A g n u s D e i

E-MAIL É MAL
Autor: fr. Betto*
Fonte: Lista Reflexões
Enviado por: Antonio Xisto Arruda

Ando pensando em suspender meu e-mail. Passei uma semana na Itália e, ao retornar, abri o computador e encontrei 123 mensagens! Metade, puro lixo. Gente que não tem o que fazer e ocupa-se com panfletagem eletrônica. Entopem meu correio virtual com manifestos em prol da preservação do mico leão-dourado, avisos de que aspartame envenena, convocatórias em prol da Liga pela Privatização dos Cemitérios, piadas que, contadas, não têm nenhuma graça, e escritas dão vontade de chorar.

A tecnologia cibernética funciona em tempo real, mas eu não. Preciso dormir, parar para comer, caminhar três km por dia, ler jornais na rede, rever os amigos, regar a horta e reler na Bíblia o livro dos Provérbios.Querer acompanhar o ritmo supersônico da eletrônica é candidatar-se ao infarto, após uma seqüência de estresses. Estou fora.

Kepler levou quatro anos para calcular a órbita de Marte em torno do Sol. Tivesse um computador, o faria em quatro minutos. Pensam que, então, teria tempo para ouvir o som do órgão na catedral de Praga? Teria caído nessa cilada em que estamos: viramos apêndices de nossas máquinas, como as rodas do carro são obrigadas a girar na velocidade que o motorista imprime ao acelerador.

Se alguém se dispõe a escrever um tratado de psicologia virtual, quero dar a minha contribuição. E-mail serve de muleta eletrônica dos carentes. Escondem-se atrás de identidades falsas em busca de companhias virtuais. Digitam o que não seriam capazes de dizer olho-no-olho. Homem se finge de mulher e mulher de homem. Faz-se sexo por computador, criando para a teologia moral um desafio: como qualificar o adultério virtual?

Quem teme a Aids, não entra em chat sem antes acionar um aplicativo antivírus. Acredite quem quiser: envolvido por meses de paquera eletrônica, outro dia um casal marcou encontro. Ao chegar ao local, a filha deu de cara com o pai!

Como devo pertencer à categoria dos sádicos digitais, tenho prazer em deletar mensagens. Oh, que saudades do velho correio, que trazia pacientemente as cartas, sem pressa de serem respondidas. Aliás, outro fator nocivo do correio eletrônico é o assassinato da língua pátria. Escreve-se rapidinho, atropela-se a sintaxe, embaralha-se a concordância, suprimem-se palavras, introduz-se um dialeto anglotupiniquim que mais parece um idioma de idiotas.

A prosseguir assim, as gerações futuras estarão privadas de meios de expressão e das coleções de correspondências que, publicadas em livro, enriquecem o nosso espírito. Quem lerá o epistolário de Ana Miranda como, hoje, nos deliciamos com as cartas de Mário de Andrade? O bate-bit não tem memória porque não tem cultura. É como aquele papo de mineiro ensinando ao outro a fazer café: "Pó pô pó? Pó pô, pô."

Quero ler e não ter LER. Muito menos aquelas letras miúdas inadequadas a um deficiente visual como eu. Por que não escrevem em corpos maiores? Quero o prazer de abrir envelopes, guardar os selos, acomodar-me na poltrona ao abrir cartas. Recuso-me a ser escravo do tempo, servo do computador, vassalo do provedor, receptor de infindáveis mensagens de pouco proveito. Vivi muitos anos sem elas, e posso viver um pouco mais se não permito que invadam meu espaço físico e psíquico.

Danem-se os que têm pressa. Quero escrever minha obra, redigir meus artigos, cultivar minhas leituras, entregar-me à ociosidade orante. Azar de quem fica na outra ponta da linha à espera de uma resposta imediata. Não me sinto obrigado ao que não prometi. Livro-me de uma vida atachada, que qualquer intruso pensa que abre e fecha a seu bel-prazer.

Eu, que me recuso a ter telefone celular, não vou mais ocupar meu telefone com a coleta dessas mensagens que trazem cartões e desenhos, relatórios e atachados. O pior é quando não consigo acessar o provedor. Fico horas maldizendo a Embrulhatel, a Telemá, e todas essas privatizadas que engoliram o nosso patrimônio público e, ainda por cima, não me facilitam colher as mensagens que me são dirigidas.

No pouco tempo que me resta, devo escrever livros. Não esperem de mim gastar a vida no pingue-pongue eletrônico. Sem tempo a perder - exceto quando se trata de ociosidade criativa e espiritual - tenho mais o que fazer.

Pelo jeito, e-mail é mal.


*Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil", que a editora Ática faz chegar às livrarias em outubro.