»» Documentos da Igreja |
§ lº - A obra de Leão XIII. Doutrina da inerrância biblica.
O primeiro e máximo cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina da verdade dos livros sagrados e defendê-la das impugnações contrárias. Assim, pois, fixou com graves expressões, que se não dá erro algum quando o escritor sagrado, ao falar de coisas físicas, «se deixa guiar pelas aparências sensíveis», como diz o Angélico (5), falando «ou de um modo figurado, ou como a linguagem vulgar costumava fazê-lo naquele tempo, e o faz hoje em muitas coisas da vida cotidiana, entre os próprios homens mais cultos». Porque os mesmos «escritores sagrados, ou mais exatamente - as palavras são de Santo Agostinho (6) - o espírito de Deus que falava por eles, não se propôs ensinar aos homens essas matérias (isto é: a constituição íntima das coisas aparentes), pois não aproveitavam à salvação de ninguém» (7); isto «convirá transportá-lo para as disciplinas afins, especialmente para a história», refutando com efeito «de modo semelhante as falsidades dos adversários» e defendendo «dos seus ataques a autoridade histórica da Sagrada Escritura» (8).
Nem seria de imputar-se ao escritor sagrado o erro quando «escapassem algumas inexatidões aos copistas na transcrição dos códices «ou quando fosse ambígua a significação genuína de alguma frase». Finalmente, que não é lícito de modo nenhum «restringir a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura, ou conceder que errou o próprio escritor sagrado», sendo que a inspiração divina «não só exclui por si mesma qualquer erro, senão que tão necessariamente o exclui e repele como necessário é que Deus, suma verdade, não seja absolutamente autor de erro nenhum. Esta é a antiga e constante fé da Igreja» (9).
Pois esta doutrina, que com tanta gravidade expôs o Nosso Predecessor Leão XIII, propomo-la também Nós, com a Nossa autoridade, e inculcamos que todos a sustentem religiosamente. Determinamos, além disso, que se não ponha menor cuidado em obedecer nos nossos próprios dias aos mesmos conselhos e incitações que ele para o seu tempo acrescentou, com grande sabedoria. Porque como surgissem novas e não leves dificuldades e questões, tanto das preconcebidas opiniões do «racionalismo», que por toda a parte se difundia, como, sobretudo, pelos antiquíssimos documentos achados e explorados em numerosos lugares das regiões orientais, o mesmo Nosso Predecessor, impelido pela solicitude do seu cargo apostólico, não só para que tão preclara fonte da revelação católica estivesse aberta mais segura e abundantemente para utilidade da grei do Senhor, mas também para que em parte alguma fosse violada, desejou ardentemente «que fossem muitos os que tomassem como coisa sua, e a mantivessem com vigor, a defesa das Letras Sagradas; e que sobretudo aqueles a quem a divina graça chamou às ordens sacras, empregassem cada dia maior diligência e indústria em lê-las, meditá-las e explicá-las, o que tudo é justíssimo que assim seja» (l0).
Impulso dado aos estudos bíblicos. Escola Bíblica de Jerusalém. Comissão Bíblica.
Por isso o mesmo Pontífice, que já muito antes tinha louvado e aprovado a Escola Bíblica de Jerusalém, fundada junto da Basílica de Santo Estêvão, pelo Mestre Geral da Sagrada Ordem dos Pregadores, para fomentar o estudo dos livros sagrados, dizendo especialmente dela «que os estudos bíblicos tinham recebido não pequeno impulso e o esperavam ainda maior» (11), no último ano da sua vida acrescentou nova razão para que estes estudos, tão recomendados na Encíclica «Providentissimus Deus», se aperfeiçoassem cada vez mais e se promovessem mais eficazmente.
