

§ 1º - Recurso aos textos primitivos. Estudo das línguas bíblicas.

Já os Padres da Igreja, e especialmente Santo Agostinho, recomendavam com instância ao intérprete católico, que se propunha entender e explanar as Sagradas Escrituras, o conhecimento das línguas antigas e o recurso aos textos primitivos (22).

Mas as condições dos tempos eram então tais que muito poucos, e esses só imperfeitamente, conheciam a língua hebraica. Na Idade Média, por seu lado, quando chegou ao seu máximo florescimento a Teologia Escolástica, havia diminuído tanto o próprio conhecimento da língua grega, que até os maiores doutores daquelas épocas, ao explicar os Livros Divinos, se apoiavam unicamente na versão latina, que chamam Vulgata. Ao contrário, em nossos dias não só é familiar a quase todos os cultores das antiguidades e das letras a língua grega, que já desde o Renascimento havia sido em certo modo chamada a nova vida, mas propagou-se extensamente entre os homens cultos o conhecimento do hebreu e de outras línguas orientais. A ponto tal, que hoje há tanta abundância de subsídios para aprender aquelas línguas que o intérprete bíblico, que, rechaçando-os, se tolhe o acesso aos textos originais, não poderá evitar a nota de leviano e descuidado.

Porque é também missão do exegeta recolher com extremo cuidado e veneração os mais pequenos pormenores que sob a inspiraçao do Espírito Divino saíram da pena do hagiógrafo, para chegar a um conhecimento mais perfeito e pleno do seu pensamento. Por isso deve procurar com diligência adquirir cada dia mais perícia nas línguas bíblicas e nos outros idiomas orientais e dotar a sua interpretação com todos os auxílios que lhe possa fornecer qualquer gênero de filologia. Já S. Jerônimo intentou com empenho consegui-lo, conforme o permitiram os conhecimentos da sua época, e a isto mesmo tenderam, com incansável trabalho e não mediano fruto, não poucos dos grandes exegetas dos séculos XVI e XVII, embora então fosse muito mais escasso que hoje o conhecimento das línguas. Pela mesma razão convirá, pois, explanar o texto primitivo, que, escrito pelo próprio autor sagrado, tem maior autoridade e peso que qualquer tradução antiga ou moderna, por boa que seja; o que se conseguirá com maior facilidade e fruto, se ao conhecimento das línguas se aliar também, pelo que diz respeito ao próprio texto, um sólido conhecimento dos preceitos da crítica.

Importância da crítica textual.

Advertiu claramente Santo Agostinho a importãncia que se deve atribuir a esta crítica, quando entre os preceitos que se deviam inculcar ao estudioso dos Livros Sagrados pôs, em primeiro lugar, o cuidado de obter textos bem corrigidos. «A diligência de quem deseja conhecer as Escrituras Divinas - diz aquele preclaríssimo doutor da Igreja - deve olhar primeiramente à correção dos códices, de modo que aos não emendados se prefiram aos emendados» (23).

Atualmente esta arte, conhecida pelo nome de «crítica textual» e que com grande louvor e fruto se usa na edição de textos profanos, emprega-se também nos Livros Sagrados, e com maior razão, pela própria reverência devida à palavra de Deus. Porque de sua própria natureza ela oferece a vantagem de restabelecer o mais perfeitamente possível o texto sagrado, expurgando-o das corrupções introduzidas, por deficiência dos copistas, e libertando-o, tanto quanto possível, de glosas, lacunas, inversões de palavras, repetições e outros erros de toda a espécie, que costumam infiltrar-se em escritos transmitidos ao longo de muitos séculos. Escusado será advertir que esta crítica, empregada há uns tantos decênios por alguns, a seu livre arbítrio, e de tal maneira que alguém pôde dizer que o que pretendiam era introduzir no texto sagrado, as suas opiniões e preconceitos, chegou a alcançar tal fixidez nas suas leis, e tal segurança, que veio a tornar-se notável auxílio para editar mais pura e esmeradamente a Palavra divina, e para que qualquer abuso se possa descobrir facilmente. Nem é preciso também recordar aqui - porque é notório e claro para todos os estudiosos da Sagrada Escritura - em quanto apreço e honra a Igreja teve, desde os primeiros séculos aos nossos dias, estes estudos da crítica. Hoje, pois, que a tanta perfeição chegou o emprego desta arte, é honrosa missão dos estudiosos da Bíblia, embora nem sempre seja fácil, procurar com todas as forças, que os católicos preparem oportunamente, e quanto antes, edições, tanto dos Livros Sagrados, como das versões antigas, redigidas segundo estas normas, isto é, de modo que aliem à máxima reverência ao texto sagrado a mais exata observância das leis da crítica.