Porque por meio da carta apostólica «Vigilantiae», datada de 30 de Outubro de 1902, constituiu o Conselho, ou como hoje se chama, a Comissão de graves varões, «que teriam como seu campo de atividade própria cuidar com todas as suas forças e fazer que a palavra divina seja entre nós objeto daquele estudo mais cuidado que os tempos pedem, e se mantenha isenta não só de todo o sopro de erro, mas de qualquer opinião temerária» (12); Comissão que também Nós, seguindo o exemplo dos Nossos Predecessores, confirmamos e ampliamos, usando do seu serviço, como o tínhamos feito antes muitas vezes para levar os intérpretes dos livros sagrados àquelas leis sãs da exegese católica que os Santos Padres, os doutores da Igreja e os próprios Sumos pontífices Nos confiaram (13).
§ 2º - A obra dos sucessores de Leão XIII. Pio X: Criação dos graus académicos. Programa dos Estudos Bíblicos. Instituto Bíblico.
Ao chegar a este ponto, não Nos parece inoportuno fazer grata menção do que os Nossos restantes Predecessores acrescentaram de mais importante e útil para o mesmo fim, e que bem poderíamos chamar complemento ou fruto da feliz iniciativa leonina. E em primeiro lugar Pio X, querendo «subministrar um modo certo de se obterem com abundância mestres recomendáveis pôr sua gravidade e sincera doutrina, que interpretassem nas escolas católicas os livros divinos, institui os graus acadêmicos de licenciado e doutor em Sagrada Escritura, que a Comissão Bíblica havia de conferir» (14).
Depois promulgou a lei «sobre a orientação que se havia de observar no estudo da Sagrada Escritura nos seminários eclesiásticos», procurando que os alunos «não só entendessem e conhecessem por si mesmos a força, os modos e a doutrina da Bíblia, mas também pudessem fácil e frutuosamente dedicar-se ao ministério da palavra divina, e defender de qualquer ataque, os livros escritos sob a inspiração de Deus» (15).
Finalmente, «para que na cidade de Roma houvesse um Centro de Estudos Superiores sobre a Sagrada Escritura, que promovesse da maneira mais eficaz que fosse possível a doutrina bíblica, e todos os estudos a ela anexos, segundo o sentir da Igreja Católica», fundou, confiando-o à ínclita Companhia de Jesus, o Pontifício Instituto Bíblico, que quis fosse «dotado dos mais acreditados mestres e de todos os instrumentos de erudição bíblica», e traçou as suas leis e disciplina, professando seguir neste ponto «o salutar e frutuoso propósito» de Leão XIII (16).
Pio XI: Prescrição dos graus acadêmicos. Mosteiro de S. Jerônimo para a revisão da Vulgata.
Tudo isto aperfeiçoou, finalmente, o Nosso próximo antecessor, de feliz memória, Pio XI, determinando, entre outras coisas, que ninguém «ensinasse nos seminários Sagrada Escritura senão depois que, terminado o curso especial de tais disciplinas, estivesse na posse legítima dos graus acadêmicos conferidos pela Comissão Bíblica ou pelo Instituto Bíblico». Quis além disso que estes graus gozassem de iguais direitos e tivessem os mesmos efeitos que os legitimamente outorgados em Sagrada Teologia e Direito Canônico; estabeleceu também que a ninguém se conferisse um «beneficio a que estivesse canonicamente anexa a obrigação de explicar ao povo a Sagrada Escritura, se além dos restantes requisitos não possuísse a licenciatura ou o doutorado em Sagrada Escritura». E ao mesmo tempo que exortava os gerais das Ordens e Congregações religiosas, e os Bispos do orbe católico, a escolher alguns entre os seus melhores alunos, para os enviar a cursar estudos e obter os graus acadêmicos no Instituto Bíblico, confirmava essas exortações com o seu próprio exemplo, constituindo da sua liberalidade rendas anuais para o mesmo fim (17).
Foi o mesmo Pontífice quem, depois de ter, pelo favor e com a aprovação de Pio X, de feliz recordação, no ano de 1907 «confiado aos monges beneditinos o encargo de preparar as investigações e os estudos onde se firmasse a nova versão latina das Escrituras, que tem o nome de «Vulgata» (18), querendo estabelecer com mais firmeza e segurança esta «árdua e trabalhosa empresa», que exige largo tempo e grandes dispêndios, e cuja extraordinária utilidade havia já sido demonstrada pelos egrégios volumes editados, criou desde os fundamentos, e dotou abundantissimamente de biblioteca e mais subsídios da investigação, o Mosteiro de S. Jerônimo, na cidade de Roma, que devia dedicar-se àquela exclusiva finalidade» (19).