E saibam todos que este longo trabalho não é só necessário para ler retamente os escritos que nos foram dados por inspiração divina, mas que o exige aquela piedade com que nos fica bem mostrar a nossa gratidão a Deus providentíssimo, que do trono da sua majestade nos enviou a nós, seus próprios filhos, estes livros, como se fossem cartas paternais.

Valor do decreto Tridentino sobre o uso da Vulgata. Versões em lingua vulgar.

Não pense alguém que este uso dos textos primitivos, obtidos pelos métodos críticos, seja contrário, no mínimo que seja, ao que o Concílio Tridentino sabiamente estabeleceu a respeito da Vulgata Latina (24). Consta, na verdade, dos documentos, que os Presidentes do Concílio foram encarregados de pedir ao Sumo Pontífice, em nome do mesmo Concílio - o que eles fizeram - que mandasse corrigir, como melhor se pudesse, primeiro, a edição latina, depois o texto grego e hebreu, divulgando-o para utilidade da Santa Igreja de Deus (25); e se então, pelas dificuldades dos tempos e outros obstáculos, se não pôde satisfazer plenamente a este desejo, atualmente, como confiamos, poder-se-á satisfazer, com mais amplitude e perfeição, juntos os esforços de todos os doutores católicos. Quanto à vontade do Concílio de Trento de que «todos usem como autêntica» a versão latina Vulgata, todos sabem que isto se refere unicamente à Igreja latina e ao uso público da Escritura e de modo nenhum diminui, sem dúvida de espécie alguma, a autoridade e força dos textos originais. Porque se não tratava então dos textos originais, mas das versões latinas que então circulavam, entre as quais determinou o Concílio que deveria preferir-se, com razão, aquela que «recebeu aprovação na mesma Igreja pelo largo uso de tantos séculos».

Assim pois, esta autoridade proeminente da Vulgata, ou, como lhe chamam, esta autenticidade, não a estabeleceu o Concílio guiado sobretudo por razões críticas, mas antes pelo legítimo uso que dela se tinha feito na Igreja, no decurso de tantos séculos: uso que por si só demonstra que está imune de qualquer erro em matéria de fé e costumes, de modo que, segundo o manifesta e confirma a mesma Igreja, pode citar-se com segurança, e sem termo de errar, nas disputas, lições e pregações; de tal modo que a sobredita autenticidade mais merece o nome de jurídica que o de crítica. Por isso esta autoridade da Vulgata em assuntos doutrinais não impede - mais ainda, quase exige hoje em dia - que esta mesma doutrina se comprove e confirme pelos próprios textos originais, e que se invoque continuamente o auxílio dos mesmos textos, com os quais se aclare e patenteie cada vez mais a reta significação das Sagradas Letras.

Também se não proíbe pelo decreto do Concílio Tridentino que para uso e proveito dos fiéis, e mais fácil inteligência da palavra divina, se façam traduções nas línguas vivas, e diretamente dos textos originais, como sabemos que já se fez, louvavelmente, em muitas regiões, com aprovação da autoridade eclesiástica.

§ 2º - Interpretação dos Livros Sagrados. Importância e investigação do sentido literal.

Bem apetrechado com o conhecimento das línguas antigas e os recursos da crítica, o exegeta católico há de empreender o trabalho de encontrar e expor a genuína significação dos Livros Sagrados, que é o principal de todos os trabalhos que lhe estão confiados. Na execução deste trabalho há de ter presente os intérpretes que o seu maior cuidado se há de pôr em distinguir e definir com clareza qual é o sentido das palavras bíblicas a que chamam literal, «do qual somente - como afirma bem o Aquinatense - se pode argumentar» (26). Assim, pois, deduzam com toda a diligência a significação literal das palavras com o seu conhecimento das línguas, recorrendo ao contexto e comparando com outras passagens semelhantes: subsídios todos de que se costuma lançar mão na interpretação dos escritos profanos, com o fim de aclarar até à evidência o pensamento do autor.

Porém os exegetas das Sagradas Letras, recordando que neste caso se trata da Palavra inspirada por Deus, cuja guarda e interpretação foi, pelo mesmo Deus, confiada à Igreja, hão de ter em conta, com diligência não menor, as explanações e declarações do magistério da Igreja, bem como as explicações dadas pelos Santos Padres, e também a «analogia da fé», como advertiu sabiamente Leão XIII, na encíclica «Providentissimus Deus» (27). Procurarão com singular empenho não expor somente - como lamentamos que se faça em certos comentários - as matérias relativas à história, à arqueologia, à filologia e outras disciplinas semelhantes, mas embora utilizadas estas, na medida em que possa ajudar a exegese, hão de mostrar de preferência qual é a doutrina teológica de fé e costumes de cada livro ou texto, de modo que esta sua explicação não só ajude os Professores de Teologia na tarefa de propor e confirmar os dogmas da fé, mas sirva de auxílio aos sacerdotes para explicar ao povo a doutrina cristã, e sirva finalmente a todos os fiéis para levarem uma vida santa e digna de um homem cristão.

Reto uso do sentido espiritual.

Ao dar esta interpretação preferentemente teológica, como dissemos, reduzirão eficazmente ao silêncio aqueles que, afirmando pouco encontrarem que eleve o espírito a Deus, alimente a alma e promova a vida interior, apregoam que é preciso refugiar-se numa certa interpretação espiritual e mística. Quão pouco assisadamente estes pensam demonstra-o a própria experiência de tantos que na consideração e meditação contínuas da palavra divina aperfeiçoam a sua alma e se tomaram de veemente amor a Deus; e ensinam-no claramente a constante prática da Igreja e os ensinamentos dos maiores doutores.

É certo que se não exclui da Escritura qualquer sentido espiritual. Porque as coisas que se disseram e se fizeram no Antigo Testamento, foram dispostas e ordenadas por Deus tão sabiamente que o passado fosse, de modo espiritual, um símbolo antecipado do que havia de suceder na nova lei da Graça. Por isso o exegeta deve encontrar e expor esta significação espiritual, contanto que conste exatamente que Deus a quis dar, do mesmo modo que o faz com a interpretação própria ou literal, como lhe chamam, que o hagi6grafo teve em vista e exprimiu. Só Deus pôde com efeito conhecer e revelar-nos esta significação espiritual.

Que tal sentido existe é-nos indicado e ensinado pelo próprio divino Salvador nos santos Evangelhos; mostram-no os Apóstolos oralmente e por escrito, imitando o exemplo do Mestre; mostra-o a doutrina perpetuamente transmitida pela tradição da Igreja; declara-o, finalmente, o mais antigo uso da liturgia, segundo o conhecido axioma: «lex precandi lex credendi est» (a norma da oração é norma de fé). Assim, pois, os exegetas católicos devem esclarecer e expor este sentido espiritual, querido e ordenado pelo próprio Deus, com a diligência que pede a dignidade da palavra divina; mas tenham meticuloso cuidado em não propor como sentido genuíno da Sagrada Escritura outras significações figurativas das coisas.

Porque se, sobretudo no cumprimento do dever da pregação, pode ser útil, para ilustrar e recomendar os assuntos de fé e moral, um certo uso mais amplo do texto sagrado, obtido por translação da significação verbal, contanto que se faça com sobriedade e moderação, nunca se deve esquecer contudo, que este uso das palavras da Sagrada Escritura lhe é como que externo e adventício, e não está isento de perigo, sobretudo hoje que os fiéis, e especialmente os instruídos nas ciências sagradas e profanas, procuram mais que o próprio Deus, nos quer significar nas Sagradas Letras do que aquilo que o eloquente orador ou escritor expõe usando com certa destreza as palavras da Biblia: «a palavra de Deus, que é viva e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes, e que atinge até a alma e o espírito, até as junturas e as medulas, e que discerne os pensamentos e as intenções do coração» (28), não necessita acicates nem retoques humanos para mover e sacudir as almas; porque as páginas sagradas, escritas sob a inspiração do Espírito Divino, abundam só por si em significações originais; dotadas de força divina, valem por si mesmas; adornadas de galas celestiais, luzem e brilham por si, contanto que o intérprete as explique tão íntegra e escrupulosamente que se mostrem à luz todos os tesouros de sabedoria e prudência que nelas se escondem.

Incitamento ao estudo dos Santos Padres e dos grandes Intérpretes.

Na consecução destes fins poderá o exegeta católico receber grande benefício do diligente estudo das obras em que os Santos Padres, os Doutores da Igreja e os ilustres intérpretes dos tempos passados expuseram as Sagradas Letras. Porque embora eles por vezes possuam menos erudição profana e conhecimentos linguísticos que os intérpretes do nosso tempo, contudo, em virtude do papel que Deus lhes havia marcado na Igreja, sobressaem por certa e suave perspicácia nas coisas celestes, e por uma admirável agudeza mental com que penetram intimamente os recônditos da palavra divina e trazem à luz tudo quanto possa conduzir a ilustrar a doutrina de Cristo e promover a santidade da vida. Precisamente se deve lamentar que esses preciosos tesouros da antiguidade cristã sejam escassamente conhecidos para não poucos dos escritores atuais, e que os cultores da história da exegese não tenham feito já quanto era necessário para investigar cuidadosamente, e dar o devido valor a coisa de tanta importância. Oxalá haja muitos que, investigando com afinco os autores e obras de interpretação católica das Escrituras, como para esgotar as imensas riquezas que outros amontoam, contribuam eficazmente para que cada dia se veja melhor até que ponto penetraram e ilustraram a doutrina dos Livros Sagrados e deles tomem exemplo os modernos intérpretes para voltar aos temas oportunos. Porque assim se conseguirá finalmente a feliz aliança da solidez e da suavidade espiritual da linguagem dos antigos, com a maior erudição e mais avançado método dos modernos, que há de trazer, certamente, novos frutos ao campo das letras divinas, nunca assás cultivado e nunca esgotado.