§ 3º - Cuidados dos Sumos Pontífices pelo uso e difusão da Sagrada Escritura.
Também parece que se não deve passar aqui em silêncio o que recomendaram os Nossos Predecessores nas ocasiões oportunas: o estudo, a pregação, a piedosa leitura e meditação das Sagradas Escrituras. Porque Pio X aprovou com ardor a sociedade de S. Jerônimo, que procura levar os fiéis ao costume, certamente louvável, de ler e meditar os Santos Evangelhos, e facilitá-los o mais possível; e exortou-a a perseverar animosamente no propósito, dizendo «que era a coisa mais útil de todas, e a mais apropriada a estes tempos», pois contribuía não pouco para «desfazer a opinião de que a Igreja repugnava que a Sagrada Escritura fosse lida nas línguas modernas, ou a isso opunha algum impedimento» (20). Bento XV, por sua parte, ao cumprir-se o XV centenário da morte do Doutor Máximo, na exposição das Sagradas Escrituras, depois de ter inculcado com empenho os preceitos e o exemplo deste santo doutor, e os princípios e normas dados por Leão XIII e por ele próprio, e de ter feito novas recomendações nesta matéria, oportuníssimas e inolvidáveis, exortou «todos os filhos da Igreja, especialmente os clérigos, ao respeito à Sagrada Escritura, unido à sua piedosa leitura e assídua meditação»; e advertiu «que nestas páginas se havia de procurar o alimento com que a vida do espírito se nutrisse para a perfeição» e que «o principal uso da Escritura havia de ser para o exercício santo e frutuoso do ministério e da palavra divina»; e louvou igualmente de novo os trabalhos da sociedade que recebia o nome de S. Jerônimo, por cujos cuidados se difundem tão extensamente os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, «que já não há família cristã que os não tenha, e todos têm por costume a sua leitura e meditação diária» (21).
§ 4º - Frutos desta multíplice ação.
É grato e justo confessar que o conhecimento e o uso das Sagradas Escrituras progrediram não pouco entre os católicos, não só por estas iniciativas, preceitos e exortações dos Nossos Predecessores, mas também pelo trabalho e fadigas de quantos os secundaram com diligência, escrevendo, ensinando, pregando, traduzindo e propagando os Livros Sagrados. Porque das escolas em que se dão cursos superiores de Teologia e Escritura, especialmente do Nosso Pontifício Instituto Bíblico, saíram e saem cada dia mais numerosos cultores da Sagrada Escritura, que animados de ardente amor aos livros sagrados educam com o mesmo ardor o clero adolescente, e comunicam-lhe cuidadosamente a mesma doutrina que beberam. Não poucos deles promoveram e promovem também com os seus escritos os temas bíblicos, quer editando os textos sagrados segundo as normas da arte crítica, explicando-os, ilustrando-os, traduzindo-os nas línguas modernas, quer propondo-os à piedosa leitura e meditação dos fiéis, quer, finalmente, cultivando e estudando as disciplinas profanas que são úteis para a explanação da Escritura. Destas e outras iniciativas que cada dia se propagam e desenvolvem, como são, para dar algum exemplo, as Associações Bíblicas, os Congressos, as Reuniões, Semanas, Bibliotecas e Confrarias para a meditação dos Evangelhos, concebemos a esperança de que não poderá deixar de crescer em toda a parte, para bem das almas, a reverência, o uso e o conhecimento das Sagradas Letras, contanto que todos sustentem mais firme, mais ardorosa, mais fielmente a norma do estudo bíblico, prescrita por Leão XIII, declarada com mais amplitude e perfeição pelos seus Sucessores e confirmada e aumentada por Nós - pois é a única segura e comprovada pela experiência - sem recuarem ante as dificuldades que, como acontece em toda a obra humana, também não faltarão nunca nesta empresa gloriosa.