§ 3º - Cuidados especiais dos Intérpretes nos nossos tempos. Estado atual da exegese.

Além disso, com razão se pode esperar que também os nossos tempos nalguma coisa poderão contribuir para a mais completa e minuciosa interpretaçao das Letras Sagradas. Porque não poucas coisas, especialmente das relativas à história, ou mal foram explicadas pelos escritores dos séculos passados ou não o foram no grau necessário, porque lhes faltavam quase todos os conhecimentos necessários para as ilustrar. Com que dificuldades e quase impossibilidades tropeçaram os próprios Santos Padres vê-se bem, para omitir outros pormenores, pelos esforços em que muitos deles insistiram para interpretar os primeiros capítulos do Génesis, e também pelas repetidas tentativas de S. Jerónimo de traduzir os salmos de modo que se visse claramente o seu sentido literal, ou seja: o que exprimem as próprias palavras. Há, finalmente, outros livros ou textos sagrados cujas dificuldades se descobriram recentemente, quando com mais profundo conhecimento das antiguidades surgiram novas questões que requerem mais atento estudo.

Sem razão, pois, andam dizendo alguns, que não compreendem bem as condições das ciências bíblicas, que ao exegeta católico do nosso tempo nada falta acrescentar ao já dito pela antiguidade cristã, quando é certo que a nossa época suscitou tantas coisas que necessitam nova investigação e exame e estimulam não pouco a atividade científica do intérprete de hoje.

Deve-se estudar a índole do Hagiógrafo.

Assim como a nossa época tem de arrostar com novas questões e novas dificuldades, oferece também, por mercê de Deus, novos subsídios e ajudas para a exegese. Entre estes parece digno de peculiar menção o de que os teólogos católicos, seguindo a doutrina dos Santos Padres, e especialmente a doutrina do Doutor Angélico e Comum, tenham investigado e apresentado a natureza e os efeitos da inspiração bíblica melhor do que era costume fazê-lo nos séculos passados. Porque partindo, no seu raciocínio, da suposição de que o hagiógrafo ao compor o livro sagrado é «organon» ou instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e dotado de razão, advertem justamente que ele, levado de moção divina, emprega as suas faculdades e forças de tal modo que, do livro que nasce por obra sua, podem coligir todos facilmente «a sua índole própria e peculiar e, por assim dizer, os seus traços e qualidades singulares» (29). Portanto, o intérprete, com todo o esmero e sem descurar nenhuma luz que hajam trazido as investigações mais recentes, esforçar-se-á por distinguir qual foi a índole própria e o teor de vida do escritor sagrado, em que época floresceu, que fontes escritas ou tradição oral utilizou, que formas de linguagem empregou. Porque deste modo melhor poderá conhecer quem foi o hagiógrafo e o que ele escrevendo quis significar.

Com efeito, não passa despercebido a ninguém que a norma suprema da interpretação é que se veja e defina o que quis dizer o escritor, segundo a magnífica advertência de Santo Atanásio: «Aqui, como convém praticar em qualquer outro lugar da Escritura divina, é preciso observar em que ocasião falou o Apóstolo e ter em conta escrupulosa e fielmente quem é a pessoa e qual o assunto por cuja causa escreveu, não seja caso que, por ignorância destes pormenores, ou entendendo outra coisa em vez daquela, alguém se afaste do significado verdadeiro» (30).

Importância do gênero literário especialmente na história.

Nas palavras e escritos dos antigos autores orientais frequentemente não é claro, como nos escritores nossos contemporâneos, qual é o sentido literal. Porque nem as leis da Gramática e da Filologia nem o contexto determinam, por si sós, o que eles quiseram significar com as suas palavras; é imprescindível que o intérprete remonte mentalmente a esses recuados séculos do Oriente e auxiliado convenientemente pelos subsídios da história, da arqueologia, da etnologia e outras disciplinas distinga e veja claro, que gênero literário, como se diz, quiseram empregar e de fato empregaram os escritores daquela vetusta idade. Porque os antigos orientais, para exprimir o que tinham na mente não empregavam sempre as mesmas formas e modos de dizer que nós usamos hoje, mas sim os que corriam entre os homens do seu tempo e da sua nação.

Quais foram estes, não pode o exegeta estabelecê-lo de antemão, mas só depois de cuidadosa investigação da antiga literatura do Oriente. Porém esta investigação, nos últimos decênios, conduza com maior cuidado e diligência que antes, esclareceu quais as formas de linguagem se usaram na antiguidade para descrever poeticamente as coisas, ou para apresentar as leis e normas de vida, ou finalmente, para narrar os fatos e sucessos da história. Esta mesma investigação comprovou também com evidência que o povo israelita sobressaiu singularmente entre as demais nações do velho Oriente no tocante ao escrever devidamente a história, tanto pela antiguidade como pelo fiel relato dos sucessos, o que já se deduziria pelo carisma da inspiração divina e pelo fim peculiar da história bíblica, que é religioso.

Pois bem: ninguém que conceba retamente a inspiração bíblica deve admirar-se de que também nos escritores sagrados, como nos outros antigos, se encontrem certos modos de expor e narrar, certos idiomatismos peculiares sobretudo às línguas semíticas, chamados aproximações, e certas hipérboles e, por vezes, até paradoxos com que as coisas se gravam mais firmemente no espírito. Porque não é alheio aos livros sagrados nenhum daqueles modos de falar de que a linguagem humana costuma servir-se, para expor um pensamento, entre os povos antigos, e sobretudo entre os orientais, com esta só condição: que o gênero literário usado não repugne à santidade e à verdade de Deus, como, segundo era de esperar da sua sagacidade, adverte já o mesmo Doutor Angélico com as seguintes palavras: «Na Escritura as coisas divinas são-nos comunicadas segundo os modos usados pelos homens» (31). Pois assim como o Verbo substancial de Deus se tornou semelhante aos homens em tudo «exceto no pecado» (32), também as palavras de Deus expressas pela língua humana se tornam semelhantes à linguagem humana em tudo menos no erro, o que já foi exaltado por S. João Crisóstomo, com grandes louvores, como «synkatábasin» ou «condescendência de Deus, e assegurou repetidas vezes que se dava nos Livros Sagrados» (33).

Por isso o exegeta católico que queira satisfazer plenamente as exigências atuais dos estudos bíblicos, quando expõe a Sagrada Escritura e trata de mostrar e provar que ela está imune de qualquer erro, há de empregar também prudentemente este subsídio, a saber: averiguar em que pode contribuir para a verdadeira e genuína interpretação a forma de expressão ou gênero literário usado pelo hagiógrafo; e convença-se de que este aspecto do seu dever não pode ser descurado sem grande detrimento da exegese católica. Não raro, com efeito - para só mencionar um exemplo - quando alguns lançam a acusação de que os autores sagrados se afastaram da fidelidade histórica, ou referiram sucessos com menos exatidão, vem a provar-se que só se trata daquelas expressões usuais antigas que eles costumavam empregar continuamente no seu trato mútuo e de fato se empregam correta e universalmente. A imparcialidade exige, portanto, que quando se encontrem coisas semelhantes na elocução divina, que fala para os homens com palavras humanas, não se devam arguir de erro mais do que se faria se se encontrassem no uso cotidiano da vida.

Assim conhecidos e apreciados retamente os modos de dizer e gênero de falar e escrever dos antigos poder-se-ão resolver muitas das objeções contra a verdade e fidelidade histórica das Letras Divinas, além de que este estudo conduzirá à mais plena e clara compreensão do pensamento do autor sagrado.

Estudo das antiguidades bíblicas.

Os nossos estudiosos dos assuntos bíblicos trabalharão, pois, também nisto, com a devida diligência, e não omitirão nenhuma das provas descobertas que ofereçam a arqueologia, a história antiga ou o estudo das línguas primitivas e que sejam idôneas para fazer conhecer melhor a mentalidade dos escritores antigos e a sua maneira, forma e arte de raciocinar, narrar e escrever.

Nesta ordem de coisas advirtam também os seculares católicos, que podem não só trazer algum proveito aos estudos profanos, mas bem merecer da causa católica, entregando-se a explorar e investigar as antiguidades com toda a diligência e empenho convenientes, e colaborando na medida das suas forças para a solução desse tipo de problemas, até agora menos claros e nítidos. Porque todo o conhecimento humano, ainda que não seja de coisas sagradas, tem já uma íntima dignidade e excelência - como participação finita que é do conhecimento infinito de Deus; mas adquire nova e mais alta dignidade e como que consagração, quando se emprega para ilustrar com mais intensa luz as próprias coisas divinas.

4º - Como tratar as questões mais difíceis.

Dificuldades felizmente resolvidas com os estudos modernos

Em virtude dessa mais perfeita investigação das antiguidades orientais de que falamos, do estudo mais cuidadoso do próprio texto original e do conhecimento mais amplo e diligente das línguas bíblicas e de todas as particularidades relativas ao Oriente, aconteceu felizmente, com a graça de Deus, que não poucas daquelas questões que no tempo do Nosso Predecessor Leão XIII, de perpétua recordação, tinham levantado contra a autenticidade, antiguidade, integridade e fidelidade dos livros sagrados, os críticos afastados da Igreja, ou inclusivamente adversários dela, hoje estão já resolvidas e solucionadas. Porque os exegetas católicos, empregando retamente as mesmas armas científicas de que os adversários não raro abusavam, propuseram as interpretações, que estando de acordo com a doutrina católica e o parecer tradicional e genuíno dos antigos, parecem ao mesmo tempo ter evitado as dificuldades que as novas investigações e descobertas suscitaram ou as que a antiguidade legou sem solução ao nosso tempo.

Daí proveio entre os católicos uma restauração total da confiança na autoridade e na verdade histórica da Bíblia, que no parecer de alguns se havia diminuído um pouco perante o número dos ataques; e ainda mais: porque não faltam escritores não católicos, que depois de levar a cabo um inquérito com ânimo sereno e imparcial, foram levados a deixar as teorias dos modernos e voltaram, pelo menos neste ou naquele caso, às opiniões mais antigas.

Esta mudança de situação deve-se em grande parte ao trabalho incansável com que os expositores católicos das Sagradas Letras, sem se amedrontarem ante as dificuldades e obstáculos de todo o gênero, lutaram com todas as suas forças por fazer reto uso dos conhecimentos, que trouxera para a solução dos problemas a investigação dos eruditos contemporâneos, no campo da arqueologia, da história e da filologia.

Dificuldades ainda nao resolvidas

Ninguém se admire, contudo, de que ainda se não hajam resolvido e vencido todas as dificuldades, e que ainda hoje inquietam não pouco as inteligências dos exegetas católicos graves questões. Certo é que não deve perder-se por isso o ânimo, nem se deve esquecer que nas disciplinas humanas sucede exatamente o que sucede na natureza: que as coisas crescem lentamente e não se podem colher os frutos se não depois de muitos trabalhos. Assim sucedeu que algumas disputas, que nos tempos passados estiveram por resolver e suspensas, se solucionaram feliz e finalmente em nossos dias com o progresso dos estudos. Pela mesma razão se deve esperar que também estas outras, que hoje parecem extraordinariamente complicadas e extremamente árduas, acabem por aparecer em plena luz, graças ao constante esforço.

E se a solução desejada tarda e não nos sorri, e temos de deixar porventura que sejam os nossos sucessores que consigam o êxito feliz, ninguém se inquiete por isso, pois é justo que apliquemos a nós, o que já os Padres, e especialmente Santo Agostinho, advertiram no seu tempo: que Deus semeou de propósito dificuldades nos livros sagrados, que Ele mesmo inspirou, para que, por um lado, nos excitássemos a estudá-los e a examiná-los com mais afinco, e, por outro lado, sentindo salutarmente os limites da nossa inteligência, nos exercitássemos na devida humildade da alma (34). Nada teria portanto de estranho que nunca se chegasse a obter resposta de todo satisfatória a tal ou tal questão, tratando-se, como por vezes se trata, de coisas obscuras e demasiado afastadas dos nossos tempos e experiência, e podendo ter a exegese, como outras disciplinas, os seus segredos próprios, insuperáveis para os nossos espíritos, e incapazes de ceder a qualquer esforço.

Como se podem procurar as soluções positivas.

Apesar de ser esta a posição das coisas, o intérprete católico, impelido por um amor forte e operoso da sua especialidade e sinceramente dedicado à Santa Madre Igreja, de modo algum deve deixar de arrostar uma e outra vez com as difíceis questões ainda não resolvidas, não só para rechaçar as objeções dos adversários, mas também para tentar descobrir uma sólida explicação que concorde fielmente com a doutrina da Igreja, e nomeadamente com o que a tradição ensina sobre a imunidade de todo o erro da Sagrada Escritura e satisfaça ao mesmo tempo, como deve ser, as conclusões certas das disciplinas profanas.

Todos os outros filhos da Igreja recordem que todas as tentativas desses valentes operários da vinha do Senhor devem ser julgadas não só com imparcialidade e justiça, mas também com suma caridade; e detestem aquele modo menos prudente de pensar, segundo o qual tudo o que é novo é por isso mesmo rejeitável, ou pelo menos suspeito. Porque devem ter sempre presente, que quando a Igreja dá normas e leis é porque se trata da doutrina de fé e costumes, e que entre as muitas coisas que se propõem nos livros sagrados legais, históricos, sapienciais e proféticos, só muito poucas há cujo sentido tenha sido declarado pela autoridade da Igreja, e não são muitas mais aquelas em que seja unânime o sentir dos Santos Padres.

Restam, pois, muitas outras e gravíssimas, em cuja discussão e explicação se pode e deve exercer livremente a agudeza e o engenho dos intérpretes católicos, de modo que cada um contribua na medida das suas forças para o progresso cada vez maior da doutrina sagrada e para a defesa e honra da Igreja.

Esta verdadeira liberdade dos filhos da Igreja de Deus - que mantém por um lado com fidelidade a doutrina da Igreja, e por outro lado aceita com prazer, e utiliza como uma dádiva de Deus, os contributos dos conhecimento profanos - unanimemente mostrada e sustentada, é condição e fonte de todo o fruto sincero e de todo o avanço sólido na ciência católica, como adverte sabiamente o Nosso Predecessor Leão XIII, de feliz memória, quando diz: «se não fica salvaguardada a concórdia dos ânimos, e não se respeitam os princípios, não se poderão esperar grandes progressos desta ciência, por muito que se estude» (35).

§ 5º - Uso da Sagrada Escritura na instrução dos fiéis. Várias maneiras de empregar a Sagrada Escritura no ministério sagrado.

Quem considere os ingentes trabalhos que a exegese católica tomou sobre os seus ombros durante quase dois mil anos, para que a palavra de Deus, dirigida aos homens por meio das Sagradas Escrituras, seja cada vez mais total e perfeitamente conhecida, e com mais ardor amada, facilmente se convencerá de que os fiéis, e especialmente os Sacerdotes, têm a grave obrigação de usar copiosa e santamente desse tesouro acumulado ao longo de tantos séculos pelos mais altos engenhos. Porque Deus não concedeu os Livros Sagrados aos homens para lhes satisfazer a curiosidade ou para lhes dar um tema de investigação e estudo, mas como adverte o Apóstolo, para que estas divinas palavras nos pudessem «instruir para a salvação mediante a fé em Jesus Cristo»; e «para que o homem de Deus seja perfeito e esteja apto para toda a obra boa» (36).

Assim, pois, os sacerdotes que têm a incumbência de procurar a salvação dos fiéis, depois de terem investigado por si com diligente estudo as Páginas Sagradas e de as terem tornado suas, na oração e na meditação, tomem diligentemente, nos seus sermões, homilias e exortações, das riquezas celestes da palavra divina, confirmem a doutrina cristã com sentenças tomadas dos Livros Sagrados e a ilustrem com os preclaros exemplos da História Sagrada e especialmente do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e tudo isto - evitando com todo o empenho e diligência as acomodações feitas a seu capricho e tomadas das coisas mais remotas, o que não é uso mas abuso da palavra divina - hão de propô-lo com tal eloquência, com tal nitidez e clareza, que os fiéis não só se movam e inflamem a conduzir retamente a vida, mas também concebam no seu espírito suma veneração pela Sagrada Escritura.

Os Bispos, por sua parte, tratarão de aumentar e aperfeiçoar cada dia esta veneração nos fiéis que lhes estão confiados, promovendo todas as iniciativas com que os homens cheios de ardor apostólico tratam louvavelmente de excitar e fomentar entre os católicos o conhecimento e o amor dos livros sagrados.

Favoreçam, pois e auxiliem as piedosas associações que se propõem difundir entre os fiéis as edições da Biblia, e em especial dos Evangelhos, e procurem com todo o empenho que a sua leitura diária se faça nas famílias cristãs, reta e santamente; recomendem eficazmente a Sagrada Escritura traduzida nas línguas vivas com a aprovação da autoridade da Igreja, falando dela e empregando-a quando o permitam as leis da liturgia, e façam, ou procurem que outros oradores sagrados bem peritos façam dissertações públicas ou conferências sobre temas bíblicos. E quanto aos comentários que com tanto louvor e tão grande fruto se editam de vez em quando nos diversos países, ou para tratar e expor cientificamente as questões ou para acomodar os frutos de tais investigações ao ministério sagrado e à utilidade dos fiéis, cuidem os ministros Sagrados de apoiá-los com todas as suas forças e divulgá-los oportunamente entre os vários estados e classes do seu rebanho. Porque devem convencer-se estes ministros sagrados de que tais coisas e todas quantas o zelo apostólico e o sincero amor da Palavra divina achem idôneas para tão excelso propósito, lhes serão eficazes auxiliares na cura das almas.

Ensino da Sagrada Escritura nos Seminários

A ninguém passa despercebido que isto não o poderão fazer bem os sacerdotes, se estes, enquanto estiveram nos seminários não se embeberam de ativo e perene amor das Sagradas Escrituras. Por isso os Bispos, a quem incumbe o paternal cuidado dos seus seminários, vigiem diligentemente que também nesta matéria nada se omita do que poderia contribuir para tal fim. Os professores de Sagrada Escritura, por sua parte, completem toda a sua instrução bíblica nos seminários de modo que para a formação dos adolescentes para o sacerdócio e para o ministério da palavra divina os instruam com aquele conhecimento e lhes inculquem aquele amor das sagradas letras sem as quais não podem obter-se abundantes frutos de apostolado. Por isso a explanação exegética seja sobretudo orientada para o aspecto teológico evitando as discussões ociosas e omitindo o que mais alimenta a curiosidade do que fomenta a verdadeira doutrina e a piedade sólida; apresentem o sentido literal, e sobretudo o teológico com tal solidez expliquem-no com tal perícia, inculquem-no com tanto ardor, que aconteça em certo modo aos seus alunos o que aconteceu aos discípulos de Jesus Cristo que iam para Emaús e que depois de ouvir as palavras do Mestre exclamaram: «Não é certo que o nosso coração se inflamava quando nos explicava as Escrituras»? (37).

Convertam-se assim as Letras Divinas, para os futuros sacerdotes da Igreja, em parte pura e perene da vida espiritual de cada um e em alimento e robustecimento da missão sagrada da pregação, que vão receber. Se chegarem a conseguir isto os professores desta importantíssima disciplina nos seminários, convençam-se com júbilo de que contribuíram notavelmente para a salvação das almas, para o progresso da causa católica, para a honra e glória de Deus e levaram a cabo uma obra em estreitíssima relação com a sua missão apostólica.

Oportunidade da Palavra de Deus neste tempo de guerra: consolação para os aflitos; para todos caminho de justiça.

Se o que expusemos, Veneráveis Irmãos e amados filhos, era necessário em qualquer época, é com certeza muito mais urgente em nossos lutuosos tempos, em que quase todos os povos e nações se submergem num mar de calamidades e uma guerra cruel acumula ruínas sobre ruínas e mortes sobre mortes, e em que, excitados mutuamente os mais acerbos ódios dos povos, vemos com suma dor que em não poucos diminuiu não já o sentimento da moderação dos ânimos e da caridade cristã, mas o próprio sentimento de humanidade.

E quem poderá sanar as feridas mortais da sociedade humana senão Aquele a quem o Príncipe dos Apóstolos, cheio de amor e confiança, invoca com as palavras: «Senhor, para quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna»? (38). A este nosso misericordiosíssimo Redentor convém, pois, atrair a todos com todas as forças, porque Ele é quem a todos ensina - aos que têm a prerrogativa da autoridade pública e aos que têm o dever da submissão e da obediência - a probidade verdadeira, a justiça integral, a caridade generosa. Ele é, finalmente, o único fundamento firme e a única defesa que pode existir da paz e da tranquilidade. «Porque ninguém pode pôr outro fundamento que não seja o que está posto, que é Jesus Cristo» (39).

Pois a este Cristo, autor da salvação, conhecê-lo-ão os homens tanto mais plenamente, amá-lo-ão tanto mais intensamente, imitá-lo-ão tanto mais fielmente, quanto maior fôr o empenho com que se resolvam a conhecer e meditar as Sagradas Escrituras e sobretudo o Novo Testamento. Porque, como diz o Estrídonense (40): «Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo», «se alguma coisa há que nesta vida contenha o varão sábio e prudente, e entre as solicitações e torvelinhos do mundo o convença a permanecer de ânimo sereno, creio que é antes de mais nada, a meditação e a ciência das Escrituras» (41). Porque aqueles que estão fatigados e oprimidos por sucessos adversos e tristes aqui haurirão os verdadeiros confortos e a força divina para padecer e sofrer: aqui - isto é, nos Santos Evangelhos - todos têm a Cristo, sumo e perfeito modelo de justiça, caridade e misericórdia, e estão abertas, para o gênero humano ferido e receoso, as fontes daquela divina graça, que, quando se menospreza e esquece, nem os povos nem os seus governantes podem iniciar nem consolidar a tranquilidade social e a concórdia; finalmente, aqui aprenderão todos a Cristo, «que é cabeça de todo o principado e potestade» (42) e «que foi feito por Deus para nós, sabedoria, justiça, santificação e redenção» (43).